Sales Pimenta v. Brasil: dois passos a frente, um passo atrás

A Corte Interamericana de Direitos Humanos acaba de publicar a mais recente decisão contra o Brasil. Trata-se do caso Sales Pimenta, referente a proteção de pessoas defensoras de direitos humanos (DDH) e impunidade contra atos de violência. A decisão é emitida em um momento de escalada nos assassinatos contra DDH, estabelecendo garantias essenciais para a proteção doméstica desse grupo. É a primeira vez que o Brasil é condenado em casos relativos a DDH: A Corte já havia analisado o assassinato de um DDH no caso Nogueira Carvalho v. Brasil, decidido em 2006, mas na ocasião não reconheceu a responsabilidade internacional do Estado.

No presente texto, vamos primeiramente fazer uma breve síntese descritiva da decisão. Em seguida, vamos comparar a recente decisão com o caso Nogueira Carvalho, mostrando os avanços em relação ao reconhecimento da responsabilidade estatal de proteção. Em seguida, apontarei algumas questões centrais que deixaram de ser abordadas pela Corte, a saber, a violação do art. 23 da Convenção e a responsabilidade de investigar os fatos. Por fim, discutirei sobre o importante processo de supervisão e implementação da decisão que se inicia com a vitória judicial.

Sales Pimenta era advogado ligado ao movimento de trabalhadores rurais com atuação direta na defesa dos direitos dos ocupantes da Fazenda do Pau Seco, no Pará. Foi assassinato em 1982, após assegurar judicialmente a manutenção da posse dos agricultores rurais. Muito embora houvesse provas testemunhais dos responsáveis por seu assassinato, tanto a investigação judicial como o processo criminal seguiram lentamente, até que em 2006 o processo foi extinto por prescrição da pretensão punitiva. A família de Pimenta ainda tentou obter indenização contra o Estado por danos morais considerando o excesso de prazo da ação penal, mas o pedido foi indeferido pelo STJ em 2021.

A morte de Sales Pimenta ocorreu antes do reconhecimento da competência da Corte pelo Brasil; então foi considerada violação à Convenção apenas a impunidade pela sua morte, e não o seu assassinato em si. A Corte declarou a responsabilidade internacional do Brasil por violação aos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (arts. 8 e 25 da Convenção), direito à integridade pessoal (art. 5) e direito à verdade.

A Corte ordenou onze medidas de reparação, com o foco principalmente nas medidas de satisfação (reparação não pecuniária de dano extrapatrimonial) e medidas de não repetição. As medidas não repetição ordenadas foram: (i) criação de um grupo de trabalho para identificar os motivos e as soluções da impunidade estrutural relacionada à violência contra DDH (ii) implementação de um protocolo unificado de investigação dos crimes cometidos contra DDH; (iii) revisão através de lei do Programa de Proteção aos Defensores e Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas; (iv) implementação de um sistema nacional de coleta de dados relacionados a casos de violência contra DDH; e (v) criação um mecanismo que permita a reabertura de investigações e processos judiciais, quando, em uma sentença da Corte, se determine a responsabilidade internacional do Estado. É importante ressaltar que o fato de a Corte ter ordenado tantas medidas de não repetição está diretamente relacionado ao reconhecimento de que o assassinato de Sales Pimenta não é um caso isolado, mas representante de uma falha estrutural de impunidade de atos de violência contra DDH.

As medidas de satisfação ordenadas são: (i) publicação da sentença no Diário Oficial, em um jornal de grande circulação e em sítios web do Governo Federal; (ii) realização de um ato público de reconhecimento de responsabilidade; (iii) nomeação de uma praça pública com o nome de Gabriel Sales Pimenta; (iv) criação de um espaço público de memória no qual seja valorizado, protegido e resguardado o ativismo de DDH. Outras medidas ordenadas foram o oferecimento de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico gratuito aos irmãos da vítima e o pagamento da indenização fixada na sentença.

A Corte Interamericana é pioneira em reconhecer os direitos de pessoas defensoras de direitos humanos, possuindo já uma consolidada jurisprudência na temática. Infelizmente, tal protagonismo deve-se em grande parte a uma situação fática de repetidos e constantes ataques contra as atividades de DDH, sendo a região uma das mais perigosas do mundo para se defender direitos humanos. A primeira vez que a Corte abordou de forma sistemática os direitos de DDH foi em 2008, no caso Valle Jaramillo y otros vs. Colômbia. Alguns casos abordam temas específicos, como discriminação em razão de gênero (Yarce y otras Vs. Colombia, 2016), a defesa do meio ambiente equilibrado (Kawas Fernandez vs. Honduras, 2009) e o direito de associação (Fleury y otros Vs. Haití, 2011). Em todos os casos, contudo, a Corte reconheceu a obrigação estatal de proteger DDH em razão da sua especial situação de vulnerabilidade e da importância das atividades realizadas para efetivação dos direitos humanos. No caso de violência contra DDH, o Estado possui o dever de prevenir sua ocorrência, mas caso ocorra, deve investigar e punir os responsáveis. O caso Sales Pimenta vem para reafirmar tal jurisprudência, estando de acordo com os já consolidados parâmetros interamericanos de proteção de DDH.

