O Projeto de Artigos da CDI sobre Imunidade de jurisdição penal estrangeira dos funcionários do Estado: em busca do equilíbrio adequado

Coluna “Prática Penal Internacional”

Em junho de 2022 a Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas (CDI ou Comissão) concluiu em primeira leitura a tópico “Imunidade de jurisdição penal estrangeira dos funcionários do Estado”. O Projeto de Artigos compreende um conjunto de 18 propostas de artigos, divididos em quatro partes, abordando os dois tipos diferentes de imunidade dos funcionários do Estado, a saber imunidade ratione personae e imunidade ratione materiae, seus respectivos escopos material, pessoal e temporal, limitações ou exceções à imunidade, bem como disposições processuais e salvaguardas. O objetivo do presente ensaio é analisar o processo de produção deste Projeto de Artigos pela CDI, destacando em especial o choque fundamental de valores e visões na determinação do escopo de aplicação da imunidade ratione materiae.

Atualmente o mais longo tópico em andamento perante a Comissão, o tópico relativo à imunidade de jurisdição penal estrangeira dos funcionários do Estado foi incluído no programa de trabalho da CDI durante sua 59ª sessão, em 2007. Na época da sua inclusão, havia um crescente interesse entre Estados e juristas no tema em virtude do surgimento de notáveis casos envolvendo imunidade dos funcionários do Estado perante jurisdições nacionais (aqui, aqui) e internacionais (aqui, aqui) a partir do final da década de 1990.  A expectativa, portanto, era de que a CDI pudesse clarificar as regras relativas ao tópico, e, em especial, a sua aplicação em relação aos mais graves crimes de direito internacional, tais como genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade (aqui, p. 193 e aqui, p 8). Ou, como expresso por Roman A. Kolodkin, membro russo da CDI que em 2006 sugeriu a inclusão do tópico na agenda de trabalho da Comissão, essa poderia contribuir para o tema ao garantir um equilíbrio apropriado entre os conceitos de igualdade soberana dos Estados –  na qual a imunidade se baseia – e de responsabilidade individual penal pelo cometimento de crimes internacionais (aqui, p. 193). 

Com efeito, a busca pelo equilíbrio entre esses dois conceitos, como indicado por Kolodkin, talvez seja a melhor maneira de resumir o trabalho da Comissão no tópico ao longo desses quinze anos, que precisou constantemente conciliar a posição de Estados e membros da CDI favoráveis a uma visão mais Westfaliana e, portanto, abrangente do instituto da imunidade e aqueles que defendiam a sua relativização em prol do combate à impunidade pelos mais graves crimes internacionais.

O embate mais evidente entre essas duas perspectivas se deu na discussão a respeito das exceções à imunidade ratione materiae (imunidade funcional), especialmente quanto à possibilidade de que jurisdições nacionais julguem funcionários estatais estrangeiros por crimes internacionais. A imunidade funcional protege funcionários de um Estado da prossecução por Estados estrangeiros por atos realizados em sua capacidade oficial. Por estar atrelada ao ato oficial em si, esse tipo de imunidade subsiste mesmo depois que o indivíduo em questão deixa de atuar como funcionário do Estado. Ela se distingue da imunidade ratione personae (imunidade pessoal), disfrutada por um restrito grupo de altos funcionários do Estados – a saber, chefes de Estado, chefes de governo e ministros das Relações Exteriores – durante o exercício de seus mandatos e que impede que Estados estrangeiros exerçam sua jurisdição sobre qualquer ato realizado por esses funcionários – seja em capacidade privada ou oficial, antes ou durante seus mandatados. A questão da aplicação da imunidade funcional ao cometimento de crimes internacionais foi inicialmente examinada pelo primeiro relator especial do tópico, Roman A. Kolodkin. Partindo da premissa de aplicação da imunidade ratione materiae como regra geral, Kolodkin sistematicamente refutou, em seu segundo relatório, os principais fundamentos a favor de exceções a essa regra. Ele então concluiu pela inexistência de qualquer exceção em direito internacional geral à imunidade funcional dos funcionários do Estado, incluindo para crimes internacionais, e ainda considerou ser indesejável o estabelecimento de novas exceções pela própria CDI em caráter de desenvolvimento progressivo. As conclusões de Kolodkin foram duramente criticadas pelos demais membros da Comissão quando discutidas na 63ª sessão da CDI, em 2011. Dos vinte e quatro membros que se pronunciaram em plenário sobre o tópico, apenas quatro apoiaram de forma inequívoca as conclusões do então relator especial (Nolte da Alemanha, Perera do Sri Lanka, Singh da Índia e Wood do Reino Unido). Para além de acusações de ter sido tendencioso e unilateral, o segundo relatório de Kolodkin recebeu inúmeras críticas por adotar uma visão excessivamente conservadora ou “hiper-westphaliana” do conceito de imunidade e por não ter dado devida consideração aos desenvolvimentos no campo do direito internacional desde o final da Segunda Guerra Mundial, em particular o surgimento da responsabilidade individual no direito internacional. Assim, a despeito da posição do relator especial, a grande maioria dos membros da CDI que se pronunciou à época defendia a não aplicação da imunidade funcional dos funcionários do Estado em relação ao cometimento de graves crimes de direito internacional (aqui, aqui). 

