Uma vitória – vazia e ligeiramente homofóbica – para os direitos LGBTIQ+? Fedotova e outros v Rússia

O Tribunal Pleno do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) consolidou sua jurisprudência quanto ao reconhecimento legal das relações homoafetivas no caso “Fedotova e outros v Rússia” (o Caso Fedotova). Dessa forma, houve avanço em uma pauta fundamental que tem ocupado, para o bem ou para o mal, muito tempo e energia dos defensores do movimento LGBTIQ+ ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, a vitória pode ser considerada vazia: apesar de tecnicamente obrigada pelo julgamento, é improvável que a Rússia cumpra a decisão, visto que deixou a jurisdição do Tribunal devido à invasão da Ucrânia; além disso, o raciocínio técnico do Tribunal foi, por vezes, preocupante, ainda que o resultado geral possa ser lido como positivo.

O Caso Fedotova trata de três casais formados por indivíduos do mesmo sexo (dois dos casais se separaram enquanto o caso estava pendente no TEDH), os quais tiveram negado o seu direito ao casamento ou ao reconhecimento do seu relacionamento por qualquer meio legal na Rússia. Baseados nessa negativa, eles alegaram a violação ao seu direito à vida privada e familiar (Artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, CEDH); e, também, ao seu direito de não sofrer discriminação (Artigo 14º da CEDH, o qual, na jurisprudência do TEDH, precisa ser vinculado a outro direito, o que, no caso, levou à combinação dos Artigos 14º+8º).

Considerando as alegações, o TEDH consultou uma variada gama de legislações internacionais, regionais e domésticas sobre o reconhecimento legal da relação entre indivíduos do mesmo sexo. Isso foi feito para dar suporte ao argumento do consenso interpretativo, o qual aventa que o TEDH pode adotar posicionamentos avançados em relação a políticas sociais quando há consenso suficiente nesse sentido, mesmo que o Estado afetado tenha uma posição diferente. Em geral, esse exercício quer dizer examinar o que outros membros do Conselho da Europa fazem (o que o Tribunal fez, paras. 65-67), mas, conforme mostrou Dzehtsiarou em seu livro chave sobre essa técnica interpretativa, é também possível ir mais além. Em áreas sensíveis, o Tribunal pode escolher usar Direito Internacional dos Direitos Humanos global ou regional, mesmo de outras regiões. Isso inclui a Corte Interamericana, cuja Opinião Consultiva importantíssima sobre os direitos de pessoas com diversidade de gênero e reconhecimento de relações homoafetivas foi usada pelo TEDH.

Analisando a reivindicação relativa ao Artigo 8º, o TEDH tratou o dispositivo legal da mesma forma como o fez em sua jurisprudência acerca dos direitos LGBTIQ+ de forma geral. O Tribunal evitou o Artigo 12º da CEDH, que aborda especificamente o direito ao casamento, porque entende o texto como claramente heteronormativo. O artigo afirma que “A partir da idade núbil, os homens e as mulheres têm o direito de se casar e de constituir família”. Eu, pessoalmente, não vejo como a linguagem utilizada denota que o casamento seria somente entre homem e mulher, dado o uso do plural (embora note-se que a tradução oficial em português coloca homem e mulher no singular), mas o TEDH consolidou essa interpretação na sua jurisprudência (veja os diversos julgamentos citados no para. 165) – o que, talvez, acena para uma latente homofobia, a qual irei discutir em seguida.

De volta ao Artigo 8º, o TEDH afirma que o direito à vida privada e familiar se estende para “a possibilidade do indivíduo desenvolver a identidade social dele ou dela” (para. 143, note o uso de pronomes binários, uma especulação para outro momento), abrangendo um maior espectro de relações, incluindo relacionamentos afetivos. O TEDH, então, declarou que todos os Estados Membros do Conselho da Europa têm a obrigação positiva de prover o reconhecimento legal de relações entre indivíduos do mesmo sexo, apesar de cada Estado poder decidir se o reconhecimento será por meio do casamento ou por outra forma (paras. 164-165). O fato do TEDH aceitar a imposição de diferentes graus de reconhecimento legal também está relacionado com a relutância em equalizar relacionamentos homoafetivos e relacionamentos cisgêneros e heteronormativos. Em outras palavras, o TEDH insiste que os Estados têm uma margem “consideravelmente reduzida” de apreciação no tocante ao reconhecimento de relacionamentos homoafetivos (para. 187), mas uma margem “mais extensa” quando se trata de determinar “a natureza exata do regime jurídico que será disponível para casais do mesmo sexo, o que não necessariamente deve ser na forma do casamento” (para. 188).

Em seguida, o TEDH abordou os “sentimentos da maioria da população russa” contra o reconhecimento legal dos relacionamentos homoafetivos como uma justificativa possível para a restrição ao Artigo 8º; acerca da qual argumentou que os Direitos Humanos trabalham fundamentalmente para proteger minorias contra maiorias, e não para endossar sentimentos majoritários discriminatórios (paras. 216-218). Dessa forma, concluiu-se que houve violação ao Artigo 8º do CEDH.

O TEDH, em conformidade com sua jurisprudência, afastou as reivindicações referentes ao Artigo 14º, indicando ter entendido que essas questões já teriam sido resolvidas na discussão acerca do Artigo 8º (para. 230). Uma das opiniões (parcialmente) dissidentes, preparada pelo Juiz Pavli e endossada pela Juíza Motoc, tomou essa posição precisamente por acreditar que o Artigo 14º deveria ter sido levado em consideração, visto que a discriminação contra pessoas LGBTIQ+ e seus relacionamentos estava no cerne do Caso.

