A moratória sobre a cobrança de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas na OMC

Ao final da 12ª Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), no âmbito do chamado “pacote de Genebra”, foi aprovada a renovação da moratória sobre a imposição de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas, ainda que, mais uma vez, de forma temporária. Isso não sem antes antagonizar grupos de países entre as tentativas de tornar a moratória permanente no quadro da Organização e as ameaças de veto à extensão da medida. Em questão a autonomia regulatória dos membros e suas políticas domésticas sobre a economia digital.

Nos Estados Unidos, um grupo de congressistas, liderado pela Democrata Suzan DelBene e pelo Republicano Darin LaHood, pressionou a Representante de Comércio, Katherine Tai, pela renovação da moratória. Em paralelo, representantes da indústria da tecnologia faziam um intenso lobby junto às autoridades e apresentavam em declarações os benefícios da não imposição de direitos aduaneiros. De outro lado, nas semanas anteriores à Ministerial, África do Sul, Índia e Indonésia ameaçavam vetar a renovação da moratória em virtude da perda de receitas tributárias que recairia sobre os países em desenvolvimento. Em um primeiro momento, a Índia manifestou preferência em apenas estender um programa de trabalho para estudar os efeitos da moratória.

A moratória foi prorrogada até a 13ª Conferência Ministerial, “que deverá realizar-se ordinariamente até 31 de dezembro de 2023”. Segundo o texto, se a Ministerial for adiada para além de 31 de março de 2024, “a moratória expirará nessa data, a menos que os ministros ou o Conselho Geral tomem uma decisão de prorrogação” [1]. A Índia conseguiu adicionar uma cláusula adicional ao acordo afirmando que o Conselho Geral da OMC realizará revisões periódicas, inclusive sobre o escopo, definição e impacto da moratória.v

Lançada primeiramente junto com o Programa de Trabalho sobre Comércio Eletrônico da OMC, de 1998, a moratória tem sido renovada a cada Conferência Ministerial. A última renovação ocorreu em 2019 por meio de uma decisão do Conselho Geral (WT/L/1079). Contudo, seguem questões ainda não resolvidas sobre essa medida e, com o crescimento do comércio digital, as discussões sobre sua renovação são cada vez mais intensas. Sob a perspectiva técnica, são colocadas dúvidas sobre o custo e a complexidade da cobrança de tarifas sobre transmissões eletrônicas, assim como não há consenso sobre o alcance da proibição. Sob a perspectiva econômica e fiscal, tem-se leituras distintas sobre o impacto da não cobrança de tarifas, a partir de estudos da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do European Centre for International Political Economy (ECIPE), em particular sobre os países em desenvolvimento, majoritariamente importadores de bens e serviços por meio de transmissões eletrônicas.

(In)definições sobre as “transmissões eletrônicas”

O comércio online de produtos digitalizáveis é denominado como transmissão eletrônica, o que envolve a distribuição online, por exemplo, de músicas, livros eletrônicos, filmes, softwares e games. Diferente do comércio eletrônico transfronteiriço, exclui aqueles produtos que são adquiridos online, mas entregues fisicamente. Sob o impacto da pandemia de Covid-19 e do rápido processo de digitalização da economia, com o desenvolvimento de novas tecnologias, o papel das transmissões eletrônicas na economia digital cresce continuamente.

Enquanto o Programa de Trabalho de 1998 definia o comércio eletrônico em termos de bens e serviços, a moratória se aplicava à “prática atual de não aplicar direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas”. Nenhum dos três termos-chave “prática atual”, “direitos aduaneiros” e “transmissões eletrônicas” foi definido [2]. Enquanto em acordos regionais de comércio, um número significativo de países tem buscado tornar permanente a moratória e nessa empreitada tem expandido o conceito de “transmissões eletrônicas”, na OMC as questões sobre o alcance da moratória permanecem em aberto mesmo depois de quase 20 anos. A ausência de acordo entre os membros sobre a classificação do “conteúdo digital” como bem, serviço ou propriedade intelectual se coloca também sobre a falta de clareza quanto à abrangência da moratória sobre o conteúdo da transmissão ou à própria transmissão, por meio da qual o conteúdo é transportado. [3]

Estudos como o da OCDE e do ECIPE defendem a inclusão dos serviços digitais no âmbito da moratória. A interpretação do alcance potencial da moratória de forma ampla para incluir a entrega digital de serviços, não apenas de produtos digitalizados, faria com que a proibição da cobrança de direitos aduaneiros se aplicasse a qualquer produto digital, de livros eletrônicos, filmes por streaming até projetos impressos em 3D. O Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership (CPTPP) define uma transmissão eletrônica como “uma transmissão feita usando qualquer meio eletromagnético, inclusive por meios fotônicos”, e proíbe a cobrança de direitos aduaneiros sobre “transmissões eletrônicas, incluindo o conteúdo transmitido eletronicamente.”