Com o fim do mandato de Kolodkin na Comissão em 2011, a espanhola Concepción E. Hernandez o substituiu na função de relatora especial. Em seu quinto relatório, Hernandez revisitou a questão das exceções à imunidade ratione materiae. Após uma análise da jurisprudência de tribunais nacionais e internacionais, a relatora concluiu que “apesar de diversa, a prática revela uma clara tendência em considerar o cometimento de crimes internacionais como um obstáculo à aplicação da imunidade dos funcionários do Estado em relação à jurisdição penal estrangeira” (aqui, p. 73 e 76). Nesse mesmo relatório, Hernandez propôs o projeto de artigo 7º, contendo uma relativização da imunidade no caso de crimes internacionais. Ela sugeriu uma ampla lista de crimes que estariam abarcados por essa exceção, incluindo até mesmo corrupção.  

Embora mais próximas da posição adotada pela maioria dos membros da CDI em 2011, as conclusões expressas no quinto relatório e o projeto de artigo 7º foram recebidos com certa hesitação pelos membros da Comissão em 2016. Um pequeno grupo se opôs fortemente ao artigo proposto por Hernandez, alegando ser inconcebível a não aplicação da imunidade funcional em relação ao cometimento de certos crimes internacionais sob o argumento de que tal disposição não reflete a prática dos Estados e constituiria uma proposta de direito novo (new law). Os demais membros que se manifestaram, apesar de expressarem apoio as conclusões alcançadas pela relatora especial, divergiram em relação à lista de crimes contida no projeto de artigo 7º, bem como à natureza da disposição proposta, isto é, se as exceções ou limitações constituiriam codificação ou desenvolvimento progressivo do direito internacional.

Após discussões ao longo de duas sessões, o projeto de artigo 7º foi finalmente adotado provisoriamente pela Comissão em 2017, seguindo um procedimento um tanto não usual. A CDI, que desde a década de 1970 segue a prática de adoção de decisões por meio do consenso, precisou recorrer ao voto para resolver o impasse em torno do projeto de artigo 7º.  A disposição, aprovada por 21 votos favoráveis, 8 votos contrários, e uma abstenção, prevê a não aplicação da imunidade ratione materiae em relação aos crimes de genocídio, crimes contra humanidade, crimes de guerra, crime de apartheid, tortura e desaparecimentos forçados. Houve, assim, uma redução no escopo material do projeto de artigo 7º em comparação com a versão original proposta por Hernandez, restringindo o alcance da exceção ali prevista. 

As reações na Sexta Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas (Sexta Comissão) à adoção provisória do projeto de artigo 7º pela CDI revelaram a existência de divergências também entre os Estados. Ainda que a maioria das delegações que se manifestaram apoiaram o projeto de artigo (24 Estados), um número significativo de Estados (18 Estados) expressaram preocupações ou oposição manifesta a ele (aqui). A adoção do projeto de artigo na CDI por meio do voto tampouco passou despercebido, e várias delegações criticaram o procedimento utilizado e insistiram que um consenso seja alcançado no futuro. 

