A guerra da Ucrânia e a (im)possível responsabilização internacional da Rússia

Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia no início desse ano e diante das cenas de destruição que chocaram o mundo, passamos a nos perguntar quais são os instrumentos que o direito internacional possui para punir possíveis crimes cometidos no território ucraniano por ordem do Presidente russo e seus comandantes militares.

Essa pergunta veio à tona desde o momento em que Vladimir Putin trouxe de volta o pesadelo da guerra para o solo europeu e ressuscitou as memórias do holocausto nazista e do sangrento separatismo na ex-Iugoslávia. Apesar disso, não parece que o conflito tenha data para acabar. Até agora, as tentativas de negociações diplomáticas não tiveram êxito e as sanções sofridas pela Rússia são econômicas e quase simbólicas diante de uma potência mundial que se preparou e planejou uma guerra que pode trazer muito mais ganhos do que perdas para o invasor.

Se falharam a economia e a diplomacia, qual o papel do direito e, mais precisamente, do direito internacional na reparação dos danos e na punição dos responsáveis pelas graves violações de direitos humanos em solo ucraniano?

Das cenas vistas e das notícias recebidas no mundo ocidental, parece evidente o cometimento de crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.

O conceito desses crimes hoje é claro graças à longa construção histórica que culminou com uma pormenorizada tipificação, atualmente sedimentada no Estatuto do Tribunal Penal Internacional. A partir das definições ali explicitadas, seria difícil não concordar com o fato de que a Rússia vem cometendo ataques generalizados e sistemáticos contra a população civil, vem realizando violações graves às Convenções de Genebra de 1949 e que, para tanto, fez uso da força armada para violar a soberania, a integridade territorial e a independência política da Ucrânia.

Até aqui parece fácil afirmar que a Rússia, por meio de seus agentes, cometeu crimes internacionais e merece ser punida. Mas a pergunta é: de que forma?

Para responder a essa pergunta, vamos analisar a possibilidade de condenação da Federação Russa em duas jurisdições internacionais: a Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) e a Corte Internacional de Justiça (CIJ).

No documento base da CEDH, que é a convenção europeia de direitos humanos, existe uma previsão que possibilitaria a condenação do Estado Russo especificamente por violação ao direito à vida. É o que prevê o artigo 2º da convenção, ao afirmar que o direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei. Considerando que uma das formas de cometimento das graves violações é por meio da prática de homicídio, tanto para os crimes de guerra quanto para os crimes contra a humanidade, a condenação da Rússia poderia advir da infração a esse dispositivo convencional.

Porém, por mais otimista que seja o esforço argumentativo, a condenação do Estado nesse caso não seria propriamente por crime contra a humanidade ou por crimes de guerra, e muito menos por crime de agressão, mas sim por violação ao direito à vida, pura e simplesmente.

Na Corte Europeia, esses atos estão sujeitos tão-somente a uma reparação civil traduzida em indenização e multa, mediante ação individual movida pelos sujeitos afetados contra o Estado supostamente violador.

Partindo da análise dos elementos do crime contra a humanidade especificamente, ainda se poderia pensar em uma possibilidade de condenação do Estado Russo por desrespeito a outros direitos previstos na convenção, tais como a proibição da tortura (artigo 3º) ou a violação do direito à liberdade e segurança (artigo 5º), caso provada a prática desses atos.

Mas, apesar dessa longínqua possibilidade de enquadramento material dos atos dentro da convenção europeia de direitos humanos, a responsabilização da Rússia enfrentaria um óbice processual praticamente intransponível.

Isso porque logo no início da guerra a Rússia foi expulsa do Conselho da Europa, o que automaticamente impede a sua sujeição à jurisdição da Corte Europeia de Direitos Humanos. Essa expulsão independe do fato de o Estado Russo denunciar a convenção europeia de direitos humanos. Com a sua saída, portanto, sujeitos que tenham seus direitos violados pelo Estado Russo não poderão peticionar perante a CEDH. Nesse caso, suas demandas não seriam sequer conhecidas pela Corte.

Esse é um daqueles casos em que uma tentativa de sanção criada pelo direito internacional traz um bônus muito maior do que o ônus para o Estado “punido”. Em outras palavras, ganhou a Rússia com sua expulsão, já que não mais se sente obrigada a respeitar a convenção europeia de direitos humanos, uma vez que não mais se sujeita à jurisdição da Corte.

