Um tratado brasileiro

“Um tratado brasileiro de direito internacional”. Esse foi o título que o diplomata Álvaro Teixeira Soares deu para sua resenha do terceiro volume do Tratado de Direito Internacional Público de Hildebrando Accioly, publicado em 1935. Chama a atenção o gentílico escolhido pelo resenhista: um tratado que deveria ser adjetivado como brasileiro.

Em sua resenha, Teixeira Soares celebrou o renascimento dos estudos de direito internacional no Brasil dos anos 1930. No entanto, ele lamentou que muitos “dos nossos estudiosos nada mais fazem do que acompanhar o que de variado e abundante existe em certas bibliografias estrangeiras, notadamente inglesa, americana, alemã e francesa”. A publicação de Accioly era diferente: ela incorporava as doutrinas estrangeiras, mas sem se descuidar do Brasil. Na opinião do diplomata, através de casos pátrios e com amplo domínio das fontes do arquivo do Itamaraty, Accioly conferia uma qualificação brasileira à disciplina.

Haveria também um grande valor no manuscrito por seu formato específico, ou seja, por se tratar de um tratado. Teixeira Soares lembrou que Accioly era autor de Actos internacionais vigentes no Brasil (1927) e O reconhecimento da independência do Brasil (1927) – mas “agora”, com a nova publicação em apreço, Accioly se transformava “num brilhante tratadista”, um lugar de outra qualidade intelectual para o resenhista. O exemplar “estriba-se nos autores mais modernos, aduz exemplos convincentes, refuta teorias mais ou menos fantasiosas e, no fim, dá uma noção clara do assunto, sempre de acordo com as melhores correntes de opinião” (Teixeira Soares, 1935, p. 7). Para o resenhista, o Tratado de Accioly organizava a disciplina e o fazia a partir de uma perspectiva nacional.

Por que recomendar o Tratado de Accioly dentre as obras essenciais de internacionalistas do Brasil?

Adianto que não é com o intuito de enaltecer a tradição brasileira de direito internacional. Interessa-me mais sugeri-la a partir de uma atitude crítica em relação à história do direito internacional, como proposto por George Galindo (2021). Ao invés de celebração, uma atitude crítica compreende a tradição em sua correlação com a identidade, ou seja, nos usos que o passado tem na formação de ideias e práticas do presente e que idealizam horizontes no porvir. Assim, o Tratado de Accioly pode nos auxiliar a entender a construção do campo do direito internacional no Brasil, suas imaginações, seus pressupostos e os agentes que nele se movimentam, ontem e hoje.

Para justificar a escolha do Tratado de Accioly, sigo provocado pelos dois elementos ressaltados na resenha de Teixeira Soares, ainda que com formulações diferentes. O primeiro é o tipo do livro, ou seja, um manual de direito internacional. Em geral, usa-se esse gênero como um curso geral capaz de ofertar uma visão panorâmica sobre a matéria, assim como uma referência sintética para se sanar uma determinada questão pontual. Nesse sentido, sugerir o Tratado seria fácil por razões editoriais [1], mas acredito que a obra possa ser analisada também por outro ângulo.

Um manual pode ser entendido como uma empreitada que intenciona uma ordenação do campo ao disponibilizar uma leitura do que julga ser o essencial (e de excluir aquilo que considera não ser). Mais do que um esforço de estruturação do saber, um manual também revela o poder envolvido no processo. Se considerarmos que a obra de Accioly influencia a formação do campo do direito internacional no Brasil do século XX, suas preferências teóricas, seus pressupostos epistemológicos e seus projetos políticos são cruciais para visualizar a movimentação de ideias ainda nos dias de hoje.

Busquei trabalhar algumas dessas questões na trajetória intelectual de Accioly em outro texto (Roriz, 2021). Para o propósito aqui, gostaria de ressaltar que ele trouxe para o Brasil um esforço de internacionalistas ocidentais que resgataram teses jusnaturalistas como resistência ao avanço do positivismo. Em sua proposta, ele se acercava de uma vertente francesa do solidarismo do entreguerras, especialmente as ideias do católico conservador Louis Le Fur. Accioly desconfiava dos internacionalistas alemães, em particular da centralidade do Estado e do seu corolário, a soberania.

