As negociações em agricultura na 12ª Conferência da OMC

Agricultura da OMC

Em 1995, após o final da Rodada Uruguai, a Organização Mundial do Comércio (OMC) foi criada, tendo como um de seus instrumentos basilares o Acordo de Agricultura (AoA, na sigla em inglês). O acordo regula o sistema multilateral de comércio agrícola a partir de disciplinas sobre subsídios à produção agrícola (chamados no acordo de apoio doméstico), acesso a mercados e concorrência nas exportações, os chamados “três pilares” do AoA. Apesar de marcar a primeira vez que a comunidade internacional concluiu um acordo multilateral sobre comércio agrícola, o AoA representou apenas o primeiro passo do processo de reforma. Seu artigo 20 estabelece uma obrigação de direito internacional de que os Membros da OMC deem seguimento às negociações, com o objetivo de acordar novas disciplinas que reduzam substancialmente os níveis de apoio e proteção no sistema multilateral agrícola.

Além do AoA, também constitui importante “covered agreement” da OMC na área agrícola o Acordo sobre a Aplicação de Medidas Sanitárias e Fitossanitárias (Acordo SPS). O acordo busca conciliar o interesse global no livre-comércio com a legítima necessidade dos países importadores de salvaguardarem-se, ao importar bens de origem agropecuária, do risco de ver introduzidas pragas em suas lavouras (saúde vegetal), pestes em seus rebanhos (saúde animal) e doenças em sua população (saúde humana). O acordo traz normas restritivas para evitar que essas medidas SPS sejam aplicadas com o objetivo de protecionismo comercial disfarçado.

Respaldado, portanto, pelo direito internacional, o Brasil atribui elevada importância a consecução dos objetivos do artigo 20 do AoA e no fortalecimento do acordo SPS, e ocupa posição protagônica nas negociações na OMC. O Brasil, por exemplo, foi, em conjunto com a União Europeia, o proponente do texto base da Decisão de Nairóbi sobre Concorrência nas Exportações, a qual, entre outros, tornou proibida a concessão de subsídios às exportações, possivelmente a política de apoio mais distorciva ao comércio agrícola. Conquanto em Nairóbi se tenha avançado sensivelmente no terceiro dos três supracitados pilares do AoA, desde 1995 os Membros não conseguiram acordar novas disciplinas que levem à redução dos subsídios agrícolas e das barreiras tarifárias e não tarifárias que prejudicam a circulação internacional de produtos agrícolas. 

O interesse do Brasil

As conferências ministeriais (MCs) são o principal órgão decisório da OMC, e representam o ápice das negociações que transcorrem no período entre elas. Nesse encontro, participam altas autoridades dos Membros, com o objetivo de adotarem declarações, decisões ou novos acordos que aprofundem o sistema multilateral de comércio. A 12ª Conferência Ministerial (MC 12) ocorreu entre os dias 12 e 17 de julho de 2022, na sede da OMC, em Genebra. A atuação brasileira teve como uma das principais vertentes de ação a defesa dos interesses brasileiros em agricultura.

Esse interesse é multifacetado, envolvendo questões nacionais, conjunturais e sistêmicas. Primeiramente, o agronegócio tem uma importância singular para a economia brasileira. Ele está estimado em R$ 1,24 trilhão (2022), representando cerca de 27% do PIB brasileiro, o maior share entre as grandes economias; em 2021, as exportações agrícolas representaram 43% do total e geraram um superávit comercial de US$ 105 bilhões; em 2020, o Brasil esteve entre os quatro primeiros produtores ou exportadores de soja em grão, açúcar, café, suco de laranja, carne bovina, carne de frango, farelo de soja, algodão, milho, óleo de soja e carne suína.

Em segundo lugar, a MC 12 ocorreu com o mundo enfrentando uma das piores crises de segurança alimentar na história recente. O índice de preços de alimentos da FAO atingiu seu valor mais alto na série histórica em março de 2022, e o número de pessoas enfrentando insegurança alimentar atingira 828 milhões em 2021. Havia uma expectativa de que a organização desse uma resposta à crise durante a Ministerial, respaldada no reconhecimento pelo AoA de que a segurança alimentar é uma das preocupações não comerciais que devem ser levadas em consideração pelos Membros da OMC.

Por fim, o tema de agricultura é conhecido como o “unfinished business” da OMC. A flexibilidade que existe no sistema multilateral possibilita gastos crescentes em apoio doméstico. Conforme dados da OCDE, entre 2019 e 2021, os 54 países avaliados aportaram, em média, um total de USD 817 bilhões aos seus setores agrícolas, um aumento de 2,4 vezes em relação aos níveis de 2000 e 2002. Além disso, em média, tanto as tarifas aplicadas quanto as consolidadas para produtos agrícolas são o dobro daquelas registradas para produtos industriais. Havia também forte pressão para uma reversão das normas existentes. Sob o manto da defesa da segurança alimentar, alguns Membros buscavam direito ilimitado de governos adquirirem a produção local a preços mínimos administrados e venderem-na no mercado internacional a preços abaixo do preço de mercado, o que marcaria um rompimento com as regras do Acordo de Agricultura e da Decisão de Nairóbi que disciplinam o recurso a estoques públicos para fins de segurança alimentar e as operações de venda de alimentos de governo para governo.