Os fatos do caso Sales Pimenta são muito parecidos aos discutidos no caso Nogueira Carvalho em 2006. Neste caso, tratava-se de DDH assassinado por grupos criminosos, em que o Estado falhou não apenas em proteger a vida da vítima, mas também de investigar os fatos e punir os responsáveis. O assassinato foi julgado por um júri popular, que absolveu os acusados pelo assassinato. A Corte afirmou que a análise dos fatos e das provas é tarefa dos tribunais domésticos, sendo a atribuição da corte regional verificar se o procedimento interno foi realizado de forma eficaz. Assim, a Corte não reconheceu a violação dos direitos convencionais, muito embora reconhecesse o importante papel dos DDH e as obrigações estatais de atuar em sua proteção. A análise da Corte na ocasião foi muito reduzida, concentrando-se em dez parágrafos, e não havia sido possível identificar claramente os motivos para a negativa. Em Sales Pimenta, a Corte oferece uma análise muito mais detalhada da obrigação estatal de investigar, afirmando que, muito embora se trate de uma obrigação de meio, o Estado deve provar que agiu diligentemente para punir os acusados e identificar as causas da violência. Assim, trata-se de uma importante evolução jurisprudencial da Corte.

Apesar de reafirmar a consolidada jurisprudência da Corte, algumas questões permanecem sem resposta no caso Sales Pimenta. Em casos passados, em situações fáticas muito semelhantes, a Corte havia declarado a violação do direito de participação política, previsto no artigo 23 da Convenção (Defensores de Direitos Humanos v. Guatemala e Chitay Nech v. Guatemala). O argumento seria de que o artigo 23 não protege exclusivamente o direito de se eleger, mas assegura o exercício da vida democrática em um país. Assim, a Corte tem ressaltado a vinculação entre as atividades dos DDH, a democracia e o Estado de Direito. Sales Pimenta era um sindicalista na época em que foi assassinado e a Corte não analisou a possível violação do art. 23. No caso Sales Pimenta, a questão não foi analisada provavelmente em razão da jurisdição temporal da Corte, mas é interessante se questionar se atividades sindicalistas poderiam ser consideradas atividades políticas a serem protegidas pelo artigo 23.

Uma outra peculiaridade do caso em questão é que a Corte não ordenou a obrigação de investigar, processar e punir os responsáveis pelo assassinato, ordem de reparação extremamente comum em casos semelhantes (Acosta v. Nicaragua e Defensor de Derechos Humanos v. Guatemala). No caso Sales Pimenta, havia ocorrido a prescrição penal. A Corte já se manifestou sobre a aplicação da prescrição na investigação de violações de direitos humanos, ordenando que não fosse aplicada para casos envolvendo graves e sistemáticas violações de direitos humanos (Velasquez Rodriguez v. Honduras e Gomes Lund v. Brasil) ou casos em que a prescrição ocorreu por má fé ou negligência estatal (Bulacio v. Argentina). O presente caso se enquadraria na segunda hipótese, dada a negligência estatal nas investigações. A própria Corte reconheceu a negligência grave do sistema de justiça no caso e a obrigação reforçada de diligência para investigar atos de violência contra DDH, mas ainda assim não ordenou a medida de investigação, sem apresentar justificativa.

Ainda, a Corte ordenou uma medida de não repetição relacionada ao tema: criação um mecanismo que permita a reabertura de investigações, mesmo quando ocorrida a prescrição, quando, em uma sentença da CorteIDH, se determine a responsabilidade internacional do Estado pela ausência de investigação. Evidentemente, é uma medida fundamental para casos futuros. Se implementado, tal mecanismo facilitaria o cumprimento de decisões da CorteIDH. Contudo, no caso concreto, os familiares de Sales Pimenta não terão acesso à tão esperada justiça, o que pode trazer frustração e desalento com a decisão final. A Corte deixou de apresentar justificativa para não ordenar a investigação, o que nos deixa com algumas perguntas: foi a prescrição de fato o que impediu a ordem de investigação? Seria uma flexibilização da jurisprudência, sendo um novo precedente para casos futuros? Seria uma reação ao baixíssimo nível de cumprimento das ordens de investigação? Como a decisão não aborda a questão, não há como responder a tais questões. Talvez em casos futuros possamos compreender melhor o posicionamento da Corte.

Por fim, é importante ressaltar que a luta pela efetividade dos direitos humanos não se encerra com a vitória judicial. A Corte ordenou importantes medidas de não repetição, que caso implementadas serão instrumentos fundamentais para fortalecer o trabalho diário desenvolvido por DDH. Em um momento de graves retrocessos democráticos, é difícil ver tais medidas sendo implementadas em um curto espaço de tempo. É fundamental que a sociedade civil esteja organizada para exigir o cumprimento da decisão da Corte interamericana e assim assegurar a implementação das medidas de não repetição.

Apesar de deixar alguns pontos em aberto, a decisão Sales Pimenta é, sem dúvida nenhuma, um marco para o direito interamericano e para o direito brasileiro. De Chico Mendes a Bruno Pereira, o Brasil tem demonstrado o seu fracasso institucional em proteger DDH e investigar atos de violência. As medidas de não repetição indicadas pela Corte nos oferecem um norte para reconhecer e fortalecer as atividades dos DDH.

  • Gabriela C. B. Navarro é professora da UFLA, doutora em direito pela Goethe Universität e mestra em direito pela UFSC. Pesquisa temas relacionados à Corte Interamericana de Direitos Humanos com especial enfoque em grupos indígenas.

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