A paz na Ucrânia é possível?

A Carta das Nações Unidas foi adotada em 1945 sob a inspiração das cinco potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de regular as relações internacionais e principalmente evitar nova guerra na Europa. Seu Preâmbulo expressa a determinação dos “povos das Nações Unidas a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”. Para isso, a Carta dispõe que as controvérsias entre Estados devem ser resolvidas por meios pacíficos e que devem ser evitadas a ameaça ou o uso da força nas relações internacionais. Todos os membros da organização mundial se comprometeram a agir segundo essas disposições.  

Infelizmente, não foi possível evitar sangrentos choques armados em muitas partes do mundo. Nem sempre as controvérsias se resolveram por métodos pacíficos e a força das armas foi usada em inúmeras ocasiões contra a integridade territorial e independência política de diversos Estados. Até fevereiro do ano passado o continente europeu havia sido poupado do flagelo da guerra ao longo dos mais de 75 anos da existência da organização mundial. A invasão da Ucrânia pela Rússia  quebrou esse período de paz naquele continente constitui uma flagrante violação dos Propósitos e Princípios definidos na Carta

Desde o ataque norte-americano contra as cidades de Hiroshima e Nagasaki em 1945 o poder destruidor das armas atômicas não foi utilizado diretamente em novas guerras, porém a simples existência desse armamento mudou a face do mundo, dividindo-o entre países nuclearmente armados de um lado, e do outro todos os demais.  A duração indefinida dessa situação foi juridicamente confirmada por meio da atribuição do direito de veto no Conselho de Segurança a cinco potências, e seu reconhecimento exclusivo como “estados nucleares” no Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP)[1], que não contém disposições claras e vinculantes para a eliminação das armas atômicas.

     Ao longo das décadas desde a adoção da Carta as potências nucleares atribuíram a ausência de conflitos na Europa ao suposto poder dissuasório desse armamento. A invasão da Ucrânia, com o envolvimento de países da OTAN – uma aliança militar nuclear – demonstra a falácia dessa noção: a capacidade nuclear bélica não impediu a eclosão de um enfrentamento entre potências dotadas de armas atômicas em uma guerra voltada para a afirmação de seus próprios interesses estratégicos. Longe de representar um fator de manutenção da paz, a existência de tais armas parece haver estimulado as ambições e receios das partes em conflito. O problema da dissuasão nuclear é que ela parece funcionar – até o momento em que falhar. 

É também extremamente grave o fato de que as potências nuclearmente armadas continuem acrescentando novas capacidades destruidoras a seu armamento e prossigam afirmando, com maior ou menor estridência, sua disposição de utilizá-las nas circunstâncias que considerarem conveniente, sem atentar para os catastróficos e potencialmente irrecuperáveis efeitos para o planeta. O temor do uso de armas nucleares não aflige apenas as populações dos países envolvidos na guerra. A ausência de opções viáveis para a solução do conflito, que parece haver chegado a um impasse, inquieta seriamente a parcela da comunidade internacional que até agora tem se mantido à distância.

Trata-se, sem dúvida, de uma situação altamente complexa que deriva de fatores históricos, culturais e geopolíticos que vão muito além da realidade atual no campo de batalha. Muito recentemente alguns líderes mundiais têm externado preocupação com as consequências adversas para a economia e a segurança internacional e com as repercussões econômicas e sociais negativas. Essas manifestações não deixam de reconhecer a dificuldade de encaminhar soluções aceitáveis para as partes em litígio. A dependência nas armas nucleares como garantidoras da segurança nacional de seus possuidores acentua as dificuldades, mas também representa um estímulo para a busca urgente de uma solução duradoura. 

O Conselho de Segurança da ONU, órgão primordialmente encarregado da manutenção da paz e segurança internacional, tem se mostrado incapaz de agir com eficácia nessa questão. Os mecanismos previstos na Carta para tratar de situações de rompimento da paz ou que possam colocar em perigo a segurança internacional não têm sido postos em funcionamento para solucionar o conflito devido às regras sobre a tomada de decisões do Conselho. A Assembleia Geral, cujas decisões têm caráter de recomendações e não possuem força obrigatória, adotou uma resolução condenando a agressão russa, porém com alguns votos negativos e diversas abstenções. Os recursos com que contam as Nações Unidas para a manutenção ou restauração da paz e segurança, constantes dos Capítulos VI e VII da Carta, têm sido utilizados com êxito ao longo do tempo em situações que não contrariam diretamente os interesses das cinco potências detentoras do poder de veto. Esses países permanecem, assim, nesses casos, imunes à ação coercitiva da organização mundial. Para que o Conselho possa exercer cabalmente suas funções, é preciso aperfeiçoar o atual sistema. 

