O caso África do Sul v. Israel na Corte Internacional de Justiça: Uma oportunidade para intervenção brasileira?

No dia 29 de Dezembro de 2023 a República da África do Sul submeteu perante a Secretaria da Corte Internacional de Justiça (CIJ) uma petição inicialapplication – instaurando um caso contra o Estado de Israel, centrado em alegações de violações à Convenção para a Prevenção e a Repressão do crime de Genocídio de 1948. O país acusa Israel de ter violado a Convenção por meio de seus atos e omissões a obrigação de prevenir, assim como de não cometer, genocídio. Além disso, a África do Sul requereu à Corte medidas provisórias, as quais serão debatidas em audiência marcada para os dias 11 e 12 de Janeiro. Embora, conforme pontuado doutrinalmente, casos perante a Corte possam se arrastar por anos até que uma decisão final seja proferida nos méritos, uma questão que pode ser debatida de imediato refere-se à possibilidade de intervenções de terceiros Estados na lide e, em especial, de uma possível intervenção brasileira. Este post defende que à luz do Estatuto e jurisprudência da CIJ, existe a possibilidade para intervenções no caso África do Sul v. Israel, e o Estado Brasileiro deveria valer-se desta oportunidade jurídica e política.

Como observado neste mesmo blog três anos atrás no contexto do caso Gambia v. Myanmar, à época ainda em fase preliminar, existem 2 principais caminhos para intervenção de terceiros perante a Corte. O primeiro deles perpassa pelo artigo 62 do Estatuto, que permite intervenções de Estados que possuem um interesse de natureza jurídica no objeto do litígio. O segundo caminho é justificado pelo artigo 63, que prevê a possibilidade de intervenção de Estados-Parte de uma Convenção nos casos em que sua interpretação estiver em questão.

A partir de uma construção jurisprudencial da Corte, os interventores na modalidade do artigo 62 podem pleitear uma intervenção tanto como parte do caso, assim como não-parte. Aqueles que almejassem serem qualificados como parte do processo estariam sujeitos aos princípios da reciprocidade e do consentimento, o que importaria a obrigação de demonstrar que a Corte teria jurisdição para apreciar a lide como se ele a tivesse introduzido em primeiro lugar, estabelecendo um link jurisdicional entre si e os Estados parte do caso. Ademais, o interventor se vincula à decisão da Corte nos termos do artigo 59 do Estatuto. Tais deveres não recairiam sobre os interventores não-parte, que só precisariam comprovar o interesse de natureza jurídica no objeto da controvérsia, sem estar vinculados à decisão final.

Através de uma intervenção por meio do artigo 63, no entanto, não é necessário demonstrar um interesse jurídico no objeto do caso. Basta que o Estado interventor prove ser parte da Convenção em pauta e cumpra com os requisitos formais estabelecidos pelo artigo 82 do Regulamento da Corte. Neste caso, o Estado deve submeter seu pedido o mais cedo possível, não podendo, em regra, ser posterior ao fechamento dos procedimentos escritos. Além disso, o pedido deve apresentar as bases que comprovem sua vinculação à Convenção debatida; identificar os artigos específicos da Convenção cuja interpretação considere estar em disputa; declarar sua interpretação de tais artigos; e listar quaisquer documentos que considere relevante para suportar sua posição.

Recentemente, em um acontecimento marcante para a história processual da CIJ, a Corte recebeu diversos pedidos para intervenção sob o artigo 63 no caso Ucrânia v. Rússia, relativo à operação especial militar russa em território Ucraniano e à suposta violação da Convenção sobre o Genocídio. A Corte entendeu que os pedidos de 32 países[1] eram admissíveis, tornando-os interventores no caso.

Entretanto, a CIJ concluiu (para. 90-98) que o pedido dos Estados Unidos era inadmissível, dado que este país possui uma reserva ao artigo IX da Convenção – a sua cláusula compromissória. A Corte pontuou que, mesmo ciente de que em intervenções através do artigo 63 do Estatuto não é necessário demonstrar uma base jurisdicional da Corte entre aquele Estado e as partes do caso, não seria possível considerar os Estados Unidos interessados para avançarem uma interpretação de um artigo sobre o qual fizeram uma reserva. E, se tratando de uma discussão preliminar sobre a competência ratione materiae da Corte por meio da clausula compromissória do Artigo IX – como aquela relativa ao caso Ucrânia v. Rússia – não caberia aos Estados Unidos intervirem, tendo o país feito uma reserva a tal cláusula.

Este posicionamento revela um critério um pouco mais estrito do que o previsto por Juliana Guerra neste blog três anos atrás para intervenções sob o artigo 63 do Estatuto. Conforme o posicionamento da CIJ, aqueles que possuem tal interesse, não apenas devem ser parte da Convenção, mas também não podem ter feito reservas aos artigos cujas interpretações estão sendo debatidas. Em se tratando de um debate relativo à competência ratione materiae da Corte a partir de uma cláusula compromissória, os pleiteantes não podem intervir se tiverem feito uma reserva a tal cláusula.

