Em abril deste ano, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha publicou o estudo “Detention by Non-State Armed Groups: Obligations under International Humanitarian Law and Examples of How to Implement them”, que compila e analisa dados das operações da organização relativos ao tema da detenção por grupos armados não-estatais. A estimativa global do CICV, no ano de 2021, era de que 100 grupos armados não-estatais teriam prisioneiros detidos. De forma geral, o estudo indica que esses indivíduos seriam: soldados ou oficiais pertencentes a Estados ou a grupos adversários; pessoas envolvidas no conflito de alguma forma; pessoas acusadas de crimes relacionados causalmente ao conflito; pessoas acusadas de crimes comuns cometidos na área sob controle do grupo armado detentor; e membros desses grupos, detidos por medidas disciplinares internas.
Além disso, diante da crescente proliferação dos conflitos armados não-internacionais (CANIs), se torna de suma importância compreender quais regras podem ser invocadas para legitimar a privação de indivíduos de sua liberdade nesse tipo de cenário. Também de acordo com o estudo do CICV “The Roots of Restraint in War”, de 2018, o número de CANIs havia dobrado entre 2001 e 2016, continuando a crescer desde então. A análise das regras aplicáveis, além de necessária para aumentar a segurança jurídica e proteção daqueles que se encontram sob o controle de facto do grupo, envolve diversas preocupações do Direito Internacional Humanitário (DIH), incluindo questões relacionadas à proteção da vida, ao respeito à dignidade humana e à proibição do uso da força.
Especificamente em relação às práticas de detenção, o Direito Internacional Humanitário (DIH) fornece uma base legal para privar certos indivíduos de sua liberdade tanto em conflitos armados internacionais quanto em conflitos armados não-estatais, mas de forma a restringir o direito de deter aos agentes estatais. Dessa forma, em CANIs em que o(s) grupo(s) armado(s) estão em conflito contra um ou mais Estados, apenas os últimos possuem previsão legal explícita que os permita privar indivíduos da sua liberdade. Além disso, não há prática uniforme suficiente ou opinio juris que justifique a formação de um direito consuetudinário que permita que os grupos armados não-estatais realizem detenções.
A respeito desse ponto, há grande controvérsia entre os pesquisadores do tema sobre a necessidade de uma base legal que justifique as detenções realizadas durante os CANIs. Por um lado, é possível argumentar que o direito de deter pode ser inferido do Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra de 1949, assim como do DIH consuetudinário, aplicando, por analogia, as regras de internamento civil à detenção de combatentes ou de pessoas participando diretamente das hostilidades. Por outro lado, o CICV — e a maior parte da doutrina — defende que são necessárias outras fontes para conferir legalidade à prisão, com regras encontradas fora do DIH, seja no direito doméstico do Estado, seja na legislação ou regramentos internos dos grupos armados, apesar de que este último ainda é uma fonte legal controversa.
De todo modo, como visto, os Estados são livres sob o direito internacional para privar indivíduos de sua liberdade, independente da classificação do conflito. Portanto, as atividades de detenção nos CANIs não existem em um vácuo jurídico; a dificuldade está na prática de detenção por grupos armados não-estatais, que não possuem autorização expressa para deter indivíduos sob as regras do direito internacional, conforme apontado por Zelalem Teferra, na publicação da International Review of the Red Cross, nº 903, de 2016.
Ainda, é importante fazer uma distinção entre os tipos possíveis de detenção, uma vez que cada um estará submetido a um conjunto diverso de regras. Para isso, o CICV considera, segundo o estudo de 2023, que existem dois tipos centrais nos CANIs: a detenção criminal e o internamento. Embora tenham tratamento diferente, ambos estão previstos no escopo do marco legal dos CANIs. O primeiro tipo cobre as detenções realizadas no contexto de processos criminais regulamentados pelo artigo 3º Comum às Convenções de Genebra de 1949. Já o segundo, por sua vez, diz respeito às detenções que não possuem relação com processos criminais, sendo reguladas pelo o artigo 6º do Protocolo Adicional II de 1977.
Em outras palavras, no primeiro caso, os indivíduos seriam detidos pelo (suposto) cometimento de atos criminosos relacionados ao conflito, incluindo violações do direito internacional. Portanto, a referência do artigo 3º comum às “sentenças e execução” alude a procedimentos de direito penal, definindo sentença como o julgamento pronunciado por um tribunal formalmente constituído, após considerar um réu culpado, bem como a punição imposta a um infrator criminoso.
No segundo caso, das internações, o artigo 21 da III Convenção de Genebra de 1949, relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra, fornece ao poder detentor uma base legal para “submeter prisioneiros de guerra ao internamento”, impossibilitando que eles peguem em armas ou voltem a participar do conflito. Já o artigo 42 da IV Convenção de Genebra permite o internamento de uma pessoa somente “se a segurança da Potência detentora o tornar absolutamente necessário”. Assim, apesar da inexistência do status jurídico de “prisioneiro de guerra” em CANIs, essas regras fornecem parâmetros para o tratamento dispensado às pessoas detidas durante esses conflitos.
