Retrospectiva 2022: Justiça Penal Internacional

Coluna “Prática Penal Internacional”

2022 foi um importante ano para a justiça penal internacional, marcado por inúmeros desenvolvimentos. A lista abaixo, sem pretender ser exaustiva, apresenta os principais episódios do ano, em ordem cronológica. 

14 de fevereiro: O Procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, anuncia a conclusão do exame preliminar da situação na Bolívia e determina que uma investigação não é necessária, pois os fatos do caso não configuram um crime contra a humanidade. Em 4 de setembro de 2020, o tumultuado governo de Jeanine Áñez na Bolívia realizou uma referral da situação no país ao TPI. O governo boliviano alegou que os bloqueios de estradas por manifestantes pró-Evo Morales, em agosto de 2020, impediram o acesso da população a insumos e serviços médicos vitais durante a pandemia de COVID-19, gerando, segundo alegado, sérios danos físicos e mentais e a morte de civis. Afirmou-se que tal conduta configurou os crimes contra a humanidade de homicídio e outros atos desumanos, nos termos dos Artigos 7º(1)(a) e 7º(1)(k) do Estatuto de Roma. Porém, o Procurador discordou, concluindo que os fatos trazidos não configuram uma campanha dirigida contra a população civil da Bolívia, de acordo com ou em cumprimento de uma política de uma organização, tal como exigido pela definição de crimes contra a humanidade no Artigo 7º do Estatuto de Roma. Também determinou que nenhum dos atos alegados pelo governo boliviano se enquadra em uma das ofensas específicas listadas no Artigo 7º(1) do Estatuto.

24 de fevereiro: Rússia invade a Ucrânia. 

26 de fevereiro: Ucrânia instaura procedimentos contra a Rússia na Corte Internacional de Justiça, contestando as alegações russas de genocídio como um dos fundamentos para a invasão de seu território. No segundo semestre de 2022, o caso teve um extraordinário número de pedidos de intervenção, protocolados por mais de 30 Estados

2 de março: Depois do recebimento de referrals por 39 Estados Partes do Estatuto de Roma, o Procurador do TPI inicia investigação na situação da Ucrânia

4 de março: Por meio da Resolução 49/1, o Conselho de Direitos Humanos da ONU cria a Comissão Internacional Independente de Inquérito sobre a Ucrânia, composta pelos especialistas Erik Møse (Noruega), Jasminka Džumhur (Bósnia e Herzegovina), e Pablo de Greiff (Colômbia). 

10 de março: Apesar de severas dificuldades financeiras, a Câmara de Recursos do Tribunal Especial do Líbano emite o julgamento de apelação no caso Procurador v Merhi & Oneissi, condenando os réus em segunda instância por todas as acusações. Merhi e Oneissi foram cúmplices na explosão do carro-bomba que levou a morte do ex-Primeiro-Ministro do Líbano, Rafik Hariri, e de outras 21 pessoas. Anteriormente, no julgamento de primeira instância de 18 de agosto de 2020, Merhi e Oneissi haviam sido inocentados. Em 16 de junho de 2022, a Câmara de Recursos os sentenciou a cinco penas simultâneas de prisão perpétua. 

16 de março: A Corte Internacional de Justiça concede medidas cautelares no caso Alegações de Genocídio sob a Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (Ucrânia v. Rússia), determinando que a Rússia suspenda imediatamente as operações militares no território ucraniano.  

22 de março: O acusado Maxime Jeoffroy Eli Mokom Gawaka faz sua primeira aparição perante o Juízo de Instrução do TPI. Mokom foi o Coordenador Nacional de Operações da Anti-Balaka, uma aliança de grupos rebeldes na República Centro-Africana, criada para combater militarmente o governo do Presidente Michel Djotodia, que ascendeu ao poder por meio de uma guerra civil. De maioria cristã, a Anti-Balaka perseguiu e assassinou inúmeros civis muçulmanos e outras pessoas consideradas simpatizantes de Djotodia. Mokom foi acusado de crimes contra a humanidade e crimes de guerra. A audiência de confirmação de acusações está marcada para 31 de janeiro de 2023.

5 de abril: Tem início a ação penal no caso Procurador v. Ali Muhammad Ali Abd-Al-Rahman (“Ali Kushayb”), perante o TPI. Abd-Al-Rahman foi um dos principais líderes da milícia Janjaweed. Ele enfrenta julgamento por crimes contra a humanidade e crimes de guerra alegadamente cometidos contra civis de origem étnica não árabe em Darfur, no Sudão. 