As intervenções no caso Ucrânia v. Rússia parecem ter acendido uma chama no que tange este tema no âmbito da CIJ. Desde então, a Alemanha, o Canadá, a Dinamarca, a França, a Holanda e o Reino Unido pleitearam uma intervenção conjunta sob o artigo 63 no caso Gambia v. Myanmar (também concernente à Convenção sobre o Genocídio) e a Guatemala submeteu em 1 de Dezembro de 2023 um pedido de intervenção sob o artigo 62 ao caso Sovereignty over the Sapodilla Cayes, entre Belize e Honduras. Com isso, surge a questão da possibilidade de intervenções no caso África do Sul v. Israel, tanto pelo artigo 62 quanto pelo 63 do Estatuto da Corte.

Embora ainda não tenhamos uma contestação oficial do Estado de Israel referente à petição inicial da África do Sul, é possível conjecturar que, caso o demandado apareça diante da Corte, ele levante objeções preliminares que busquem impedir a análise dos méritos por parte da CIJ. A petição da África do Sul parece possuir bases sólidas de jurisdição e admissibilidade: ambos Estados são parte da Convenção sem reservas ao artigo IX e, após a decisão da CIJ no caso Gambia v. Myanmar de Julho de 2022, será aparentemente difícil questionar o standing Sul-Africano, vide a natureza erga omnes partes das obrigações da Convenção sobre o Genocídio. Apesar disso, é possível que o Estado Israelense alegue a inexistência de uma controvérsia jurídica entre si e o país demandante, à luz do precedente do caso Ilhas Marshall de 2016 – muito embora a África do Sul tenha buscado afastar este argumento no parágrafo 13 de sua petição inicial.

Neste sentido, os potenciais Estados interventores possuem algumas opções. Através de uma intervenção sob o artigo 62 do Estatuto, eles poderiam tanto avançar interpretações relativas à fase preliminar, buscando apoiar uma interpretação que faça com que o caso avance para a fase dos méritos, quanto concernentes a este segundo momento, se posicionando quanto à interpretação material da Convenção sobre o Genocídio vis-à-vis as ações de Israel na faixa de Gaza. Caso a intervenção verse exclusivamente sobre os méritos, é possível que a Corte adie sua consideração até o encerramento da fase preliminar, assim como feito no Nuclear Tests case. Em relação ao caminho do artigo 63, podemos estabelecer um paralelo como os pedidos de intervenção no caso Gambia v. Myanmar, dado que em ambos os casos existem alegações de Genocídio e um Estado não-ferido no polo ativo. De maneira similar ao feito por Canadá, Dinamarca, França, Alemanha, Holanda e Reino Unido naquele caso, os interventores de África do Sul v. Israel poderiam submeter sua interpretação dos artigos I, II, III, IV, V e VI da Convenção.

A questão da intervenção pode também ter implicações práticas em relação ao Brasil. O presidente Lula já declarou publicamente que, em sua opinião, o que está acontecendo no conflito do Oriente Médio não é uma guerra, mas sim um genocídio. A partir deste posicionamento, é factível imaginar que o posicionamento legal do Estado brasileiro se alinharia com as alegações introduzidas pela África do Sul em 29 de Dezembro. Deste modo, levando em consideração as relações amistosas que ambos os países constroem cada vez mais, inclusive por meio do grupo BRICS e destacando o fato de serem dois países pertencentes ao Sul Global, que se posicionam em proteção de um país também do Sul Global – a Palestina, quem estaria sofrendo tais violações gravíssimas do direito internacional – o presente momento pode ser visto como uma oportunidade chave para o Brasil no plano internacional. O Estado brasileiro apoiaria juridicamente a iniciativa da África do Sul, condenando as ações de Israel, e reforçaria politicamente alianças proeminentes.

Caso decida intervir nos procedimentos do caso África do Sul v. Israel, o Brasil pode prosseguir com uma intervenção tanto pelo artigo 62, quanto pelo 63. Caso o faça pelo artigo 62, ele deverá comprovar seu interesse jurídico na matéria, que poderá ser feito tendo em vista a natureza erga omnes partes das obrigações presentes na Convenção supostamente violadas. Ainda, caso queira ser considerado um interventor parte do caso pelo artigo 62, o Brasil precisará comprovar o link jurisdicional, o que poderia, a priori, ser feito através do artigo IX da Convenção. Já visando uma intervenção brasileira sob o artigo 63 do Estatuto, é preciso que o Brasil demonstre que é parte da Convenção – o que o é, e sem nenhuma reserva – e que exponha sua interpretação dos artigos em pauta.

O caminho jurídico está posto. É de se verificar se a posição do presidente em condenar a situação em Gaza como genocídio será traduzida num posicionamento jurídico perante a Corte Internacional de Justiça.


[1] São eles Austrália, Áustria, Bélgica, Bulgária, Canadá, Holanda, Croácia, Chipre, República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Letônia, Liechtenstein, Malta, Lituânia, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Polônia, Portugal, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Suécia e o Reino Unido

  • Graduado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisador do Grupo Direito Internacional Crítico (DICRÍ/UFU). Bolsista da Rede de Processo Civil Internacional (REDE-PCI).

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