As Esculturas do Parthenon e o papel do Comitê sobre Restituição da UNESCO em disputas barradas pela não-retroatividade da Convenção de 1970

Poucos litígios interestatais sobre a restituição de patrimônio cultural são tão discutidos quanto o entre a Grécia e o Reino Unido pelas esculturas do Parthenon. Em 1984, a disputa foi apresentada ao Comitê Intergovernamental para o Retorno e Restituição do Patrimônio Cultural (na sigla em inglês, “ICPRCP”), órgão permanente da UNESCO. Quase quarenta anos depois, as esculturas permanecem em Londres, sem perspectiva de retorno à Grécia. A longa pendência do caso na agenda do ICPRCP levou Estados e acadêmicos a questionarem a sua eficácia.

Na última edição do International Journal of Cultural Property (Cambridge University Press), tive a oportunidade de publicar minha pesquisa sobre o papel do ICPRCP na solução de disputas sobre a restituição do patrimônio cultural não abarcadas pela Convenção Relativa às Medidas a Serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedades Ilícitas dos Bens Culturais de 1970. A investigação consistiu em um estudo de caso do pedido de restituição das esculturas do Parthenon realizado por meio de uma análise sistemática de todos os relatórios, recomendações e decisões já emitidos pelo ICPRCP sobre a disputa. O artigo apresentou uma análise da atuação do comitê – dividida entre os seus esforços no âmbito de seu mandato regular e alguns “efeitos colaterais” – e concluiu que o seu trabalho, apesar de muito limitado pelo grau de cooperação do estado demandado, pode ter impactos positivos em disputas sobre a restituição de patrimônio cultural. Neste pequeno ensaio, apresentarei algumas considerações sobre o tema, seguidas dos principais achados da pesquisa. 

As esculturas do Parthenon e o ICPRCP

O templo central da Acrópolis de Atenas, construído entre 447 a.C. e 432 a.C., permaneceu majoritariamente intacto por mais de dois milênios até a chegada do embaixador britânico Lorde Elgin à capital do Império Otomano, sub cujo domínio encontrava-se a Grécia. Aproveitando-se da influência britânica no império – bem como consideráveis somas pagas em suborno – uma equipe contratada pelo embaixador desmembrou e removeu boa parte das esculturas do Parthenon, enviando-as ao Reino Unido. Em 1816, o Parlamento Britânico comprou a coleção de esculturas e a doou ao Museu Britânico, onde permanece até hoje. A Grécia apresentou seu primeiro pedido de restituição em 1833 (logo após sua independência), que foi sumariamente rejeitado pelo Reino Unido – o mesmo destino das reiteradas solicitações gregas desde então. 

Considerando a extensão do dano e dos prejuízos ao patrimônio cultural das nações causado pela remoção ilícita de objetos de seus países de origem, a UNESCO adotou a Convenção de 1970 para coibir a prática e possibilitar sua restituição. O tratado, contudo, não abrange casos como o das esculturas do Parthenon por seu caráter não-retroativo. Nesse sentido, a UNESCO instituiu o ICPRCP em 1978 para que Estados pudessem apresentar demandas de restituição do patrimônio removido antes da entrada em vigor da Convenção. A abrangência temporal do Comitê, no entanto, foi contrabalanceada pelo caráter meramente consultivo e não vinculante de sua atuação. Apesar da adição às suas competências previstas em estatuto de procedimentos de mediação ou conciliação em 2005, a participação dos Estados ainda é voluntária e seu resultado não é vinculante. 

Assim que o ICPRCP estabeleceu suas regras de funcionamento em 1984, a Grécia submeteu a ele o caso das esculturas da Parthenon. Deste então, o ICPRCP pautou a disputa em todas as suas sessões e já emitiu 17 recomendações sobre o tema – as quais, contudo, não resultaram em restituição. Assim, o caso permanece na pauta do ICPRCP até hoje.

Lições sobre o mandato regular do ICPRCP

As competências do ICPRCP incluem a promoção de negociações no contexto de solicitações de restituição apresentadas conforme o procedimento padrão previsto no artigo 9º do seu Estatuto. com vistas à restituição de bens culturais. Nesse sentido, a Grécia solicitou que o ICPRCP iniciasse o procedimento de restituição das esculturas em 1984. No ano seguinte, o Reino Unido rejeitou a proposta, posição que manteve apesar da insistência dos membros do Comitê. A análise efetuada revelou que o procedimento padrão tende a ser curto, pois o tem como base um pedido de restituição de um determinado objeto e não de entrar em negociações que possam levar à restituição. No entanto, o preenchimento do “formulário padrão” demandado de ambas as partes pode ser útil para estabelecer o contexto factual da disputa ao forçar o Estado demandado a divulgar informações que, de outra forma, poderia ter ocultado. Ainda, a rejeição sumária do Reino Unido evidenciou sua falta de compromisso com uma solução bilateral para a controvérsia. 