O debate sobre os impactos econômicos da moratória

O estudo da UNCTAD de 2019 aponta que, de 95 países em desenvolvimento, 86 destes foram importadores líquidos de produtos físicos digitalizáveis em 2017. As estimativas mostram que 95% da perda total de receita tarifária em decorrência da moratória seria suportada pelos países em desenvolvimento [4]. Com a moratória, não apenas estariam perdendo espaço fiscal, mas também capacidade regulatória sobre a importação de produtos digitalizáveis.

A partir de cinco categorias de produtos digitalizáveis – filmes, música, material impresso, software de computador e jogos de vídeo, a UNCTAD identificou 49 linhas tarifárias HS de 6 dígitos para projetar a perda tarifária dos países em desenvolvimento. Na projeção atualizada, considerando o aumento das importações globais de produtos digitalizáveis entre 2017 e 2020, com a moratória é estimado que nesse período países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos tenham perdido cerca de US$ 56 bilhões de receita tarifária.

Em reação às conclusões da UNCTAD, o relatório do ECIPE caminha em sentido contrário, ao defender que a eventual cobrança de tarifas de importação sobre bens e serviços digitais seria fiscalmente contraproducente. Alega-se que os benefícios de manter a moratória seriam superiores às receitas potenciais geradas por meio de tarifas aduaneiras. A partir de cálculos em torno de África do Sul, China, Índia e Indonésia, com resultados generalizados depois para os demais países em desenvolvimento, o estudo entende que a moratória evitaria uma perda econômica combinada de US$ 10,6 bilhões em PIB anualmente para países em desenvolvimento. Para chegar a esse valor, são consideradas as supostas consequências econômicas negativas na forma de preços mais altos e consumo reduzido, o que, por sua vez, desaceleraria o crescimento do PIB e reduziria as receitas fiscais.

Entre outros argumentos, as principais críticas em relação aos documentos da UNCTAD estão no fato destes i) não discutirem as referidas potenciais perdas fiscais econômicas e domésticas decorrentes da implementação das tarifas; ii) superestimar o impacto da digitalização e tecnologia de impressão 3D, na medida em que os materiais de origem usados para fabricar produtos permaneceriam sujeitos a tarifas sobre vendas; e iii) não considerar o fato de que o comércio eletrônico expandiria a base tributária ao incluir o setor informal e, assim, evitaria a erosão fiscal.

Na esteira desse debate, o estudo da OCDE advoga por uma “abordagem mais holística”, que vá além das receitas relativas a tarifas, considere os benefícios associados às reduções de custos comerciais e potenciais ganhos de produtividade, e envolva alternativas de arrecadação. Assim como o trabalho do ECIPE, coloca em questão o quanto as transmissões eletrônicas substituirão suas contrapartes físicas e mesmo o impacto efetivo da impressão 3D sobre a capacidade arrecadatória dos estados.

Ao final, ambos estudos afirmam as mesmas premissas. Ainda que reconheçam que os países em desenvolvimento tenham “perdido parte de suas receitas tarifárias devido ao avanço tecnológico” [5] e que, com a moratória, “os impactos potenciais nas receitas tendam a ser maiores para os países em desenvolvimento do que para os países desenvolvidos” [6], apontam esses mesmos países como beneficiários da proibição da cobrança de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas. A razão estaria em torno do potencial de ganhos de bem-estar da liberalização tarifária, decorrente de preços mais baixos e da inclusão de vendedores e consumidores no comércio internacional.

Observações finais

A extensão da moratória sobre a cobrança de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas foi comemorada pela Diretora-Geral da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, como uma decisão que é uma “boa notícia para os consumidores de streaming de filmes e videogames, e uma boa notícia para milhões de pequenas e médias empresas que dependem de serviços e mercados digitais”. A fala institucional ecoa a narrativa majoritária da comunidade de comércio sobre os benefícios aos consumidores e, particularmente, sobra a inclusão de pequenas e médias empresa no comércio internacional. Contudo, em uma economia digital marcada por um profundo hiato digital e pela concentração de mercado em torno de plataformas dominantes, decisões definitivas frente às incertezas sobre as definições e alcance da moratória podem conduzir a perdas substantivas para os países em desenvolvimento e países menos desenvolvidos no futuro.

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REFERÊNCIAS

[1] WTO. Work Programme on Electronic Commerce: Draft Ministerial Decision of 16 June 2022 (WT/MIN(22)/W/23).

[2] ELSEY, Jane; BUSH, John; MONTES, Manuel; NDUBAI, Joy. How ‘Digital Trade’ Rules Would Impede Taxation of the Digitalised Economy in the Global South. Penang, Malaysia: Third World Network, 2020.

[3] WUNSCH-VINCENT, Sacha. The WTO, the Internet and Trade in Digital Products: EC-US Perspectives. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2006, p. 37.

[4] BANGA, Rashmi. Growing Trade in Electronic Transmissions: Implications for the South. UNCTAD Research Paper n. 29, UNCTAD, Geneva.

[5] MAKIYAMA, Hosuk-Lee; NARAYANAN, Badri. The Economic Losses From Ending the WTO Moratorium on Electronic Transmissions, p. 15.

[6] ANDRENELLI, Andrea; GONZÁLEZ, Javier López. Electronic transmissions and international trade – shedding new light on the moratorium debate, p. 15.

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