Poucas instituições na arquitetura jurídica internacional podem se orgulhar de perseverarem tanto, sobretudo se considerarmos o papel de “herdeira jurisprudencial” que a Corte Internacional de Justiça possui em relação à sua antecessora, a Corte Permanente de Justiça Internacional, criada na década de 1920. Quais os critérios a serem utilizados para mesurar a decadência ou o definhar de uma instituição? Neste ensaio, tento verificar a suposta existência de uma crise na Corte Internacional de Justiça através de três aspectos. Começo analisando sua atividade judicial recente. Num segundo momento, verifico o interesse acadêmico no estudo da Corte e de sua jurisprudência para tentar identificar o impacto na ciência do direito internacional. Procedo a uma tentativa de reflexão sobre sua função no ordenamento internacional. Nesta seção, considero duas significativas críticas comumente feitas à Corte. Por fim, realizo algumas prospecções em relação ao futuro da Corte e o papel do Brasil.
A atividade judicial da Corte Internacional de Justiça na atualidade é uma das mais substanciais de sua história, tanto quantitativa quanto qualitativamente. A Corte emitiu em 2019 uma proeminente opinião consultiva sobre o Arquipélago de Chagos, bem como sentenças importantes em controvérsias entre países asiáticos, americanos, europeus e africanos. Seu procedimento está passando por um processo de revisão e a Corte parece particularmente atenta a aperfeiçoar gradualmente seus poderes processuais para garantir uma “boa administração da justiça internacional”. Adicione-se o fato de que a Corte rapidamente reagiu à pandemia implementando audiências online e retomando sua atividade judicial em maneira remota.
Casos relevantes aguardam o desenrolar do procedimento no docket da Corte. Seus quinze casos variam de pontuais delimitações de fronteiras (que ainda assim trazem inovações processuais, como o referendar democrático da jurisdição) até significativas e sensíveis questões envolvendo imunidades. Para mencionar apenas dois, a Corte da Haia no momento considera a questão do Genocídio da minoria Rohingya, em ação movida pela Gâmbia contra Myanmar; bem como discute intrincados problemas na relação bilateral entre Irã e Estados Unidos – tanto em relação a bens quanto a sanções impostas. Tratam-se obviamente de dois casos bastante significativos para os Estados envolvidos, mas também para a comunidade internacional como um todo. A contribuição da Corte para o a solução de controvérsias internacionais parece promissora.
Apesar do que dizem seus críticos, tanto o impacto para a solução das específicas controvérsias quanto o impacto no direito internacional continuam pronunciados. Em relação à sua jurisdição, 74 Estados reconhecem-na como compulsória através da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória (também conhecida como cláusula Raul Fernandes). Embora em alguns casos a aceitação seja feita com reservas, a jurisdição compulsória revela que Estados confiam na ideia de permitirem a um órgão terceiro a resolução de uma controvérsia. Dos 74, pouco mais de uma dezena são Estados americanos. É um número talvez pequeno em relação à totalidade de Estados, mas significativo pelo fato de continuar em crescimento – enquanto outros tribunais internacionais claramente enfrentam os ventos áridos das resistências, dos backlashes e das contestações.
Um exame de sua atividade judicial – tanto das sentenças, opiniões consultivas, medidas provisórias e decisões preliminares recentemente proferidas – quanto dos casos que futuramente será chamada a decidir sugere que a Corte vive num período de intenso funcionamento. Sob esse prisma, ela parece cumprir com razoável eficiência a sua função de órgão de solução de controvérsias à disposição dos Estados. Não há sinal de crise.
A segunda linha investigativa que se descortina então é de saber se a Corte Internacional de Justiça continua impactando de maneira expressiva o ordenamento da comunidade internacional. É difícil nesse espaço verificar a influência recente das considerações da Corte em diversas áreas do direito internacional. Basta mencionar talvez que a Comissão de Direito Internacional – o órgão responsável não só pela codificação, mas também pelo desenvolvimento progressivo do direito internacional – continua a prestar significativo tributo aos entendimentos da Corte. Um exame mais impreciso – mas igualmente revelador – talvez seja o de verificar no âmbito acadêmico os estudos que têm como objeto ou que lançam os olhos à prática da Corte da Haia. Nesse sentido, a Corte Internacional de Justiça continua sendo objeto de estudo e atenção de acadêmicos e de trabalhos monográficos pontuais. Há um crescente interesse nos estudos sobre o processo perante a Corte, e de que maneira esse procedimento é utilizado também em outras Cortes internacionais. Estuda-se também os eventuais diálogos (ou monólogos?) da Corte com outros tribunais da constelação judiciária internacional. Basta pensar em livros recentes sobre a Corte (a)(b)(c) ou utilizando-se da jurisprudência da Corte para construir outros argumentos (a)(b)(c)(d). A jurisprudência da Corte Internacional de Justiça permanece sendo um ponto de partida incontornável para a análise do sistema jurídico internacional.
