Reestruturação da governança financeira global sob a liderança do Brasil no G20

Em 2024, o Brasil assumiu a presidência rotativa do G20, grupo composto pelos dezenove países das maiores economias do mundo[1], além da União Africana e a União Europeia. Trata-se, entre outros aspectos, de uma oportunidade e responsabilidade para o Brasil liderar a agenda global referente à reforma e desenvolvimento do sistema financeiro internacional.

A reforma da governança do sistema financeiro internacional é uma das prioridades para a presidência do G20 pelo Brasil, compondo um dos eixos temáticos do grupo neste ano de 2024. Em janeiro deste ano, o Grupo de Trabalho sobre Arquitetura Financeira Internacional entendeu que a busca por uma arquitetura financeira mais eficaz e representativa deve ser o aspecto dominante nas propostas a serem apresentadas pelo Grupo. Entretanto, no âmbito do G20 propriamente, não foi disponibilizado ainda material com estratégias ou táticas mais claras para dar conta dessa agenda.

O presente texto contribui lançando luz sobre desafios que a discussão do tema tem enfrentado no âmbito do G20 e resgatando algumas iniciativas relacionadas à reforma do sistema internacional nos últimos anos, que podem inspirar a agenda daqui para frente.

A reforma do sistema financeiro internacional: uma discussão em andamento

O tema da reforma do sistema financeiro internacional não é novo na agenda do G20, tendo aparecido mais pronunciadamente na declaração do G20 de 2009, ocorrido em Londres. Cabe mencionar que o grupo havia se consolidado como um grupo em nível de cúpula de chefias de Estado apenas na reunião de 2008, em Pittsburgh, na sequência da eclosão da Crise Financeira Global (CFG).

Nesse contexto, as discussões de 2009 influenciaram principalmente (i) a revisão da fórmula de definição de quotas do Fundo Monetário Internacional (FMI), de 2013, que teve por base os acordos de reforma de quotas e de governança de 2010 e que visou produzir uma fórmula que melhor refletisse o peso das posições relativas dos membros do FMI na economia global nas distribuição de cotas da instituição, que representam poder de voto e (ii) a reforma no poder de voto no Banco Mundial, em 2010.

Na última década e meia, esse espírito reformador não avançou muito, mas isso não significa que o ambiente do setor financeiro internacional tenha ficado menos desafiador. 

Nesse período, consolidou-se um incremento do crédito a partir da China e reversões consideráveis nas dinâmicas das taxas de juros no mundo todo no sentido de seu incremento, pressionadas recentemente pelas crises causadas pela adoção de medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia de Covid-19 e pelo conflito na Ucrânia. Esse cenário tem gerado preocupação quanto à solvência de países deficitários e em desenvolvimento, inclusive quanto ao acesso desses países a linhas de crédito para rolar suas dívidas.

Nesse sentido, ao proporem uma agenda para a presidência indiana no G20 no ano de 2023, Eichengreen e Gupta (2022) chamaram atenção para tendências da finança global, e recomendaram incentivar o incremento de linhas de swap entre autoridades monetárias, para evitar situações de insolvência em razão da menor liquidez do mercado. Igualmente, pode-se mencionar, por exemplo, a discussão sobre o risco de superendividamento (surendettement) de países pobres na recente Cúpula por um Novo Pacto Financeiro Global, iniciativa do governo francês ocorrida entre os dias 22 e 23 de junho de 2023[2].

O retorno do tema às prioridades do G20 neste ano de presidência rotativa do Brasil tem como pano de fundo essas questões.

O avanço descentralizado da agenda

Com efeito, os fóruns multilaterais de cúpula têm oferecido resultados limitados em relação à reforma do sistema financeiro internacional desde o começo da década de 2010. No entanto, a agenda do G20 pode tirar proveito da análise de uma série de iniciativas descentralizadas, que têm surgido no âmbito dos mercados internacionais no período recente.

São iniciativas que ajudam a prover liquidez ao sistema financeiro, reduzindo o risco de insolvência de países. De maneira geral, pode-se categorizar essas iniciativas em dois grupos:

Há, por um lado, estratégias calcadas na institucionalização de organizações plurilaterais que mimetizam e concorrem com as tradicionais Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) fundadas a partir contexto das Conferências de Bretton Woods, em 1944, ou seja, o FMI e as instituições que compõem o Grupo Banco Mundial. Cabe, nesse sentido, mencionar, por exemplo, o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo Contingente de Reservas (CRA), estruturados no âmbito dos BRICS a partir de sua VI Cúpula ocorrida em Fortaleza, em 2014, bem como outras iniciativas de criação, na última década e meia, de organizações internacionais, como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB), nas quais há constante presença de países do G20.

Nesse âmbito, é preciso destacar que a agenda dessas instituições já avança para iniciativas de articulação, que pretendem influenciar as discussões tidas no G20, invertendo a dinâmica que sucedeu a eclosão da CFG.