Em seguida, o ICPRCP decidiu que ainda deveria buscar uma solução ao caso e empenhou seus esforços para promover a cooperação bilateral entre os países, outro aspecto de seu mandato. A análise destes esforços demonstra a diversidade de iniciativas que o ICPRCP é capaz de promover para estimular a cooperação e que, apesar destes procedimentos não terem culminado em restituição, tal impasse não pode ser atribuído a falta de esforços do Comitê. Afinal, ele é severamente limitado pelo caráter voluntário de seus procedimentos, e o Reino Unido se recusou reiteradamente a se engajar em qualquer diálogo que pudesse, mesmo que remotamente, levar à restituição das esculturas, além de ter tentado excluir o tema da pauta do ICPRCP e descumprido diversas de suas recomendações. Tais ocorrências demonstraram ainda mais a indiferença britânica à reivindicação grega, que atrai cada vez mais críticas.

Outra função estatutária do ICPRCP é a promoção do intercâmbio de bens culturais. Apesar da ocorrência de oportunidades como os Jogos Olímpicos de Atenas (2004) e a inauguração do Museu da Acrópolis (2009), não houve qualquer intercâmbio das esculturas do Parthenon entre as partes. A única oferta de empréstimo do Museu Britânico foi estritamente condicionada à Grécia reconhecer a sua suposta propriedade sobre os mármores – logicamente rejeitada pelos representantes gregos. Tais discussões revelaram a centralidade da questão da propriedade sobre as esculturas e evidenciaram ainda mais a intransigência do Reino Unido.

Após o acréscimo de procedimentos de mediação e conciliação ao mandato do ICPRCP, a Grécia se tornou o primeiro país a se valer da mediação em 2013. Após ignorarem o pedido por 19 meses, os representantes do Reino Unido e do Museu Britânico recusaram o procedimento – respondendo apenas por conta da pressão exercida pelo Comitê em cartas marcadas por argumentos retencionistas contraditórios e uma visão equivocada do mandato do ICPRCP. Ao recusar até mesmo um procedimento não vinculante de baixíssimo risco – bem como qualquer iniciativa que tenha a restituição das esculturas no seu escopo – o Reino Unido tornou quase impossível a manter sua alegação de “boa fé” na disputa e agravou sua posição perante a comunidade internacional. Além de beneficiar a Grécia com o aumento do seu apoio internacional, a tentativa levou o ICPRCP a estabelecer um prazo de seis meses para resposta de solicitações similares, aumentando sua eficiência em futuros pedidos.

Reflexões sobre os “efeitos colaterais” do ICPRCP 

É evidente que os esforços do ICPRCP ampliaram a exposição da conduta britânica ao escrutínio internacional, o que pode contribuir para a restituição das esculturas pelo mecanismo de “naming and shaming”. No entanto, a relevância adquirida pela demanda é uma espada de dois gumes, pois, ao aumentar o poder de barganha grego, pode ter tornado a postura do Reino Unido ainda mais defensiva e ampliado seu apoio por parte de outros Estados que também temem a criação de um precedente favorável para pedidos de restituição. 

Outro desenvolvimento se refere ao fato de que, embora a grande maioria das esculturas do Parthenon esteja dividida entre o Museu Britânico e o Museu da Acrópolis, uma pequena porcentagem encontra-se dispersa em outros museus. A ampla publicidade dos argumentos gregos levou à restituição de outros fragmentos do templo que, embora pequenos, carregam grande peso simbólico. Ainda, o ICPRCP proporcionou um fórum internacional para a promoção do Museu da Acrópolis, o que contribuiu para seu reconhecimento como instituição capaz de receber as esculturas e gera uma publicidade muito benéfica para a indústria do turismo na Grécia, historicamente prejudicada pela exportação ilícita de seu patrimônio.

Cumpre destacar também que as discussões no ICPRCP contribuíram para enfraquecer o argumento de que sua permanência no Reino Unido é mais benéfica às próprias esculturas. Os danos infligidos aos mármores na década de 30 quando os curadores do Museu Britânico buscaram os “embranquecer” escandalizaram o Comitê, e o dano que a equipe do Lorde Elgin causou ao remover as esculturas foi reconhecido. Por fim, o impasse perante o ICPRCP pode contribuir para que o caso seja eventualmente apresentado a um tribunal internacional, seja como uma disputa interestadual perante a Corte Europeia de Direitos Humanos ou uma Opinião Consultiva solicitada pela UNESCO à Corte Internacional de Justiça.

Considerações finais

A pesquisa realizada demonstrou a complexidade do caso das esculturas do Parthenon e os limites de métodos alternativos de solução de controvérsias voluntários e não vinculantes. Foi também possível observar que o fato de que o Reino Unido foi capaz de barrar qualquer tentativa significativa de restituição das esculturas do Parthenon à Grécia até agora não significa que a atuação do ICPRCP tenha sido desprovida de propósito. O valor destas conclusões é esclarecer os complexos fatores que interferem no trabalho do ICPRCP e representar um quadro para futuros estudos sobre ele e outros órgãos internacionais semelhantes. A história da reivindicação da Grécia sobre as esculturas do Parthenon é, sobretudo, uma lição sobre persistência, servindo de inspiração a outros países historicamente separados de seu patrimônio cultural. 

Nota da autora:  Para as referências consultadas, cf. Haertel (2022). A pesquisa publicada no IJCP não contempla a discussão da ilegalidade da remoção das esculturas e da manutenção do direito da Grécia à sua propriedade, objeto da Dissertação de Mestrado da autora. 

  • Letícia Haertel - Advogada no Mudrovitsch Advogados, mestranda em História pela Fundação Getúlio Vargas e Mestre em Direito pela Ludwig Maximilians Universität.

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter