A nova “Nuclear Posture Review” norte-americana

Coluna “Desarmamento e Desnuclearização”
por Embaixador Sérgio Duarte

O governo dos Estados Unidos revelou no último dia 27 de outubro a esperada nova versão da Avaliação da Postura Nuclear (Nuclear Posture Review), conhecida pela sigla NPR. Esse documento é publicado periodicamente pelo Departamento de Defesa e define a orientação adotada pelo país no que respeita à finalidade e uso de seu armamento nuclear. A NPR agora publicada, com certo atraso provavelmente devido à eclosão da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, reafirma com alterações pontuais parâmetros básicos da política norte-americana a respeito das armas nucleares registrados em edições anteriores. Em relação à situação mundial, reflete as preocupações de segurança contidas no “Conceito Estratégico” OTAN, adotado em 30 de junho do ano corrente.

O documento reitera que o “papel fundamental” do armamento nuclear norte-americano é “dissuadir ataques estratégicos” em “circunstâncias extremas”, além de “fornecer garantias a aliados e parceiros” – a chamada extended deterrence – e “realizar os objetivos dos Estados Unidos caso a dissuasão não surta efeito”. Essa formulação difere um pouco da de 2018, que admitia o uso de armas nucleares para “dissuadir ataques nucleares e não nucleares”, mas a nova versão esclarece que a expressão “estratégicos” nesse contexto se aplica também a ataques nucleares e não nucleares, inclusive “uma gama estreita de outros ataques de nível estratégico de elevada significação”.

Assim, a NPR 2022 deixa claro que o armamento atômico pode ser empregado contra qualquer ameaça: “Embora os Estados Unidos mantenham um limite muito elevado para o uso de armas nucleares, nossa postura nuclear tem o objetivo de complicar o conjunto de cálculos decisórios de um adversário, inclusive quanto a deflagrar uma crise, levar a cabo ataques não nucleares com utilização de capacidade nuclear ou promover uma escalada em direção ao uso de armas nucleares em qualquer escala”.

A título de comparação, assinale-se que a doutrina nuclear da Rússia, reiterada recentemente no contexto do conflito com a Ucrânia, está contida no documento “Princípios básicos da política da Federação Russa sobre dissuasão nuclear”, o qual afirma que Moscou considera seu armamento nuclear “exclusivamente como meio de dissuasão”. Esse documento enumera os tipos de ameaças que a Rússia poderia enfrentar e as circunstâncias nas quais poderia considerar necessário o uso de armas nucleares, inclusive “agressão contra a Federação Russa com o uso de armas convencionais caso a própria existência do Estado esteja em perigo”. No dia 2 de novembro corrente o Ministério da Defesa russo reafirmou que sua doutrina nuclear permite apenas o uso de armas nucleares para defesa, pois “as diretrizes rígidas adotadas buscam somente objetivos defensivos”.

Na realidade, porém, tanto Washington quanto Moscou reservam-se o que consideram ser o direito de responder com armas nucleares a qualquer eventualidade em que, a seu juízo, exista uma ameaça à segurança do país ou de seus aliados e parceiros, especialmente – mas não exclusivamente – caso a própria existência do Estado esteja em risco. Algumas das situações que cada um dos dois países considera como motivos para uma resposta nuclear podem ser verificadas objetivamente, mas em última análise a decisão de uso depende em boa parte de avaliação subjetiva das intenções de um potencial adversário.

A União Soviética havia adotado no passado o compromisso unilateral de não ser a primeira a usar armas nucleares, mas essa política foi abandonada após sua dissolução. Atualmente, o único país possuidor de armas nucleares que mantém a política de “não primeiro uso” é a China.

No período de sua vice-presidência, Joe Biden advogou a adoção de um compromisso de “não primeiro uso” e “finalidade única” para o armamento nuclear. A NPR 2022, porém, explicitamente rejeita ambas as opções, embora afirme o objetivo de “avançar em direção a uma declaração de finalidade única”, possivelmente em consulta com aliados e parceiros.

Assim como no caso das duas administrações anteriores, a NPR 2022 destaca o compromisso com a modernização das forças nucleares, das estruturas de produção e de apoio e dos sistemas de comunicação e de comando e controle. Desta vez, além disso, o documento identifica capacidades nucleares existentes e em fase de planejamento que não são mais consideradas necessárias para os objetivos de dissuasão. Entre essas estão a bomba de gravidade B83-1 e os mísseis de cruzeiro lançados de submarinos (SLCM-N). Setores norte-americanos mais conservadores criticaram essa decisão.