Outros dissidentes foram menos progressistas. O Juiz Wojtyczek enfatizou a necessidade de uma interpretação histórica do CEDH, a qual rejeitaria sua aplicação de forma ampla aos casos sobre direitos LGBTIQ+. O Juiz Lobov sustentou que não existe um consenso europeu sobre o assunto, e que o uso desse argumento pelo TEDH daria margem para ataques à sua legitimidade, particularmente por não haver consenso interno no Tribunal. Por fim, a Juíza Poláčková discordou por razões processuais, alegando que o Juiz que representava a Rússia não deveria poder julgar o caso, em razão da suspensão do seu país.

Apesar de, em termos gerais, estar feliz pela consolidação jurisprudencial, eu tenho dois pontos de atrito, como indicado anteriormente. Primeiro, essa vitória não irá beneficiar diretamente suas vítimas. A Rússia foi suspensa do Conselho da Europa e, desde setembro de 2022, não faz mais parte do TEDH – ainda que permaneça tecnicamente vinculado aos casos referentes a fatos anteriores à sua saída (paras. 68-73). Ao admitir que é improvável que as vítimas do caso sejam beneficiadas diretamente, estaríamos eu e aqueles que o tratam como uma vitória inequívoca para os direitos LGBTIQ+ compactuando com a colocação das vítimas em segundo plano? Em outras palavras, eu estou pronto para minimizar o dano que essas vítimas irão continuar sofrendo (pela falta de implementação) em função do benefício que outros irão obter fora da Rússia? Seria eu um daqueles acadêmicos e ativistas LGBTIQ+ prontos para ignorar aqueles que se sacrificaram por vitórias para a causa LGBTIQ+ e focar em como elas talvez tenham beneficiado a mim e a outros homens brancos cis sem deficiências que vivem em um país que ainda leva o Direito Internacional dos Direitos Humanos (relativamente) a sério; bem como o movimento LGBTIQ+, que tem se mostrado disponível para ignorar a situação das pessoas trans, dos indivíduos LGBTIQ+ não brancos, dentre outros, enquanto conquistas brancas e cis tem sido alcançadas?

O risco de uma aceitação celebratória é a principal razão pela qual a conclusão do Caso Fedotova é de certa forma vazia. Enquanto minha posição de acadêmico me leva a focar no campo e nos benefícios mais amplos, eu também considero uma famosa advertência de David Kennedy que, ao focarmos no campo, não devemos perder de vista o problema: as pessoas queer na Rússia, mesmo antes do agravamento das políticas domésticas repressivas ligadas à invasão da Ucrânia, já recebiam um tratamento injusto. Agora que eles foram deixados de lado, celebrar o Caso Fedotova deveria nos levar a pensar sobre como esse julgamento pode de fato ajudar eles. Sem querer ser a pessoa do copo meio vazio, mas a verdade é que a consolidação jurisprudencial do TEDH não teria acontecido se as seis pessoas que deram início ao processo e muitos outros LGBTIQ+ russos não tivessem sofrido e continuassem sofrendo. Nós devemos a eles essa vitória parcial, portanto devemos pensar formas de ajuda permanente a esses grupos.

O meu segundo grande desconforto relativo ao caso diz respeito a como o TEDH estruturou sua análise acerca da possível proporcionalidade na negação do reconhecimento legal dos relacionamentos homoafetivos. Especialmente, ao analisar a proporcionalidade das restrições da Rússia ao reconhecimento legal desses relacionamentos, o TEDH examinou a alegação de que a “motivação de interesse público” por trás da restrição era a “proteção da família tradicional” (paras. 206-213). Assim, o TEDH “reiterou que o suporte e o encorajamento da família tradicional é em si mesmo legítimo e até louvável, e uma forte e legítima razão para justificar a diferença no tratamento acerca da orientação sexual (para. 207). Ao fazer isso, o TEDH prega o respeito ao sentimento ainda preponderante em muitos países europeus, o que dá suporte à sua duradoura legitimidade. Esse posicionamento também permite a continuidade de um debate o qual pressupõe que as pessoas LGBTIQ+ e seus relacionamentos são uma espécie de ideia moderna, que nega as pessoas queer existem desde o início da humanidade e que sugere seus relacionamentos valem menos.

Apesar do meu evidente desgosto com essa constatação, parte de mim foi tocada pelo enquadramento do TEDH sobre os relacionamentos queer como dotados de um potencial subversivo e até radical (na medida em que não se enquadram na “família tradicional”). Sim, relacionamentos queer podem ser radicais, subversivos e radicalmente subversivos. Mas relacionamentos queer também podem ser apenas relacionamentos básicos, formados por pessoas básicas, repletos de brigas pela cor das paredes e pelo que assistir na televisão. O meu ponto é que não cabe ao TEDH fazer essa escolha, especialmente se, ao fazê-la, endossar a oposição das pessoas LGBTIQ+ – com suas famílias e relacionamentos – frente ao resto da sociedade. Esse tipo de autorização é potencialmente pior que a minha preocupação sobre estarmos celebrando um triunfo apertado às custas das pessoas LGBTIQ+ na Rússia, e faz a “vitória” parecer ainda mais amarga.

Eu quero tudo e agora para os direitos LGBTIQ+? Sim. Apesar de conseguir reconhecer as limitações de legitimidade sob as quais o TEDH opera (particularmente nesse caso, dada a sensibilidade ao redor da denúncia da Rússia na TEDH), nós estamos por aí faz muito tempo e temos sido muitos paciente para aceitar meias medidas que ainda admitem e alimentam a discriminação e a violência contra pessoas LGBTIQ+ ao redor do mundo. O TEDH deve isso a nós (e a si próprio).

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Este texto foi publicado originalmente no blog “CIL Dialogues”: A hollow—and slightly homophobic—victory for LGBTIQ+ rights? Fedotova and others v Russia. Agradecimentos a Pedro Pereira pela tradução.

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