Um ponto de relativa inflexão na ciência jurídica envolve a função que a Corte da Haia deveria desenvolver no sistema internacional. Para alguns, a Corte deveria assumir uma postura mais proeminente como uma verdadeira corte de justiça internacional, afastada de seus contornos arbitrais¹. Não é nova a ideia de que a “Corte Mundial” seria um componente catalizador de uma ideia publicista similar ao “Estado de Direito”. Essa ideia reverbera pouco no ethos do contencioso internacional.
Um olhar histórico sobre a construção da ideia de jurisdição internacional permite afirmar que a Corte enquanto experiência internacional é um sucesso. Isso não significa que críticas não podem ser formuladas à atividade da Corte. Duas das críticas são avançadas nesse sentido por diferentes grupos de acadêmicos e práticos. A primeira é que o papel da Corte seria o papel secundário que possui nos grandes conflitos mundiais. De acordo com essa crítica, a Corte conservaria seu caráter essencialmente “arbitral”, sem participar de conflitos que envolvem as principais tensões do cenário internacional. Contudo, há também verdade no fato que resolver controvérsias “menores” diminui as tensões entre os Estados e evita o escalamento de atritos. A segunda crítica poderia ser sintetizada no menor impacto dos casos no direito internacional. Minha opinião é que a segunda crítica faz muito menos sentido do que a primeira. Obviamente há espaço para significativas (e difíceis) mudanças no procedimento da Corte bem como instrumentos processuais que a Corte poderia eventualmente refinar: a participação de Organizações Internacionais, uma abertura maior para a sociedade civil particularmente envolvida nos contenciosos, regras mais claras em relação à prova científica e uso de experts, bem como maior transparência em relação às suas objeções preliminares². Todavia, necessidade de reforma e aprimoramento não conduz necessariamente a conclusão de crise; pelo contrário, existe interesse dos clientes de que o processo seja mais célere e eficiente.
Isso obviamente leva às reflexões sobre o futuro de uma Corte que, até o momento, não parece estar em crise. Quando escreveu sobre o cinquentenário da Corte, o professor Luigi Condorelli dizia que, até o momento, a “antiga Dama” do Direito Internacional resistia à usura do tempo sem criar rugas². Esta é certamente uma afirmação aberta ao debate, sobretudo à luz de alguns formalismos exacerbados assumidos em certos julgamentos, também recentes. Fato é que permanece uma instituição que cumpre sua função e ocupa um papel central no sistema jurídico internacional, bem como para os estudiosos desse sistema.
Em síntese, a Corte parece continuar a desempenhar com solenidade e autoridade a função para a qual foi desenhada. As expectativas de outras funções ou de um maior ativismo por parte da Corte podem ser um interessante desenvolvimento futuro, mas sua ausência não compromete a importância presente.
A pergunta final que esse post inaugural se coloca é sobre o papel do Brasil em relação ao mais antigo órgão jurisdicional permanente internacional. Também aqui as perspectivas são positivas. Do ponto de vista da participação, o Brasil continua sendo um dos países que mais elegeu juízes da Corte e que talvez tenha tido, por mais tempo, juízes, além dos membros do Conselho de Segurança. Por um lado, é de se notar que o Brasil participou ativamente em recentes pedidos de opiniões consultivas. A participação brasileira é inclusive mais engajada comparativamente com sua prática anterior. Isso parece demonstrar uma bem-vinda política jurídica externa em relação aos processos de formação de normas no interior de procedimentos consultivos. Já a não utilização da Corte pelo Brasil pode ser percebida de diversas maneiras. Uma delas é talvez certa resistência ao contencioso internacional. A outra é a bem-sucedida diplomacia brasileira em uma série de disputas. Uma análise mais aprofundada poderá revelar com mais precisão essa relação.
Resta inegável, porém, que a política jurídica externa brasileira necessita continuar atenta – e por que não, numa liderança sul-americana – aos acontecimentos na Haia. Se considerarmos os rumores que por vezes reverberam sobre um potencial uso maior da atividade consultiva da Corte para questões de meio ambiente e mudança climática ou um revisitar da questão nuclear, pode-se pensar numa atividade ainda mais auspiciosa. Tanto da Corte, quanto do Brasil.
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1. Nesse sentido, ver CASSESE, Antonio. The International Court of Justice: It is High Time to Restyle the Respected Old Lady?, in CASSESE, Antonio (org). Realizing utopia: the future of international law. Oxford: OUP, 2012. 2. Sobre a questão, ver PALCHETTI, P.; LIMA, L.C. Os 70 anos da Corte Internacional de Justiça: retrospecto e perspectivas futuras do principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas. In: Liliana Lyra Jubilut; João Carlos Jarochinski Silva; Larissa Ramina. (Org.). A ONU aos 70:contribuições, desafios e perspectivas. 1ed.Paranà: UFPR, 2016, p. 313-353.
3. CONDORELLI, Luigi. La Cour internationale de justice: 50 ans et (pour l’heure) pas une ride. European Journal of International Law, vol. 6, 1995, pp.388-400.
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Professor de Direito Internacional Público da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG. Membro da Diretoria da ILA-Brasil.