Análise das biografias dos autores

Este post integra o Research Symposium Direito internacional ‘na palma da mão’: lendo as (entre)linhas dos manuais Brasileiros e introduz os resultados parciais da pesquisa sobre manuais brasileiros de direito internacional público (DIP). O presente texto explora a biografia dos principais autores de manuais de DIP no Brasil, identificando e analisando doze manuais, cuja lista completa se encontra no primeiro texto da série.

Abordou-se a biografia dos autores e mapearam-se as instituições de origem de suas formações acadêmicas, bem como os espaços de atuação dos autores – incluindo em alguns casos, o exercício de carreiras paralelas à academia. A partir dos dados, identificaram-se marcadores regionais e sociais. Ressaltamos que, diante da dificuldade de mensurar marcadores raciais, e considerando fundamental a percepção do próprio indivíduo sobre si mesmo, os resultados parciais da pesquisa não abordam elementos de raça. Contudo, reiteramos a importância desse marcador e questionamos o papel da estrutura da academia na perpetuação de hierarquias racializadas.

Para além da análise de dados bibliográficos desses autores, este ensaio articula hipóteses e observações de natureza qualitativa e busca apresentar um breve retrato de quem escreve os manuais de DIP no Brasil. É, nesse sentido, a partir do mergulho na biografia dos manualistas brasileiros, que tecemos comentários sobre problemáticas da academia, tencionando os espaços de forma a torná-los mais plurais.

Sudeste e o invisible college brasileiro

Dos manuais analisados, nota-se a predominância de autores conectados ao sudeste brasileiro. À exceção de Dominique Carreau, francês cuja carreira se concentra no seu país natal, todos os outros passaram por instituições da macrorregião citada, como discentes ou docentes. A presença de universidades francesas nos currículos analisados é especialmente relevante e será analisada posteriormente.

Os dados apontam que a PUC-SP e a USP despontam como as universidades mais presentes nas formações acadêmicas analisadas, juntas marcando a carreira de seis dos treze autores. Dentre eles, destacamos os casos de Amaral Jr., que realizou sua formação na USP, e de Husek, cuja trajetória acadêmica ocorreu integralmente na PUC-SP. Universidades cariocas também estão presentes nas biografias analisadas, constando no currículo de três dos autores.

Outros tiveram sua trajetória de graduação e pós-graduação em locais distintos. Varella, por exemplo, graduou-se na UFV (MG), recebeu o título de mestre pela UFSC (SC) e cursou doutorado nas Universidades de Paris-Sorbonne (FRA).

Em relação à docência, apesar da contínua preponderância do Sudeste, há relativa maior diversidade regional do que no mapa 1. O estado de São Paulo se sobressai dentre os locais onde os autores lecionam. Em conexão com a presença do Instituto Rio Branco primeiramente no Rio de Janeiro, e desde 1975 no Distrito Federal, esses estados aparecem em evidência no mapa acima.

Ao compararmos a formação acadêmica dos autores (mapa 1) e sua atuação como professores (mapa 2), demonstra uma tendência a “exportação” de acadêmicos formados no Sudeste para outras regiões. Apesar de nenhum dos autores ter sido graduado ou pós-graduado no centro-oeste, as universidades da região são destino dos autores enquanto docentes.

Oscar Schachter batizou de “colégio invisível” (invisible college) a comunidade profissional dos advogados internacionais, dispersa por todo o mundo e engajada em diversas ocupações, dedicado à mesma iniciativa intelectual. A partir dos dados apresentados, propõe-se que o “invisible college” brasileiro torna-se mais visível à medida em que nos aproximamos do Sudeste (ao menos no que diz respeito à comunidade epistêmica dos manuais). Se no plano internacional o Brasil se encontra na semiperiferia do direito internacional, no plano interno vemos que algumas regiões são mais periféricas do que outras. A partir da realidade dos manuais, pode-se inferir que, se existem abordagens brasileiras do direito internacional, essas abordagens são norteadas a pelo pensamento de autores do Sudeste.

Influências francesas

Além do Brasil, a França destaca-se como principal destino universitário entre os autores dos manuais. Esse dado, somado à grande incidência de autores e obras francesas citadas nos manuais, indica uma forte conexão entre a França e os manuais de direito internacional brasileiros.

Dos treze autores analisados, seis possuem estudos de graduação, mestrado ou doutorado na França. Das universidades francesas, a Pantheon-Assas e Pantheon-Sorbonne marcaram a trajetória de um número significativo de autores. Dentro deste espectro francófono, se destaca o manual escrito pelo jurista francês Carreau em parceria com Bichara, franco-brasileiro que possui formação majoritariamente no país europeu.

