Arte, por quê?

Com frequência, textos acadêmicos de direito internacional lançam mão de referências literárias para iniciar discussões teóricas sobre a disciplina. Não apenas a literatura, mas também o cinema, a pintura, o teatro e outras modalidades artísticas assumem o mesmo papel. Mas é preciso questionar se as metáforas e referências à arte funcionam apenas como mostra de erudição ou se elas ocupam ou podem vir a ocupar um lugar estratégico para a produção e compreensão dos vários vínculos, relações e problemas entre os seres humanos, o mundo e o direito internacional, que ainda hesita em levar a arte a sério como ferramenta de diálogo e não parece se dar conta da utilidade da linguagem e dos métodos artísticos para a produção de conhecimento sobre a disciplina. Em “The Paintings of International Law” Jean D’Apresmont  e Eric de Brabandere analisam a escolha de pinturas para capas de livros de direito internacional, argumentando que a página de capa serve não apenas para ilustrar o trabalho teórico, mas também para atrair os leitores para um jogo em que a própria pintura participa da narrativa proposta pelo autor.

Uma tendência recente vem opondo-se a esta resistência da disciplina. Cresce a atenção dos internacionalistas para o campo das artes, com a proliferação de eventos, conferências, artigos e livros que articulam o direito internacional, a literatura, as artes visuais e outros temas relacionados. A disciplina vem sendo gradativamente ocupada por trabalhos que deslocam a orientação clássica da disciplina e propõem formas alternativas de pensar o direito internacional, como é o caso do livro International law’s objects, publicado em 2018.

Internacionalistas vêm adotando métodos criativos, como a bricolagem, a performance e a poesia, buscando aproximar ou mesmo revelar uma proximidade preexistente entre o direito internacional e a arte.  Muitos defendem a adoção de uma abordagem profundamente interdisciplinar, que permite a descoberta de novos insights e uma abertura para a inventividade, revelando um compromisso com um ecletismo metodológico, uma desconstrução de posições rígidas dos pesquisadores, objetos de estudo e métodos. Como entender esse fenômeno?

Aqui, identifico três possibilidades de articulação entre a arte e o direito internacional que vêm sendo exploradas recentemente: a arte como forma de materializar o desconforto, a arte como linguagem comum e a adoção de métodos artísticos para a produção de conhecimento na disciplina.

MATERIALIZANDO O DESCONFORTO

Se, nas últimas décadas, as múltiplas correntes críticas buscaram revelar a insuficiência das narrativas e teorias tradicionais do direito internacional, a arte serviria para levar esses projetos críticos ao extremo. Uma “virada para a arte” permite que se dê voz, cor e forma a frustrações e suas demandas, articulando seu desconforto em participar de uma tradição que é decisivamente moldada por um conceito ocidental peculiar de direito que é insensível à diversidade da sociedade internacional. 

Muitos dos padrões excludentes e limitantes do direito internacional em relação à raça, ao gênero, à classe, à sexualidade poderiam ser melhor explorados, revelados e questionados através da arte. Para Hilary Charlesworth, uma das principais representantes das abordagens feministas no direito internacional, uma das razões para o gênero não ter se tornado um objeto de estudo na disciplina é a natureza abstrata dos conceitos e temas do direito internacional, que não parecem impactar na vida das mulheres. Assim como a experiência das mulheres, várias outras permanecem marginalizadas pela disciplina.

A linguagem típica sobre a qual o saber do direito internacional se constrói vem sendo apontada pelos críticos como notadamente excludente, eurocêntrica, refletindo pontos de vista, perspectivas majoritariamente masculinas e isso se traduz não apenas na teoria e nas práticas, mas nas metáforas de dominação e hierarquização, que opõem o civilizado ao bárbaro, o masculino ao feminino e que permeiam os discursos dos internacionalistas há séculos.

A arte, longe de resolver esses problemas, pode ser útil na tarefa de questionar as bases e fundamentos do direito internacional, permitindo que se estabeleça uma conexão entre o direito internacional e as idiossincrasias do mundo. Por outro lado, a arte materializa, também, o desconforto daqueles que não conhecem ou não entendem o direito internacional, tornando a disciplina visível e mais acessível, aproximando o mundo das idiossincrasias do direito internacional. 

A arte, em muitos casos, invoca o direito internacional e o contrário também acontece. Pensemos, por exemplo, no monumento Antônio Tavares em Campo Largo, no Paraná, em memória às vítimas da luta pela reforma agrária e cuja proteção foi determinada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Para além de incluir os “outros” nas teorias e métodos tradicionais da disciplina, há também grande potencial em permitir que eles sejam materializados através de métodos e formas alternativos. Ao aceitar novas possibilidades de encontro e diálogo, a disciplina poderia abraçar novas formas de pensar e buscar soluções para os problemas da disciplina.