Para ele, a obrigatoriedade do direito internacional não estaria na vontade estatal ou em um princípio, mas na “consciência jurídica do homem”. O direito internacional seria válido “porque os homens têm consciência, estão convencidos da validade do mesmo, isto é, do caráter obrigatório das suas regras” (Accioly, 1933a, p. 14). Sua proposta passa pelo posicionamento de valores universais no cerne do direito internacional, em especial de valores cristãos e do que ele entendia como civilização. Frente a ameaças como as guerras imperiais e a ascensão de regimes totalitários – que Accioly associava tanto aos soviéticos quanto ao nazi-fascismo em ascensão nos anos 1930 -, ele renovava sua crença no direito e, por consequência, nos internacionalistas.

A segunda razão pela qual sugiro a leitura do Tratado de Accioly é pelo seu esforço em localizar o direito internacional na prática do Brasil. Como Teixeira Soares pontuou, seu livro faz extenso uso de fontes do MRE, o que lhe diferencia de alguns antecessores menos interessados em conectar normas universais com práticas e ideias locais. Por um lado, seu esforço lastreia ações do país a partir de argumentos legais internacionais aceitos. Por outro, de certa forma ele ajuda a “provincializar” uma linguagem pretensamente universal.

Além do Tratado, Accioly tem vários outros livros e artigos de direito internacional. Frente à sua vasta produção acadêmica, alguém poderia presumir que ele passou a maior parte da sua vida profissional como pesquisador, talvez em alguma universidade. Contudo, sua principal atuação profissional foi como diplomata [2]. Ingressou no MRE em 1914, trabalhou em diversos postos, incluindo na representação brasileira da Liga das Nações e na Conferência de Paz de 1946, foi Consultor Jurídico e Secretário Geral do MRE, dentre outros. Escreveu dezenas de textos sobre a história diplomática do Brasil.

Posicionar profissionalmente Accioly como funcionário do MRE não é incidental. Como agente que se movimentou e ajudou a construir o campo da disciplina, ele se juntou a outros que situaram o Itamaraty ao lado de universidades e centros de pesquisa como instituições que pensam o direito internacional no Brasil. O lugar de onde – e muitas vezes para onde – se produz ideias têm impacto sobre elas. Quando escreveu sobre o princípio do uti possidetis, por exemplo, Accioly lastreou a prática e o posicionamento do Brasil sobre a delimitação de suas fronteiras em acordo com as normas internacionais (Accioly, 1935b). Era uma contestação a Louis Le Fur, que condenava as ações brasileiras. Foi uma das poucas ocasiões em que o brasileiro discordou diretamente dos argumentos do internacionalista que parece ter sido sua principal referência intelectual. A reação de Accioly ajudou a consolidar o entendimento jurídico do Estado brasileiro sobre o assunto, bem como da maior parte da doutrina daqui.

Se Accioly pertencia a uma vertente teórica do liberalismo em que o direito desconfiava da política, em muitos momentos de sua atuação profissional ele correlacionava seus usos do direito internacional com a política externa. Além de reiterar uma tradição brasileira de vincular a atuação do país em acordo com as normas internacionais, Accioly usava sua posição de autoridade no campo para avançar posicionamentos políticos. Seu anticomunismo e seu catolicismo aparecem em alguns de seus textos, mas ganham destaque em seus discursos públicos, principalmente quando falava para audiências que incluíam tomadores de decisão em política externa. Certamente mais pesquisas sobre seu internacionalismo conservador são necessárias para se entender o campo no Brasil.