O que as divergências dentro da CDI e da Sexta Comissão mascaram, porém, é que a constatação de que a imunidade funcional não se aplica em relação a certos crimes internacionais não é tão avant-garde quanto parece. A própria CDI já havia concluído anteriormente, em seu trabalho nos tópicos “Princípios de direito internacional reconhecidos na Carta do Tribunal de Nuremberg e no Julgamento do Tribunal” (1950) e no “Projeto de Código de Crimes contra a Paz e a Segurança da Humanidade” (1996/Projeto de Código de Crimes), que a posição do indivíduo como funcionário do Estado é irrelevante para sua responsabilização por crimes internacionais até mesmo perante as cortes nacionais dos Estados. O comentário ao artigo 7º do Projeto de Código de Crimes – que cabe salientar foi concebido para ser aplicado tanto por jurisdições nacionais quanto internacionais – expressa claramente que “a ausência de qualquer imunidade processual […] é um corolário essencial da ausência de qualquer imunidade substancial ou defesa” baseada na posição do indivíduo como funcionário do Estado. Essa é também a posição de uma robusta parte da doutrina (aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui) e do Institut de droit International. A inovação por parte da Comissão no trabalho de imunidade de jurisdição penal estrangeira dos funcionários do Estado, iniciado em 2007, se encontra, portanto, apenas na lista de crimes incluídos no projeto de artigo 7º, ou seja, a determinação de quais crimes não estariam abarcados pela imunidade ratione materiae. Apesar dos Princípios de Nuremberg e do Projeto de Código de Crimes incluírem o crime de agressão dentre os delitos em relação aos quais a imunidade dos funcionários do Estado não se aplica e não obstante a opinião favorável de quase metade dos membros da Comissão à inserção deste crime na lista do projeto de artigo 7º, o crime de agressão não figura entre as exceções e limitações do Projeto de Artigos da CDI. Por outro lado, os crimes de apartheid, tortura e desaparecimentos forçados, ausentes nos Princípios de Nuremberg e no Projeto de Código de Crimes, foram inseridos no projeto de artigo 7º, por motivos que ainda não se encontram satisfatoriamente claros

Se o projeto de artigo 7º parece pender a balança para o lado da responsabilização de indivíduos por crimes internacionais, nos anos que seguiram a sua aprovação em 2017 a Comissão empreendeu esforços em tentar assegurar que o exercício da jurisdição penal em relação a funcionários de um Estado estrangeiro, em especial a aplicação das exceções à ou limitações a imunidade funcional, não fosse usado de maneira abusiva. O resultado desses esforços pode ser visto na parte quatro do Projeto de Artigos, que contém onze disposições estabelecendo provisões processuais e garantias à imunidade de jurisdição penal estrangeira dos funcionários do Estado. Os projetos de artigo 9º a 14 introduzem uma série de medidas processuais sequenciais a serem tomadas a fim de facilitar e levar a determinação da imunidade, incluindo a notificação do Estado do funcionário (projeto de artigo 10), a invocação (projeto de artigo 11) e renúncia da imunidade (projeto de artigo 12), bem como a solicitação de informação pelo Estado de foro (projeto de artigo 13). A parte quatro prevê ainda a possibilidade de transferência do processo penal para o Estado do funcionário (projeto de artigo 15), além de conter disposições relativas ao tratamento justo do acusado (projeto de artigo 16), à realização de consultas entre o Estado de foro e o Estado do funcionário (projeto de artigo 17) e à resolução de controvérsias (projeto de artigo 18).

Ainda que de forma menos acentuada, considerações acerca do “equilíbrio adequado” entre a luta contra a impunidade por crimes graves e a proteção dos Estados contra ingerências abusivas em sua soberania continuaram a estar presentes durante as discussões relativas à parte quatro. Isso pôde ser notado, por exemplo, na elaboração do projeto de artigo 14.3, que estabelece condições a serem seguidas pelo Estado de foro quando considerando a aplicação do projeto de artigo 7º. Um dos requisitos estipulados pelo projeto de artigo 14.3 é que as autoridades competentes do Estado de foro devem “se assegurar de que existem razões substanciais para acreditar que o funcionário cometeu algum dos crimes de direito internacional listados no projeto de artigo 7º”. Quando da elaboração dessa disposição, o Comitê de Redação da CDI cogitou também outros níveis de prova, como a existência de “motivo razoável”, “evidência prima facie” e “evidência clara e convincente”, mas estes foram, por fim, considerados muito baixos ou muito exigentes. Além disso, a inserção de outras condições, que tornariam a aplicação do artigo 7º mais restrita, como a presença do funcionário no território do Estado de foro no momento da determinação da imunidade, foram propostas, porém rejeitadas.

