Todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros

É preciso afirmar corajosamente que onde quer que ocorra, e independentemente de sua motivação, a agressão é um crime internacional

Robert Cecil, Prêmio Nobel da Paz 1937, por ocasião da dissolução da Liga das Nações Unidas, em 18 de abril de 1946

Em 24 de fevereiro passado a Federação Russa invadiu a Ucrânia, alegando a necessidade de contrapor-se ao que considerava uma ameaça existencial. O governo ucraniano do presidente Zelensky havia substituído o anterior, alinhado a Moscou, e se mostrava favorável a uma integração maior com o Ocidente. Embora o recurso à invasão armada seja inaceitável no mundo de hoje, a preocupação russa é compreensível, pois um eventual ingresso da Ucrânia na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) levaria essa aliança militar adversária até a fronteira com a Rússia e poderia resultar em que outros países, principalmente no entorno meridional russo, viessem a sentir-se estimulados a adotar idêntica atitude. Na semana passada, quase oito meses após a invasão, a Rússia decidiu anexar os territórios ucranianos que se encontram em maior ou menor medida sob o controle de suas tropas, ao realizar o que apresentou como um referendo no qual a grande maioria das populações desses territórios teriam expressado concordar com a anexação.

O Artigo 2 da Carta das Nações Unidas estabelece claramente os princípios em que deve basear-se a convivência entre as nações. O parágrafo 3 desse dispositivo obriga todos os membros das Nações Unidas a solucionar suas disputas internacionais por meios pacíficos, de maneira a não colocar em perigo a segurança, a paz e a justiça. Segundo o parágrafo 4, todos assumiram o compromisso de evitar, em suas relações internacionais, o uso ou ameaça da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer estado.

Diante do fato consumado do referendo, o Conselho de Segurança das Nações Unidas reuniu-se em 30 de outubro para debater um projeto de resolução de inspiração ocidental que condenaria a Rússia pela invasão [1] e pela realização do referendo e exigiria a imediata retirada dos militares russos e a devolução à Ucrânia das áreas ocupadas. Utilizando o direito que lhe confere sua condição de membro permanente do Conselho, a Rússia vetou o projeto, em cuja votação se abstiveram o Brasil, a China, o Gabão e a Índia. O veto impede as Nações Unidas de agir decisivamente em resposta às ações da Rússia.

Ainda que Moscou possa alegar graves e bem fundados motivos de preocupação com sua segurança decorrentes do avanço da aliança atlântica para o leste, a agressão militar contra outro país mediante invasão e ocupação de territórios não pode ser aceita como resposta adequada, pois constitui uma flagrante violação dos dispositivos acima citados. A realização do plebiscito conduzido pela Rússia nas regiões ocupadas, em condições no mínimo equívocas, em meio a uma situação de guerra, tampouco pode ser considerado um meio legítimo para apoiar a anexação daqueles territórios.

Esses recentes acontecimentos no conflito russo-ucraniano podem prenunciar desdobramentos altamente preocupantes. A Rússia parece disposta a assegurar pela força o domínio de uma faixa de terra no oriente e no sul da Ucrânia que lhe faculte acesso terrestre à península da Crimeia, anexada em 2014 com pouca contestação ocidental. Por sua vez, com o apoio de armamento convencional de última geração enviado pelos Estados Unidos e outros países da OTAN, a Ucrânia vem procurando recuperar ao menos parte dos territórios sob ocupação russa e tem obtido algumas vitórias militares nesse esforço. Diante da resistência das forças ucranianas, o receio principal é a possibilidade de que a Rússia venha a utilizar armas nucleares para neutralizar os avanços inimigos. Em seu arsenal, Moscou conta também com armamento atômico de baixa potência, denominado “tático” pelos especialistas e destinado a uso em campo de batalha, ao contrário das armas chamadas “estratégicas”, de potência dezenas ou centenas de vezes superior à das bombas usadas contra Hiroshima e Nagasaki. Bastaria uma dessas últimas para arrasar uma cidade inteira e contaminar vastas áreas habitadas. O perigo está em que o uso de uma arma atômica, ainda que “tática”, seja respondido na mesma moeda, gerando uma escalada incontrolável que poderia chegar a um bombardeio nuclear intercontinental mútuo entre a Europa ocidental e os Estados Unidos de um lado e a Rússia de outro. Nesse caso, as consequências seriam catastróficas para todo o planeta e poderiam mesmo levar à extinção da civilização tal como a conhecemos. O uso de qualquer arma atômica, ainda que “tática” seria o primeiro ao dessa natureza desde 1945.