A ARTE COMO LINGUAGEM COMUM

Outra forma de perceber a relação entre arte e direito internacional é no estabelecimento de uma linguagem comum que ultrapasse as verdades e consensos provisórios da produção teórica e alcance vínculos que permaneçam abertos para o mundo. A arte explora um espaço entre o que é dito e o que não é dito, entre o que é revelado e o que é escondido, e pode explorar os espaços e temporalidades em que o direito internacional existe e se perpetua. O poder de evocar sensações e emoções permite à arte materializar o que a teoria não consegue, abrindo espaço para compreensões múltiplas sobre o direito internacional, seu funcionamento, suas instituições e sua história.

O direito internacional é frequentemente invocado em momentos de conflito e crise globais e parece estar pouco presente no cotidiano da maioria das pessoas. A arte pode permitir que o direito internacional seja percebido em contextos mais amplos. Projetos artísticos, como o “Teeter-Totter Wall“, gangorras projetadas pelo escritório de arquitetura Rael San Fratello e instaladas na fronteira entre os Estados Unidos e o México e o projeto fotográfico Mapping Europe de Katerina Mistal, são alguns dos exemplos de obras que conseguem invocar o direito internacional e materializar, tanto aos que conhecem e quanto aos que desconhecem seu funcionamento, temas de grande relevância para a disciplina.

Já a Art/Law Network é uma plataforma de contato entre artistas e profissionais do direito. A linguagem dos dois campos, se combinadas, pode ajudar a abrir espaços para compreender o direito internacional de maneiras que vão além de sua aplicação tradicional em momentos de crise, e criar oportunidades para debates e reflexões mais amplas sobre a disciplina.

MÉTODOS ARTÍSTICOS PARA O DIREITO INTERNACIONAL

Por último, muitos internacionalistas vêm adotando métodos próprios da arte para a produção de conhecimento na disciplina. Bricolagem, teatro, pinturas, desenhos e performances são alguns dos exemplos. Ao invés de mero entretenimento, a arte pode funcionar como um espaço de debate, discussão e proposição. Na Critical Legal Conference 2022, Andreas Philippopoulos-Mihalopoulos apresentou a performance “A contract unto Extinction: Water, Titian, Plane – A multimedia performance lecture on planetary and individual death, flooding and Pietà, the last painting ever made by Titian“.

Mais recentemente, duas iniciativas muito semelhantes atestam o potencial de uma abertura do direito internacional aos métodos da arte, além do potencial artístico e criativo de temas típicos do direito internacional. A primeira iniciativa é o projeto Legal Sightseeing, idealizado por pesquisadores de direito internacional em Amsterdã, que se propõe a olhar ao redor em busca do direito internacional. Em passeios turísticos, visitas a museus, jardins e eventos internacionais, buscam compreender e questionar como e quem pode se envolver com o direito internacional e os modos pelos quais diferentes pessoas têm acesso a diferentes interações com o direito internacional. Em caminhadas por diferentes espaços de diferentes cidades, a questão que impulsiona Stolk e Vos, os idealizadores do projeto, é: o que o direito internacional está fazendo aqui?

A segunda iniciativa é o projeto “Embaixadas“, do grupo de pesquisa Vaga-Mundo: Poéticas Nômades, desenvolvido por pesquisadores do campo das artes em Brasília. O grupo questiona se “seria possível, por meio da prática artística, redesenhar fronteiras, retraçar limites, convocar a hospitalidade e diluir hostilidades”. Na descrição da expedição Embaixadas, o grupo apresenta Brasília como uma cidade-mundo que “acolhe as representações de várias partes do mundo, tendo assim vários países dentro de seu pequeno território” e faz referência aos fluxos migratórios, à vigilância constante dos que atravessam fronteiras, à divisão hierárquica do mundo em norte/sul e às políticas de abertura ao diálogo ou de hostilidade.

A relação entre a materialização do desconforto, a arte como linguagem comum e a adoção de métodos artísticos para a pesquisa em direito internacional é de interdependência. Cada um desses aspectos está essencialmente interligado ao outro. Há, ainda, uma outra dimensão a ser considerada: a da subjetividade. Em um texto recente de uma série sobre metodologia, a autora questiona: “Será que isso nos destruiria, nossa credibilidade ou nosso trabalho, se admitirmos que fazemos isso uns pelos outros e não pelo direito?” ao aproximar-se de métodos artísticos, o direito internacional pode levar a cabo uma reflexão sobre os próprios parâmetros da construção de saber da disciplina. A subjetividade, a identidade, as relações dos pesquisadores e de quem recebe as credenciais para dizer o direito internacional não podem ser ignoradas. A arte, nesse sentido, revela outro grande trunfo, ao evidenciar a proximidade entre as experiências de ser e conhecer.

  • Mestranda em Direito pela Universidade de Brasília, realiza pesquisas interdisciplinares no campo do Direito Internacional e dos Direitos Humanos, com enfoque especial nas abordagens feministas e queer. manuelacassis@gmail.com

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