As extensas garantias processuais inseridas no Projeto de Artigos sejam talvez uma das mais importantes contribuições da CDI no tópico. Dentre os principais tratados vigentes que abordam a questão da imunidade em relação à jurisdição penal estrangeira, seja em conexão com missões diplomáticas, postos consulares, missões especiais e organizações internacionais, nenhum deles trata de maneira tão detalhada os aspectos processuais relativos à imunidade. Ainda que as disposições presentes na parte quatro do Projeto de Artigos sejam, em sua maioria, um exercício de desenvolvimento progressivo por parte da Comissão, elas podem, se bem aceitas pelos Estados, ter o potencial de gerar uma maior uniformidade na prática estatal, além de oferecerem instrumentos de comunicação e cooperação entre os Estados no tocante à imunidade dos funcionários do Estado.  

Com a adoção provisória do Projeto de Artigos em primeira leitura, resta a pergunta: a CDI foi capaz de alcançar o equilíbrio adequado entre soberania e o combate à impunidade? A opinião entre os Estados que se manifestaram durante a 77ª sessão de Sexta Comissão divergiram quanto a isso. As delegações Noruega, Finlândia, Islândia, Suécia, Áustria, Portugal, Romênia, por exemplo, declararam expressamente a convicção de que um bom equilíbrio foi alcançado pela CDI. Outras delegações, como a da Rússia, Estados Unidos, Índia, Israel e Reino Unido, ainda que sem mencionar a questão do “equilíbrio”, reiteraram suas preocupações em relação ao Projeto de Artigos, em especial sobre o escopo do projeto de artigo 7º e a falta de consenso dentro da Comissão ao seu respeito. 

Por fim, cabe aqui alguns comentários sobre o futuro do trabalho sobre imunidade de jurisdição penal estrangeira dos funcionários do Estado. Com o término do mandato de Concepción Hernandez em 2022, devido ao seu insucesso em reeleger-se para a CDI em 2021, um novo relator especial deverá ser apontado pela Comissão nas próximas sessões. O seu papel será propor mudanças ao Projeto de Artigos com base nos comentários dos Estados e guiar a Comissão na aprovação do trabalho em segunda leitura, que se estima ocorrer durante a 75ª, em 2024. Ainda que não esteja claro qual será a recomendação da CDI após a conclusão do trabalho, a ausência de tratado sobre o tema, somado ao formato de “projeto de artigos” e a inclusão de uma disposição sobre resolução de controvérsias, possa indicar que o resultado mais apropriado seria a recomendação de que uma convenção seja adotada pela própria Assembleia Geral das Nações Unidas ou por uma conferência internacional de plenipotenciários com base no Projeto de Artigos. As incertezas em relação ao projeto de artigo 7º também reforçam isso, visto que a elaboração de uma convenção daria a oportunidade aos Estados de negociarem esse e outros pontos mais controversos. Esse tratado também viabilizaria a inclusão, em um documento vinculante, das garantias processuais propostas pela CDI contra abusos que vilipendiam a soberania estatal e a imunidade. 

A adoção de uma convenção também parece ser a preferência da maioria dos Estados. Dos 11 Estados que se manifestaram sobre o assunto na Sexta Comissão em 2022, durante a 77ª sessão da Assembleia Geral, 10 acreditam que o Projeto de Artigos deve ser utilizado como base na elaboração de uma convenção. No entanto, a recorrente inércia da Sexta Comissão frente aos trabalhos da CDI – tal como ilustrado pela dificuldade de avançar na elaboração de uma convenção baseada no (menos controverso) Projeto de Artigos sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra a Humanidade – sugere que talvez esse não seja o melhor caminho a ser seguido, ao menos no presente momento. Uma alternativa seria a recomendação de que a Assembleia Geral tome nota do Projeto de Artigos e, posteriormente, considere a possibilidade de convocar uma conferência internacional de plenipotenciários com objetivo de concluir uma convenção sobre o tema.

  • Doutoranda em Direito Internacional do Institute for International Peace and Security Law da Universidade de Colônia. Mestre em Direito Internacional Público pela UFMG.

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