O acesso à justiça e a desjudicialização de disputas comerciais internacionais: um caminho sem volta?

A Rede de Processo Civil Latino-americana foi constituída com o intuito de servir de locus para pesquisas e intercâmbios acadêmicos na área do Direito Internacional Privado, em particular, na sua relação com o Direito Processual.

Recentemente diversas atividades e temas foram desenvolvidos, merecendo atenção às manifestações do acesso à justiça, em particular e para alguns, por força do movimento de privatização ou desjudicialização  da soluções de conflitos em matéria comercial.

A busca por um acesso a uma ordem jurídica justa e equitativa passou a representar uma preocupação crescente na comunidade internacional, sobretudo a partir de sua institucionalização consolidada através das organizações internacionais que, no exercício de suas competências normativas, identificaram e expandiram princípios e regras destinadas à proteção e promoção dos direitos humanos. 

No contexto dos instrumentos transnacionais, cujas características fundamentais estão na origem deslocalizada da atuação dos Estados nacionais e na sua normatividade branda ou soft, adquiriram relevância os Princípios TRANSJUS de Acesso Transnacional à Justiça, aprovados na Assembleia Geral da Associação Americana de Direito Internacional Privado (ASADIP), em Buenos Aires, em 12 de novembro de 2016, representativos de um conjunto de princípios gerais – framework rules – que configuram, em última instância, instrumentos de coordenação e articulação da cidadania processual na esfera global e do acesso à justiça. 

O acesso à justiça é uma questão decisiva em termos de eficácia dos direitos. A sociedade contemporânea – de natureza complexa, articulada em rede, impactada pelo desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação (TICs) – contribuiu para uma dinâmica de mobilidade e internacionalização de fatores produtivos e do consequente aumento, não apenas de relações jurídicas pluriconectadas, mas, também, da litigiosidade transfronteiriça. Refletir sobre a evolução dos mecanismos de resolução de litígios que transcendem as fronteiras dos Estados nacionais implica refletir sobre o direito fundamental do acesso à justiça e à sua pluralidade. 

As dimensão e as formas de materialização do acesso à justiça não são uníssonas. O acesso à justiça é um desses fenômenos jurídicos multifacetados, cuja concretização é evolutiva, conforme as transformações sociais e os seus desafios dela surgidos.

Em particular, nas disputas pluriconectadas, a forma de sua solução está em constante evolução. Recente publicação realizada no contexto do 150 0 aniversário do International Law Association (ILA) pelo Max-Planck-Institut Luxembourg for Procedure Law, intitulada “White Paper 21 Dispute Resolution”, chama atenção aos diferentes meios que podem ser utilizados no contencioso internacional.

Afirma o documento que para além do recurso às cortes nacionais cujo desafio primordial reside no grau de confiança na justiça de outro Estado que, com exceção da União Europeia, nem sempre é elevado, diversos mecanismos –  judiciais, mistos, privados, públicos, heterocompositivos, autocompositivos, negociais –  são cada vez mais utilizados pelas partes em uma controvérsia pluriconectada.  

No campo da privatização da justiça, como se refere o documento aos mecanismos extrajudiciais de solução de conflitos, a arbitragem “há muito se tornou a justiça comum nos negócios internacionais” (RUIZ FABRI; RACINE, 2023, p. 10). Entretanto, para além das resoluções adjudicatórias de litígios, observa-se como tendência, quanto aos mecanismos privados de solução de disputa, o ressurgimento do interesse na mediação.

Em 2021, as estatísticas preliminares divulgadas pela da Câmara de Comercio Internacional –  CCI apontaram uma grande demanda pelos mecanismos de arbitragem e mediação. Quanto à mediação, em 2021, 80 novas solicitações foram contabilizadas e, em 2020, foram 77 casos.