17 de maio: A Comissão de Direito Internacional decide incluir o tópico “Prevenção e repressão à pirataria e ao assalto à mão armada no mar” em sua agenda e nomeia Yacouba Cissé (Costa do Marfim) como Relator Especial. 

18 de maio: As Câmaras Especializadas do Kosovo emitem o seu primeiro julgamento de mérito. Trata-se de sentença condenatória no caso Procurador Especializado v. Hysni Gucati & Nasim Haradinaj, no qual os dois réus foram condenados por ofensas contra a administração da justiça após, entre outros, terem revelado informações sigilosas acerca dos procedimentos nas Câmaras, incluindo a identidade de certas testemunhas sob proteção. Gucati e Haradinaj apelaram da decisão, mas o recurso continua pendente. 

29 de maio: Morre o juiz e professor brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade.

3 de junho: A CDI finaliza a primeira leitura do Projeto de Artigos sobre a Imunidade de Jurisdição Penal Estrangeira dos Funcionários do Estado.

29 de junho: A Câmara de Recursos do Mecanismo Residual Internacional para Tribunais Criminais emite julgamento no caso Procurador v Fatuma et al., relativo à apelação interposta contra o julgamento de primeira instância de 25 de junho de 2021 que condenou os três réus por ofensas contra a administração da justiça. A Câmara de Recursos reverteu importantes elementos do veredito e sentença, a fim de agravar a punição dos réus. 

30 de junho: O Juízo de Instrução do TPI emite, a pedido do Procurador, mandados de prisão contra três indivíduos no contexto da situação na Geórgia: Mikhail Mayramovich Mindzaev, Gamlet Guchmazov e David Georgiyevich Sanakoev. As acusações contra eles se concentram na detenção, tortura, tomada de reféns e transferência ilegal de civis da etnia georgiana, no contexto da ocupação da Ossétia do Sul, na Geórgia, pela Rússia em 2008.

1º de julho: Aniversário de 20 anos da entrada em vigor do Estatuto de Roma do TPI

1º de julho: A juíza uruguaia Graciela Gatti Santana toma posse como nova Presidente do Mecanismo Residual Internacional para Tribunais Criminais, para um mandato de dois anos. Antes de se juntar ao Mecanismo em 2012, Gatti Santana era juíza no Uruguai.  

22 de julho: A Corte Internacional de Justiça emite julgamento determinando que possui jurisdição para julgar o mérito do caso Aplicação da Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio (Gâmbia v. Mianmar). 

12 de setembro: A Câmara de Recursos do TPI emite julgamento relativo às duas apelações interpostas contra a ordem de reparação proferida em 2021 no caso Procurador v. Ntaganda. A Câmara de Recursos discordou de diversas partes da decisão recorrida e remeteu a matéria ao Juízo de Primeira Instância para que uma nova ordem de reparação seja emitida. A ordem de 2021 é considerada paradigmática por ter inovado substancialmente a jurisprudência do TPI no tema de reparações. 

22 de setembro: A Câmara da Suprema Corte, órgão das Câmaras Extraordinárias nas Cortes do Camboja, emite julgamento de apelação no Caso 002/02 (Procurador v Khieu Samphan), mantendo a maioria das condenações contra o réu. Samphan foi o Chefe de Estado do Camboja/Kampuchea Democrático durante o regime do Khmer Rouge. A fundamentação completa da decisão foi publicada pela Câmara da Suprema Corte em 23 de dezembro. 

26 de setembro: Tem início a ação penal no caso Procurador v. Mahamat Said Abdel Kani, perante o TPI. Said era um dos comandantes e principais líderes da Séléka, uma coalizão de milícias rebeldes majoritariamente muçulmanas, criada em 2012 para derrubar o então Presidente da República Centro-Africana, Francois Bozize. A Séléka dessolou o país em uma intensa guerra civil, saqueando aldeias e matando cristãos e partidários do Presidente Bozize. Foi no contexto desse conflito que Michel Djotodia ascendeu à Presidência. Said enfrenta julgamento por crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

29 de setembro: Tem início a ação penal no caso Procurador v. Félicien Kabuga, perante o Mecanismo Residual Internacional para Tribunais Criminais. Kabuga era um dos líderes da Radio Télévision Libre des Mille Collines durante o genocídio dos tusis pelos hutus em Ruanda, em 1994. Por disseminar ódio racial e informações estratégicas, a Radio teve papel central na execução dos homicídios disseminados dos tutsis. Kabuga enfrente julgamento, entre outros, por genocídio e instigação ao genocídio. 