A NPR 2022 dá ênfase à integração dos componentes convencionais e nucleares da dissuasão e defesa coletivas e busca utilizar capacidades nucleares e não nucleares adequadas à dissuasão em circunstâncias específicas. Dessa forma, prosseguindo a tendência esboçada na NPR de 2010, as estratégias de dissuasão poderiam tornar-se mais flexíveis e menos centradas nos elementos nucleares na medida do possível, reduzindo a dependência nas forças atômicas e apoiando-se mais em capacidades convencionais.

A NPR afirma que os Estados Unidos procurarão adotar renovada ênfase ao controle de armamentos, não proliferação e redução de riscos, com o objetivo de evitar onerosas corridas armamentistas e demonstrar o desejo de reduzir a importância das amas nucleares em escala global.

Nessa linha, o documento afirma a disposição de negociar com rapidez um novo arcabouço em substituição ao tratado bilateral Novo START, assim como reitera o apoio ao Tratado de Não Proliferação (TNP) e à negociação de um instrumento internacional que leve à cessação da produção de matéria físsil para fins bélicos, conhecido pela sigla FMCT. Consigna também o apoio ao Tratado Abrangente de Proibição de Ensaios Nucleares (CTBT), de 1996, embora até hoje os EUA não o tenham ratificado.

Deve-se recordar que os líderes dos dois países declararam formalmente no ano passado que “uma guerra nuclear não terá vencedores e não deve nunca ser travada”. Essa mesma máxima, oriunda do encontro entre os Presidentes Ronald Reagan e Mikhail Gorbachov em Reikjavik, em 1987, foi recentemente reafirmada pelos cinco países reconhecidos pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) como possuidores dessas armas.

A NPR 2020 não faz qualquer menção aos esforços multilaterais de desarmamento nuclear mas reitera a convicção, já expressa anteriormente em diversos pronunciamentos oficiais norte-americanos, de que é necessário construir um “ambiente de segurança” capaz de levar a um mundo livre de armas nucleares. A busca de segurança permanece, portanto, como etapa anterior e essencial para que possa haver progressos no campo do desarmamento nuclear. Nesse contexto, a NPR afirma que o controle de armamentos mutuamente verificável “é o caminho mais eficaz, durável e responsável para a consecução de um objetivo-chave: a redução do papel das armas nucleares na estratégia norte-americana”.

O documento considera que o Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN), que entrou em vigor em janeiro de 2021, “não é um instrumento eficaz para resolver os conflitos de segurança subjacentes que levam os Estados a buscar ou manter armas nucleares”. Não obstante, o número de signatários e ratificantes desse instrumento vem crescendo constantemente. O TPAN tem hoje 91 signatários – quase metade dos membros das Nações Unidas – dos quais 68 já o ratificaram.

A nova NPR norte-americana reitera também as “garantias negativas” anteriormente formuladas, isto é, a promessa unilateral de que os Estados Unidos não usarão armas nucleares nem ameaçarão seu uso contra países não nucleares que sejam membros do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) “e estejam em dia com o cumprimento de seus compromissos de não proliferação”. Deve-se observar que o TNP não possui mecanismos para aferir o cumprimento dessas obrigações e portanto a decisão sobre se um país se encontra ou não em dia com suas obrigações nos termos do Tratado é reservada às autoridades norte-americanas.

Além das possibilidades de uso já mencionadas, a NPR afirma existir “um limitado leque de circunstâncias” nas quais as armas nucleares poderão também exercer papel dissuasório em relação a ataques capazes de produzir efeitos estratégicos contra os Estados Unidos, seus aliados ou parceiros. A nova NPR afirma também que o país não ameaçará deliberadamente populações ou objetivos civis com armas nucleares.

Quatro nações – China, Rússia, Coreia do Norte e Irã – são expressamente identificados como “adversários potenciais” – para fins de planejamento nuclear norte-americano.

A China é classificada como “o principal desafio emergente” para o planejamento de defesa dos Estados Unidos e um fator crescente para a avaliação dos instrumentos nucleares de dissuasão. Segundo a NPR, Pequim pretenderia dispor de pelo menos 1.000 ogivas nucleares ativas até o fim da década, o que lhe proporcionaria novas opções antes ou durante um conflito, inclusive coerção e provocações militares.

O documento nota a diversificação do arsenal nuclear russo e considera que serve como escudo para agressão injustificada contra seus vizinhos. Nesse contexto, menciona a invasão da Ucrânia e a busca de novas capacidades nucleares por parte de Moscou, que acentuam os riscos de segurança.

Qualquer ataque da Coreia do Norte contra os EUA ou seus aliados e parceiros é considerado inaceitável e resultará no término do regime. Caso Pyongyang utilize armas nucleares, a RPDC “não sobreviverá”.

Finalmente, o Irã é mencionado na NPR nos seguintes termos: ”Os Estados Unidos confiam em sua superioridade nuclear para dissuadir qualquer agressão na região por parte do Irã, desde que esse país não venha a possuir armas nucleares” .

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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