Sugerir uma obra que muitos consideram um clássico a partir de uma abordagem crítica é lê-la a partir de outras inquietações. Pode ser questionar como se deu o seu próprio processo de canonização; como o campo a recepcionou e revisitou em outros momentos com o passar do tempo. Pode ser também indagar seus pressupostos assumidos, suas escolhas epistemológicas, os significados próprios dos conceitos empregados, assim como seu contexto intelectual. Também pode passar pelo o que ficou de fora, quais assuntos e caminhos foram preteridos. Por fim, pode ser inquirir como essa obra ainda é empregada para gerar autoridade àqueles que se voltam ao passado para afiançar seus projetos atuais.

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Notas de Rodapé

[1] Essa é uma obra que marca o mercado editorial de direito internacional no século XX, e continua a reverberar nos dias de hoje. Seus três tomos, publicados entre 1933 e 1935, somam mais de mil e quinhentas páginas, o mais extenso publicado no Brasil até então. É um dos poucos manuais que ganhou não apenas uma, mas duas traduções: para o francês entre 1940 e 1941 e para o espanhol em 1945 e 1946. Uma versão resumida foi publicada em 1948 como Manual de Direito Internacional Público, e desde então é republicada em todas as décadas seguintes, às vezes com novas edições e outras com novas tiragens. Após o falecimento de Accioly em 1962, o Manual continuou a ser publicado e, a partir da 10ª edição de 1970, passou a ser revisto pelo embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, incluído como coautor a partir da 12ª edição de 1996. Na 15ª edição, o texto passa a ser revisado por Paulo Borba Casella, que consta como coautor a partir da 16ª edição, de 2008. Atualmente está na sua 25ª edição, a mais longeva do seu tipo no mercado editorial brasileiro.

[2] Uma descrição da sua carreira diplomática pode ser vista aqui: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/hildebrando-pompeu-pinto-acioli. Ele também lecionou pontualmente na Faculdade Paulista de Direito (hoje Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e no Instituto Rio Branco, do qual foi fundador e primeiro diretor.

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Referências

Accioly, Hildebrando. Tratado de direito internacional público (Tomo 1). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1933a.

Accioly, Hildebrando. Le Brésil et la doctrine de uti possidetis. Revue de droit international, 1935b, vol. IX, 36-45.

Galindo, George Rodrigo Bandeira. Direito Internacional no Brasil: Pensamento e Tradição (Volume 1). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 1-22.

Roriz, João. Um dever do ‘homem culto’: Hildebrando Accioly, jurista, diplomata. In: Galindo, George Rodrigo Bandeira. Direito Internacional no Brasil: Pensamento e Tradição (Volume 2). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 31-59.

Teixeira Soares, “Um tratado brasileiro de direito internacional”, Jornal do Commercio, 26 de maio de 1935, ano 108, n. 201, p. 7.

1 Essa é uma obra que marca o mercado editorial de direito internacional no século XX, e continua a reverberar nos dias de hoje. Seus três tomos, publicados entre 1933 e 1935, somam mais de mil e quinhentas páginas, o mais extenso publicado no Brasil até então. É um dos poucos manuais que ganhou não apenas uma, mas duas traduções: para o francês entre 1940 e 1941 e para o espanhol em 1945 e 1946. Uma versão resumida foi publicada em 1948 como Manual de Direito Internacional Público, e desde então é republicada em todas as décadas seguintes, às vezes com novas edições e outras com novas tiragens. Após o falecimento de Accioly em 1962, o Manual continuou a ser publicado e, a partir da 10ª edição de 1970, passou a ser revisto pelo embaixador Geraldo Eulálio do Nascimento e Silva, incluído como coautor a partir da 12ª edição de 1996. Na 15ª edição, o texto passa a ser revisado por Paulo Borba Casella, que consta como coautor a partir da 16ª edição, de 2008. Atualmente está na sua 25ª edição, a mais longeva do seu tipo no mercado editorial brasileiro.

2 Uma descrição da sua carreira diplomática pode ser vista aqui: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/hildebrando-pompeu-pinto-acioli. Ele também lecionou pontualmente na Faculdade Paulista de Direito (hoje Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e no Instituto Rio Branco, do qual foi fundador e primeiro diretor.

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