Os resultados da MC 12 em agricultura

A MC12 logrou, com importante atuação do Brasil, adotar pacote de resultados após jejum de sete anos (desde a MC10, em Nairóbi), incluindo uma decisão e uma declaração ministerial com componentes de agricultura e uma declaração sobre SPS. Não foi possível avançar, porém, na agenda negociadora para redução de subsídios e tarifas no setor, que permanece como o mais distorcido da economia global.

Por meio da “Ministerial Decision on World Food Programme Food Purchases Exemption From Export Prohibitions or Restrictions”, os Membros da OMC se comprometeram a não impor proibições ou restrições à exportação de alimentos adquiridos para fins humanitários não comerciais pelo Programa Mundial de Alimentos (PMA) da FAO.

Já a “Ministerial Declaration on the Emergency Response to Food Insecurity” traz uma série de compromissos, como o de adotar medidas concretas para facilitar o comércio e melhorar o funcionamento e a resiliência a longo prazo dos mercados globais agrícolas e de alimentos, incluindo cereais, fertilizantes e outros insumos de produção agrícola; garantir que medidas de emergência introduzidas para tratar de preocupações com segurança alimentar minimizem distorções comerciais o tanto quanto possível; cooperar com vistas a garantir maior produtividade e produção, comércio, disponibilidade e acessibilidade de alimentos, especialmente em emergências humanitárias; e determina a criação de um programa de trabalho para tratar de segurança alimentar na OMC.

Por fim, a “Sanitary and Phytosanitary Declaration for the Twelfth WTO Ministerial Conference: Responding to Modern SPS Challenges” estabelece um plano de trabalho por meio do qual os Membros explorarão formas de melhorar a implementação do acordo. Esses trabalhos serão norteados por seis objetivos gerais incluídos na declaração, como a promoção da segurança alimentar por meio do crescimento sustentável e da inovação na agricultura; a aplicação do princípio científico; o reconhecimento das áreas livres de pestes e doenças; o controle de pestes e doenças, como a peste suína africana e a mosca da fruta do mediterrâneo. 

Cabe registrar também que, no âmbito das negociações sobre sobre estoques públicos, o Brasil apresentou proposta focada em oferecer flexibilidades ao conjunto de 71 países mais vulneráveis em termos de insegurança alimentar no mundo, que inclui todos os países de menor desenvolvimento relativo (PMDRs) e os países em desenvolvimento importadores líquidos de alimentos (“net food-importing developing countries”, ou NFIDCs), além daqueles classificados pela FAO como países que necessitam de assistência alimentar externa. Trata-se de esforço brasileiro de adaptar o sistema internacional às necessidades dos mais vulneráveis, enquanto mantém as regras para aqueles Membros capazes de serem “price-makers” do sistema internacional, com grande potencial de distorção dos preços e do comércio internacionais.

No contexto da MC 12, o Brasil também somou-se a duas declarações que tratam de agricultura e de insegurança alimentar: a “Statement of the 42nd Cairns Group Ministerial Meeting”, assinada por 16 Membros do Grupo de Cairns, que reúne exportadores agrícolas que defendem a reforma das regras multilaterais, e a “Declaración sobre la reforma de las reglas multilaterales del comercio agropecuário”, assinada por 16 países latino-americanos, arranjo geográfico inédito naquela organização e que indica convergência regional crescente nas preocupações com o comércio agrícola global.

Conclusão

A MC 12, considerada no conjunto de seus resultados, apesar de não ter proporcionado uma atualização substantiva nas normas sobre agricultura, foi capaz de demonstrar que o braço negociador da OMC é operacional e pode ser efetivo. Portanto, no âmbito do sistema multilateral, centrado na OMC, o Brasil seguirá defendendo o comércio como instrumento para promover a segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável, reforçando seu compromisso com um sistema aberto e baseado em regras e opondo-se à imposição de restrições; além da importância da intensificação sustentável da produção agropecuária, por meio do emprego da ciência e tecnologia aplicada ao campo e por meio do recurso a formas mais eficientes e menos distorcivas de subsidiação, com iniciativas nos campos jurídico, político e prático.

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O texto representa a opinião dos autores, não vinculando o Ministério das Relações Exteriores.

  • Engenheiro e diplomata, é chefe da Divisão de Política Agrícola do MRE. Após experiência com contenciosos na OMC, já serviu nos EUA e no Paraguai.

  • Advogado e diplomata, é assessor da Divisão de Política Agrícola do MRE, responsável pelas negociações em agricultura na OMC. Cursa MBA em Agronegócio pela USP/ESALQ.

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