No caso de detenções por internamento, há uma dificuldade em estabelecer o que constituiria uma justificativa suficiente de que a pessoa impõe um risco absoluto à segurança da potência detentora. Na prática, os Estados acabam determinando por si mesmos as atividades consideradas prejudiciais à sua segurança interna ou externa. Contudo, o CICV determina que a privação de liberdade apenas poderá ser realizada “se a segurança não puder ser salvaguardada por outros meios menos severos”. No caso das detenções por grupos armados não-estatais, as preocupações humanitárias continuam sendo extremamente relevantes, apresentando dificuldades adicionais de definição.
O estudo da CICV, objeto deste artigo, destaca que esses grupos possuem conhecimento das regras de DIH, prevendo medidas para o seu cumprimento. Ainda, os grupos entrevistados citam diversas razões pelas quais são opostos à violações aos direitos dos detentos, expondo que: a) ao tratar os prisioneiros de forma humana, eles aumentam o respeito mútuo às regras de DIH, consequentemente protegendo os seus integrantes quando detidos pelo inimigo; b) a tortura não é ferramenta efetiva para coletar informações relevantes sobre o conflito; e c) ao não utilizar práticas violentas, ganham o apoio da comunidade civil residente na sua região de atuação e da comunidade internacional.
Interessante notar que, segundo esse mesmo estudo, os grupos tomam medidas internas ativas de implementação das regras de DIH, assim como de punição dos seus integrantes pelo seu descumprimento. Em outros estudos, como a pesquisa conduzida em 16 países, “People on War”, realizada pelo CICV em 2020, apenas 27% dos entrevistados afirmaram que a tortura faz parte da guerra, enquanto 66% consideraram a prática errada. Não obstante, ao serem questionados se “um combatente inimigo capturado pode ser torturado para obter importantes informações militares?”, 48% das pessoas responderam “não” e 36% responderam “sim”.
O estudo de 2023 sobre grupos armados não-estatais indica as dificuldades na garantia de um julgamento justo das pessoas detidas em razão de acusações criminais, direito contido nas regras costumeiras 100 e 101. Buscando adequar-se às obrigações, alguns grupos reportam a utilização de sistema judiciário já existente, anterior ao conflito, enquanto outros optam por estabelecer os seus próprios tribunais e textos legais. No tocante a essas práticas, destaca-se o uso de cortes militares, independentes e até mesmo “cortes móveis”, que viajam entre as localidades sob controle do grupo.
Nessa linha, observa-se que grupos com baixo nível organizacional enfrentam maiores dificuldades na administração da justiça, frequentemente delegando essa responsabilidade aos seus comandantes militares. Assim, a imparcialidade dessas cortes deve ser questionada, especialmente em relação ao julgamento de estrangeiros (como apresentado pelo relatório da Human Rights Watch no caso dos jihadistas ocidentais detidos no nordeste da Síria em 2018).
Assim, embora os grupos armados compartilhem conhecimento de DIH e apontem o seu interesse em respeitar as regras de DIH, os detidos permanecem vulneráveis a maus tratos, condições desumanas, dificuldades no acesso a alimentos, saúde, remédios e outros serviços básicos. Logo, apesar dos motivos positivos de respeito ao DIH mencionados acima, os grupos armados também defendem diversas razões que levam ao seu descumprimento, entre elas a ausência de capacidade operacional para a sua implementação.
Por isso, um dos propósitos da CICV durante as visitas aos centros de detenção é a melhoria das condições de vida das pessoas mantidas sob custódia, fornecendo apoio para a construção de instalações, como cozinhas e sistemas de esgoto. Assim, resta evidente que a atuação de organizações como o CICV e a manutenção de relacionamentos próximos e diálogos abertos com as partes do conflito é essencial, seja em contextos de conflitos armados internacionais, seja em CANIs. Contudo, frente à fragilidade das regras de DIH aplicáveis aos conflitos não-internacionais, tais atividades se tornam ainda mais relevantes nesses cenários, garantindo o fortalecimento da proteção das pessoas detidas.
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Mestranda em Relações Internacional (PUC Minas). Mestranda em Segurança Internacional e Defesa (ESG -RJ). Bacharel em Direito (PUC Minas). Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Direito Internacional Humanitário (UnB).
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Coordenadora acadêmica. Estudante de Direito na UFRGS. Mentoranda do ASIL Women in International Law Mentoring Program. Embaixadora da World for Literacy Foundation desde 2020. Nominada “Melhor Oradora” na VIII Edição da Manuel Muñoz Borrero Competition.
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Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais na UFRGS e student member da UFRGS IHL Clinic.