Mesmo em manuais cujos autores não estudaram na França, as fontes citadas marcam a influência francesa. É o caso, por exemplo, do Manual de Celso Mello, no qual a bibliografia é composta de aproximadamente 30% de autores franceses. No Manual de Accioly, 37% das obras são citadas no idioma francês.

Atuação profissional

A maioria dos autores analisados atuou como professor de direito internacional (público ou privado) em universidades brasileiras durante parte considerável de sua vida profissional. Além do magistério, outros cargos e profissões podem ser elencados, como Juiz Federal do Trabalho; Ministro do Supremo Tribunal Federal, juiz em corte internacional, advogado, diplomata e Ministro Interino das Relações Exteriores. Grande parte dos autores também atuou em institutos, comitês e fundações nacionais e internacionais que promovem o direito internacional.

Percebem-se possíveis conexões entre a atuação profissional dos autores analisados e os temas abordados em seus manuais. Por exemplo, é possível que a atuação de Albuquerque Mello no Tribunal Marítimo como juiz e vice-presidente tenha impactado seu Manual em 6 capítulos que versam sobre o direito do mar; os estudos de Amaral Jr. em direito do consumidor possivelmente fizeram-no abordar o tema com certo detalhe em seu Manual; cerca de um quarto do Manual de Rezek versa sobre tratados internacionais, além de haver constantes referências ao direito doméstico brasileiro, o que pode remeter, respectivamente, à sua atuação na Corte Internacional de Justiça e ao seu cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal; Husek, talvez por ter atuado como juiz na matéria de direito do trabalho, aborda a área já na introdução de seu Manual, além de dedicar um capítulo inteiro à OIT.

Destaca-se da amostra analisada a relativa baixa prevalência de professores com dedicação exclusiva (aproximadamente 30%), isto é, que praticaram o ensino sem a concomitância de outras profissões. Pode-se elaborar como hipótese para explicar esse fenômeno o fato de que, historicamente, a prática profissional não acadêmica foi um fator de legitimação para o exercício do magistério em direito. A profissionalização do professor-pesquisador em direito é um fenômeno mais recente.

Marcadores de gênero

A biografia dos autores trabalhados é atravessada por marcadores sociais, dos quais destacamos o de gênero. Dos doze manuais analisados, todos os autores são homens. Para além disso, da análise dos manuais, percebe-se que a quase totalidade da bibliografia utilizada também é de autores homens. Estes figuram aproximadamente entre 87.3% e 99.2% da bibliografia empregada nos doze manuais. Entre as autoras mais citadas, destaca-se Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, Flavia Piovesan, Margarida Salema d’Oliveira Martins e Nadia de Araujo.

Preliminarmente, é necessário destacar que não há qualquer indício que os manuais tenham deliberadamente preterido trazer autoras mulheres. Contudo, infere-se dos dados que não houve preocupação em equilibrar os manuais no que diz respeito à representatividade de gênero, de forma a trazer uma contribuição mais proporcional entre homens e mulheres. Nota-se também a utilização de linguagem pouco afeita à representatividade. O vocabulário utilizado por vezes mostra-se ultrapassado frente às reflexões acerca da influência da linguagem para as mudanças sociais e políticas, vistas as relações de poder presentes nesses códigos. Cientes de que a palavra tem um papel primordial para refletirmos nosso entorno, pois vivemos na linguagem e pela linguagem, é importante mencionar o lugar de invisibilidade e subordinação que as mulheres ocupam nesse vocabulário.

Reforça-se que não se aduz que nenhum dos autores tenham intencionalmente se valido de tal gramática para suprimir quaisquer direitos conquistados pelas mulheres, mas se percebe um descompasso entre a linguagem utilizada e a busca por um direito internacional mais plural. Mesmo ciente que a presente crítica falha ao analisar gênero sob o prisma do limitado binarismo homem-mulher, entende-se imprescindível atentar para esse aspecto dos Manuais, enquanto fração de um problema estrutural.

Conclusão

O presente texto buscou ler nas ‘entrelinhas’ dos manuais, a fim de mapear e refletir sobre quem são os autores dos manuais de direito internacionais no país. Dos dados analisados, percebe-se que o retrato da comunidade epistêmica dos manuais de Direito Internacional reflete autores com marcadores sociais semelhantes – a predominância da região Sudeste do Brasil e da França na formação dos autores, e do gênero masculino entre autoria e citações nos manuais – além de trajetórias educacionais e profissionais correlatas. Apesar de revelarem apenas um fragmento da realidade da academia brasileira de direito internacional, os dados dos manuais suscitam reflexões que vão além das suas páginas.

Atenta-se, nesse sentido, para a importância da criação de uma academia plural, que se engaje em abrir espaços na pequena comunidade de advogados internacionais no Brasil. Os manuais são chave para moldar a produção de conhecimento do direito internacional e, desse modo, encorajar maior diversidade em quem escreve esses manuais é essencial para a democratização da disciplina.

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