No Brasil, em recente pesquisa “Mediação em Números – 10 anos 2012-2022” – realizada pelo Núcleo de Acesso à Justiça , Processo e Meios de Solução de Conflitos (Najupmesc) da FGV Direito SP e pelo Canal de Arbitragem, teve como objetivo radiografar a mediação, a partir de dados das sete principais câmaras de mediação existentes no país, entre as quais está a International Chamber of Commerce (ICC), constatou um crescimento exponencial na utilização da mediação.

Entre os benefícios da mediação na solução de disputas comerciais internacionais, estão, além da flexibilidade de seu procedimento, da eficácia usualmente lograda de suas soluções e do relativo baixo custo (em comparação com a arbitragem), o fato de que a mediação impulsiona a continuidade dos vínculos entre as partes e a permanência das relações comerciais internacionais. A continuidade da relação jurídica é, assim, uma das principais vantagens na escolha da mediação como uma forma de solução de disputas comerciais internacionais. Corrinne Montineri informa que “in the field of international trade, mediation is often cited as a flexible method that is well-adapted to solving disputes among merchants who seek to preserve long-term commercial and investment relations” (MONTINERI, 2019, p.1024).

Não obstante os benefícios e o recente crescimento da mediação como uma ferramenta para a solução de disputas no âmbito do comércio internacional, a sua utilização ainda provoca reações contraditórias, especialmente, em virtude do limitado efeito extraterritorial de um acordo logrado em base a um procedimento de mediação.

No âmbito da circulação transfronteiriça de acordos de vontades e de produtos judiciais, a harmonização do direito Internacional privado, se ocupou, notadamente, da recepção de sentenças arbitrais e/ou judiciais, tais como como exemplificam as Convenção de Nova Iorque sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras e a Convenção da Haia sobre Reconhecimento e a Execução de Sentenças Estrangeiras em Matéria Civil ou Comercial.

A mediação ressurge e se afirma pauta da harmonização  do direito internacional privado neste século, inicialmente, através de instrumentos de soft law, no campo das disputas entre investidor e Estado, como exemplifica a iniciativa da International Bar Association – IBA, que em 2012, adota as regras “IBA Rules for Investor-State Mediation”.

É, sobretudo, na Comissão das Nações Unidas para o Comercio Internacional – UNCITRAL que a mediação encontra um espaço de promoção. Embora desde 1980, a UNCITRAL tenha reconhecido o valor dos métodos autocompositivos com a aprovação, em 1980, de um Regulamento de Conciliação e, posteriormente, a Lei Modelo UNCITRAL sobre Conciliação Comercial de 2002, foi, somente em 2018 que se logra dois instrumentos fundamentais para a efetividade da circulação dos acordos transacionados a partir de mediação: Lei Modelo da UNCITRAL sobre Mediação Internacional e Acordos Internacionais Resultantes da Mediação e a Convenção das Nações Unidas sobre os Acordos de Transação Internacionais Resultantes de Mediação de 2018 (Convenção de Singapura). 

O mote principal da Convenção de Singapura é o estabelecimento de um mecanismo de implementação pública de acordos privados e, para tanto, a Convenção promove obrigações específicas de reconhecimento e execução dos acordos oriundos de um procedimento bem sucedido de mediação, possibilitando uma maior eficácia e mobilidade a tais acordos. 

O Estado brasileiro assinou a Convenção em 04 de Junho de 2021. Embora no domínio das relações comerciais internacionais seja de fundamental relevância a garantia de reconhecimento e de cumprimento das obrigações pactuadas na solução de uma disputa, por razões de difícil compreensão, apenas 11 países a ratificaram.

Ao prover um regime de cooperação jurídica para a recepção dos acordos oriundos de um procedimento de mediação, a Convenção de Singapura representa um avanço para o acesso transnacional à justiça, além de contribuir com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, ao representar um instrumento convencional de pacificação social, impulsionador da pavimentação de métodos não adjudicatórios, mas, criativos, inclusivos e cooperativos para a solução de disputas comercias transfronteiriças.

  • Professora Titular UFES. Membro da Associação Americana de Direito Internacional Privado e das Redes de Latino-americana e Internacional de Processo Civil Internacional. Coordenadora LABCODEX/CNPq.

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