Nos últimos dias o presidente Zelensky anunciou a intenção de formalizar a solicitação de ingresso de seu país na Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Uma vez aceita, a presença da Ucrânia como membro pleno da aliança criará uma nova realidade em um panorama já de si perigosamente incerto, pois a OTAN considera que uma agressão a qualquer de seus membros constitui uma agressão a todos e deverá ser enfrentada por meios militares. Ao contrário do que afirmavam os países nuclearmente armados, a existência desse armamento não impediu a eclosão de uma a nova guerra na Europa, que ameaça agora generalizar-se a todo o continente com o risco de emprego de armas atômicas pela primeira vez desde 1945.

O veto russo ao projeto de resolução o Conselho de Segurança acima mencionado tem também importantes implicações para marcar os limites da atuação das Nações Unidas no campo da manutenção da paz e segurança. Em ocasiões anteriores, outros países dentre os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança têm utilizado o direito de veto para impedir sanções decorrentes da reprovação geral a atos considerados impróprios ou ilegais, tanto seus quanto de terceiros. Desta vez, porém, o veto serviu para evitar o repúdio da comunidade internacional à anexação de território alheio por meio da força. O episódio demonstra mais uma vez a impossibilidade de aplicação de sanções contra qualquer dos membros permanentes por parte do Conselho de Segurança por ações notoriamente contrárias à letra e espírito da Carta das Nações Unidas.

Há quase um século, a dissolução da Liga das Nações após a Primeira Guerra Mundial resultou da incapacidade daquela entidade pioneira de evitar conflitos em que se envolvessem os quatro membros permanentes de seu Conselho – França, Itália, Japão e Reino Unido – e outras grandes potências. Com a criação das Nações Unidas e a instituição do Conselho de Segurança em 1945, ao fim de uma guerra ainda mais devastadora, o realismo pragmático consubstanciado no direito de veto conferido aos atuais cinco membros permanentes – China, França, Reino Unido e Estados Unidos – tem sido essencial para garantir a sobrevivência e resguardado a autoridade da organização mundial. Não deve desprezar sua eficiente atuação na prevenção e solução de inúmeros conflitos por meio de operações de manutenção da paz autorizadas pelo Conselho de Segurança em diversas partes do mundo. Infelizmente, porém, a experiência dos 77 anos de sua existência torna evidente a incapacidade desse órgão para tomar medidas decisivas em questões importantes de interesse imediato daqueles cinco membros permanentes.

A repetição de incidentes de flagrante inobservância dos princípios básicos constantes do mencionado Artigo 2 da Carta sem consequências para os infratores – quando estes são os cinco privilegiados – traz o risco de que as relações internacionais se vejam cada vez mais subordinadas à vontade arbitrária dos mais armados e poderosos. Não seria essa, certamente, a visão dos idealizadores da Carta das Nações Unidas, cujo propósito talvez mais inspirador tenha sido o de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”.

Em 25 de fevereiro, a Federação Russa vetou o projeto de resolução do CSNU que a condenava pela invasão do dia anterior.

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Notas de rodapé:

* O título faz referência à fábula “Animal Farm”, de George Orwell. Fórmula utilizada pelos animais dominantes para marcar a diferença hierárquica que lhes assegurava privilégios entre os demais.

[1] Em 25 de fevereiro, a Federação Russa vetou o projeto de resolução do CSNU que a condenava pela invasão do dia anterior.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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