Nesse sentido, no contexto de um retiro de líderes de bancos de desenvolvimento no final de abril de 2024, houve a edição de uma Nota de Ponto de Vista anunciando medidas conjuntas para trabalhar de forma mais eficaz como um sistema e aumentar o impacto e a escala de sua atuação. O documento foi assinado pelos líderes do Grupo Banco Mundial, NDB, AIIB e de um conjunto de outras instituições[3]. A Nota trata de resultados e perspectivas em dimensões relacionadas ao incremento da capacidade de financiamento por parte das instituições signatárias, impulso a ações voltadas às mudanças climáticas, fortalecimento da colaboração em projetos no nível dos países, mobilização de investimentos privados e melhoria da efetividade e do impacto dos projetos para o desenvolvimento. Ela é apresentada como desdobramento da declaração conjunta feita pelo grupo em 2023, voltando-se também a fornecer insumos para as discussões sobre bancos de desenvolvimento no âmbito da própria presidência brasileira do G20 e em outros fóruns de política globais.

Em junho, o Grupo de Trabalho sobre Arquitetura Financeira Internacional do G20 anunciou ter avançado no consenso para reforma dos bancos de desenvolvimento e para a inclusão dos países devedores nas discussões sobre a dívida externa.

Por outro lado, para além da criação de organizações internacionais, há outras estratégias que se afirmam na forma de iniciativas bilaterais, que envolvem, por exemplo, a celebração de acordos sobre linhas de swap entre autoridades monetárias, cujo volume de utilização foram incrementados após a CFG (Richtmann; Steininger, 2023); o recente anúncio, por parte do Banco Mundial, de hipóteses de suspensão de obrigações financeiras de países em situação de crise, representando uma nova tendência de contratualização de condições para suspensão de obrigações ligadas à dívida internacional, envolvendo também países do G20; bem como os acordos para reduzir a necessidade de aquisição de Dólares como moeda internacional de reserva especialmente para o comércio internacional, a exemplo do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), envolvendo Brasil e Argentina, e os acordos que a China tem celebrado para liquidar transações comerciais em Renminbi. Esse conjunto de iniciativas bilaterais celebrados por Estados entre si e entre Estados e organizações internacionais, evoca para o sistema financeiro internacional uma imagem que recorda a tigela de espaguete (spaghetti bowl), familiar à literatura de comércio internacional desde o trabalho de Bhagwati (1995).

Não se ignora que cada uma dessas estratégias possa ter também um sentido de busca por consolidação de uma zona de influência no sistema financeiro internacional, especialmente em um contexto de tensionamento entre China e Estados Unidos, mas o Brasil precisa entender esse conjunto de iniciativas a partir de uma perspectiva consolidada, se quiser aproveitar sua presidência no G20 para apontar uma agenda efetiva de reforma do sistema financeiro internacional. Ainda que haja pontos de sobreposição e atrito entre elas, todas são parte de um mesmo fenômeno, derivado da demanda por liquidez no sistema financeiro internacional em um contexto desafiador.

Conclusões

Diante do exposto, entende-se que as discussões que deverão ser realizadas no G20 ganhariam ao incorporar considerações sobre as limitações da discussão sobre a reforma do sistema financeiro internacional no âmbito do G20 no período recente e a forma como iniciativas descentralizadas têm buscado dar conta das necessidades globais de liquidez. Por enquanto, a documentação e materiais tornados públicos em relação à primeira reunião do Grupo de Trabalho sobre Arquitetura Financeira Internacional revelaram pouco sobre o conteúdo das discussões, bem como sobre seu sentido estratégico ou tático.

A sistematização das iniciativas de reforma do sistema financeiro internacional que têm surgido de maneira descentralizada, na forma da celebração de acordos bilaterais ou da criação de instituições internacionais, pode servir como primeiro passo para a proposição de uma agenda efetiva de reformas. Cumpre notar que essas iniciativas são produto de um mesmo contexto e estão estreitamente inter-relacionadas, cabendo sua integração em um programa de orientação política em nível internacional.


[1] África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos da América, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia.

[2] Vale notar, no entanto, que esse tema não recebeu o mesmo destaque na agenda trazida pelo Palácio do Eliseu ao final das reuniões que compuseram a Cúpula.

[3] Eram elas o Banco Africano de Desenvolvimento (AfDB), Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB), Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa (CEB), Banco Europeu para Reconstrução e Desenvolvimento (EBRD), Banco Europeu de Investimento (EIB), Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e Banco Islâmico de Desenvolvimento (IsDB).


REFERÊNCIAS

BHAGWATI, Jagdish. US Trade Policy: The Infatuation with FTAs. Discussion Paper Series No. 726. Nova Iorque: Universidade de Columbia. 1995.

EICHENGREEN, Barry; GUPTA, Poonam. A Financial Agenda for India’s G20 Presidency. Project Syndicate. 2022.

RICHTMANN, Mathis; STEININGER, Lea. From bazooka to backstop: the political economy of standing swap facilities. Cambridge Journal of Economics, Cambridge, v. 47, n. 4, p. 681-702, 2023.

  • Doutor e Mestre em Direito Econômico e Financeiro pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bacharel em Direito pela mesma instituição, com período de estudos na Universidade de Lucerna (Suíça). Pós-Graduado em Administração Pública no Século XXI pela Escola de Administração da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Advogado e membro da carreira de Analista de Políticas Públicas e Gestão Governamental da Prefeitura do Município de São Paulo.

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