Nas condições atuais, a solução para o conflito terá de vir dos próprios beligerantes. No entanto, não há indicações de que a situação possa evoluir, ao menos no curto e médio prazo, em direção a um cessar-fogo que permita o início de negociações em busca de uma paz duradoura. As hostilidades prosseguem sem que se possa prever uma solução militar decisiva. No momento, ambos parecem estar preparando ofensivas destinadas a consolidar ou anular ganhos territoriais até agora obtidos. Segundo a maioria dos analistas, a guerra provavelmente continuará ainda por tempo indeterminado, agravando o sofrimento e a destruição da Ucrânia e trazendo também perdas humanas e materiais para a Rússia.

Aparentemente, nenhum dos envolvidos no conflito aceitaria qualquer solução que não possa ser entendida como uma “vitória”. Para Kiev e a aliança que a apoia, é essencial a restituição de todos os territórios ocupados pela Rússia, inclusive a Crimeia. Moscou, por sua vez, rejeita liminarmente essa hipótese e acredita que a expansão da OTAN para o leste é na verdade apenas parte de um desígnio geopolítico mais muito mais amplo que visa restringir a capacidade de atuação da Rússia no mundo.  Seja como for, a “vitória”, para a Rússia, exigiria mais do que apenas impedir a entrada na Ucrânia na aliança atlântica. Para um lado ou para o outro, aceitar os termos do adversário significaria abandonar convicções que envolvem considerações de equilíbrio estratégico e de soberania e orgulho nacional, assim como os interesses de populações com percepções diversas, e às vezes conflitantes, sobre suas raízes culturais e suas lealdades políticas. Não há fórmulas mágicas para tratar dessas questões. 

Nos dias recentes começaram a surgir sugestões ainda muito genéricas e exploratórias sobre a possibilidade de que países não envolvidos na guerra se articulem para a busca de soluções, pois muitos aspectos do conflito ultrapassam o âmbito de uma disputa bilateral. Qualquer proposta com um mínimo de chances de sucesso terá que ser aceitável não apenas para a Rússia e a Ucrânia. É absolutamente indispensável que todas as partes diretamente interessadas se mostrem receptivas, o que até o momento não ocorreu. 

À medida que os custos humanos e materiais da guerra aumentem e se reflitam além do ambiente mais próximo das hostilidades, afetando cada vez mais o mundo como um todo, pode-se supor que aumente também a pressão em favor de uma solução negociada. Se os dois lados perceberem que poderá haver mais ganhos do que perdas em um possível acordo, a balança poderá inclinar-se em direção ao exame de propostas oriundas de países e/ou personalidades alheios à guerra, partir das quais possa haver progressos específicos. Presumindo que cessar-fogo seja factível, a atuação daqueles países e indivíduos deveria dirigir-se à facilitação de conversações diretas entre a Rússia e a Ucrânia. O secretário-geral das Nações Unidas poderia desempenhar papel crucial nesse processo, no qual um cessar-fogo imediato é pré-requisito essencial. Posteriormente, entendimentos mais amplos deveriam visar o estabelecimento de bases sólidas para uma estrutura de segurança na Europa.    

Os obstáculos no caminho do entendimento e da paz são muitos e nenhum deles pode ser vencido fácil ou rapidamente, mas podem ser identificados e neutralizados se houver dose suficiente de bom-senso para compreender que o prolongamento e exacerbação do conflito representam o mais grave risco existencial na era nuclear. A compreensão das verdadeiras dimensões do perigo é fundamental para gerar o momentum necessário para obviá-lo. 

Infelizmente, a história da humanidade demonstra que a razão e o bom-senso nem sempre governam as ações e decisões dos indivíduos, inclusive os líderes e dirigentes políticos. É de extrema importância redobrar os esforços para reverter a perigosa trajetória da humanidade, que pode levar a sua própria extinção. O gênero humano não pode permanecer refém do imprevisível relacionamento entre potências armadas com os meios de destruição mais poderosos e indiscriminados jamais inventados.  Em sua opinião dissidente sobre o pleito das Ilhas Marshall contra os países nucleares, em 2016, o Juiz da Corte Internacional de Justiça Antônio Augusto Cançado Trindade afirmou: “Um mundo com armas nucleares, como o nosso, caminha para destruir seu passado, ameaça perigosamente o presente e não terá futuro algum. As armas nucleares levam ao nada”.    

[1] Em 1963 o Embaixador João Augusto de Araújo Castro descreveu essa situação como “congelamento do poder mundial”.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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