Mas, se no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos a possibilidade material de punição esbarra na impossibilidade processual, na Corte Internacional de Justiça o que parece ocorrer é exatamente o contrário: se por um lado a Rússia submete-se à jurisdição da Corte, por outro lado, o documento de base para a sua responsabilização enseja interpretações.

Uma vez que é membro da ONU, o Estado Russo está sujeito à Corte Internacional de Justiça, já que esse é o órgão jurisdicional máximo das Nações Unidas. Nesse caso, a ação pode ser ajuizada diretamente pela Ucrânia contra a Rússia, como de fato foi. Aqui estamos diante de uma ação movida por um Estado contra outro Estado, diferentemente do que ocorre na CEDH em que a ação é ajuizada contra o Estado por um particular, via de regra.

Até aqui, tudo bem.

O problema é para o enquadramento da prática de crime contra a humanidade, crime de guerra ou crime de agressão seria necessário identificar uma convenção internacional firmada no âmbito das Nações Unidas sobre o assunto, da qual a Rússia seja signatária, e que, além disso, preveja a jurisdição da Corte Internacional de Justiça.

Se o Estatuto de Roma não prevê a jurisdição da Corte Internacional de Justiça para essas violações e tampouco o faz a convenção sobre a imprescritibilidade dos crimes de guerra e crimes contra a humanidade, o único caso possível de enquadramento está na convenção internacional para a prevenção e a repressão do crime de genocídio.

Foi com base nesse documento que a Ucrânia ajuizou ação contra a Rússia perante a CIJ, em 26 de fevereiro de 2022, acusando-a de planejar atos de genocídio, uma vez que estaria matando intencionalmente pessoas de nacionalidade ucraniana e prejudicando gravemente a sua integridade física.

No entanto, para a configuração do crime de genocídio, exige-se do violador a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso e não apenas um ataque sistemático e generalizado a uma população civil. O genocídio é um crime com muitas especificidades e o mais grave dentre os crimes internacionais.

Em uma primeira análise, não parece possível concluir pela prática de crime de genocídio pelos militares russos em território ucraniano, pelo menos não até o presente momento. Para tanto, seria necessário comprovar, ao longo da instrução do processo, uma intenção da Rússia de exterminar um determinado grupo da face da Terra.

Apesar de a Corte ter deferido o pedido da Ucrânia de medidas conservatórias, determinando a suspensão imediata das operações militares, é preciso lembrar que a jurisprudência internacional sempre foi bastante comedida no reconhecimento do genocídio, fazendo-o somente em casos mais evidentes e extremos, a exemplo do que ocorreu nas decisões do Tribunal Penal Internacional de Ruanda.

Basta ver a decisão prolatada pela própria Corte Internacional de Justiça no julgamento dos casos Croácia versus Sérvia e Bósnia e Erzegovina versus Sérvia, em que as demandas foram rejeitadas. Em suma, a CIJ entendeu pelo não cometimento de crime de genocídio durante a guerra dos Balcãs, mesmo tendo diante dos olhos o massacre de Srebrenica, o mesmo que ensejou a condenação de Radovan Karadzic no Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia.

O que dizer então de um caso em que não há evidências do cometimento de crime de genocídio? A resposta é que dificilmente a Corte Internacional de Justiça acolherá o pedido da Ucrânia com base na convenção internacional para a prevenção e a punição do genocídio. Se não o fez em um caso claro de genocídio, dificilmente o fará em uma situação duvidosa.

Em suma, mesmo diante de graves violações aos direitos humanos e a uma série de tratados internacionais, falha mais uma vez o direito internacional em seu objetivo de solucionar litígios entre Estados por uma via pacífica. O conflito da Ucrânia já dura mais de meio ano e seus desdobramentos fazem crer que existem apenas duas formas de encerrá-lo: ou pela rendição da Ucrânia ou pelo ingresso de países militarmente poderosos, com o risco de desencadear-se uma nova Guerra Mundial, em pleno século XXI.

  • Pós-doutora em direito pela UnB. Doutora em direito internacional pela Université Paris II Panthéon-Assas. Doutora e mestre em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Integração Latino Americana pela Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul nos Tribunais Superiores em Brasília. Pesquisadora do Gern-UnB e do LEPADIA - UFRJ

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