14 de outubro: O TPI encerra o processo contra o advogado queniano Paul Gicheru sem decisão de mérito, após a confirmação de seu falecimento. A ação penal havia sido iniciada em 15 de fevereiro de 2022. Gicheru enfrentava julgamento por ofensas contra a administração da justiça, consistindo na corrupção e intimidação de testemunhas no contexto do caso contra o atual Presidente queniano William Ruto e o radialista Joshua Sang. O caso contra Ruto e Sang foi arquivado pelo TPI em 2016 por ausência de provas. Suspeitas de que Gicheru tenha sido envenenado motivaram doutrinadores a sugerir que o TPI investigue as circunstâncias de sua morte.

18 de novembro: Depois de três anos sem qualquer medida concreta, a 6ª Comissão da Assembleia Geral da ONU adopta procedimento para que uma decisão seja tomada em 2024 acerca da adoção de uma convenção sobre crimes contra a humanidade, com base no Projeto de Artigos sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra a Humanidade, finalizado pela Comissão de Direito Internacional da ONU em 2019.  

19 de novembro: O franco-estadunidense Alex Whiting toma posse como Procurador Especializado Interino nas Câmaras Especializadas do Kosovo, sucedendo o estadunidense Jack Smith, que exerceu o cargo entre 7 de maio de 2018 e 18 de novembro de 2022. A saída prematura de Smith se deve ao fato dele ter sido nomeado Procurador Especial nos Estados Unidos (EUA) para supervisionar duas investigações criminais relacionadas ao ex-Presidente Donald Trump. Whiting ficará no cargo de forma interina até que um novo Procurador Especializado seja empossado permanentemente. É curioso notar que todos os três Procuradores Especializados desde a fundação das Câmaras Especializadas do Kosovo (David Schwendiman, Smith e Whiting) foram estadunidenses, fato que chama a atenção considerando que as Câmaras Especializadas são uma instituição criada por meio de uma parceria entre o Kosovo e a União Europeia (UE). O domínio estadunidense da Procuradoria pode ser explicado pelo fato de os EUA serem um dos cinco estados contribuintes que, em conjunto com a UE, apoiam financeiramente às Câmaras (os quatro outros estados contribuintes são Canadá, Noruega, Suíça e Turquia). 

24 de novembro: O Procurador do TPI protocola requerimento junto ao Juízo de Instrução do Tribunal para que esse realize à revelia uma audiência sobre a confirmação das acusações contra Joseph Kony, o fundador e comandante supremo do Exército de Resistência do Senhor, um grupo armado não-estatal atuante no norte de Uganda. O TPI emitiu mandado de prisão contra Kony em 2005, alegando o cometimento de diversos crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Apesar dos esforços da Procuradoria do TPI para localizá-lo, Kony permanece foragido, fato que impede o início do seu julgamento no Tribunal pois o Artigo 63(1) do Estatuto de Roma proíbe que um processo seja julgado à revelia. Apesar dessa restrição, o Artigo 61(2)(b) do Estatuto admite que o Juízo de Instrução realize à revelia uma audiência para a confirmação das acusações, a etapa anterior ao julgamento, quando o suspeito “[t]iver fugido ou não for possível encontrá-lo, tendo sido tomadas todas as medidas razoáveis para assegurar o seu comparecimento em Tribunal e para o informar dos fatos constantes da acusação e da realização de uma audiência para apreciação dos mesmos”. Sabendo que este é primeiro requerimento destinado a aplicar o procedimento previsto no Artigo 61(2)(b), trata-se de uma conveniente oportunidade para que o TPI especifique o escopo deste dispositivo. Além disso, especula-se que o pedido seja uma estratégia do Procurador a fim de criar um precedente que possa ser utilizado no futuro vis-à-vis réus russos por crimes cometidos no conflito na Ucrânia, já que a detenção destes réus, especialmente os de alto escalão, também será um desafio ao TPI. 

30 de novembro: No âmbito da Iniciativa de Assistência Jurídica Mútua (MLA Initiative), o Core Group formado por Argentina, Bélgica, Mongólia, Países Baixos, Senegal e Eslovênia publica a versão mais atual da proposta de Convenção sobre Cooperação Internacional na Investigação e Julgamento do Crime de Genocídio, Crimes contra a Humanidade e Crimes de Guerra. Trata-se de projeto em andamento desde novembro de 2011, com o objetivo de suprir uma lacuna no direito internacional na área de extradição e assistência jurídica mútua entre estados para o julgamento nacional de pessoas suspeitas de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. A Iniciativa conta com 77 Estados apoiadores; o Brasil não é um deles. 

5-9 de dezembro: Os funcionários de apoio das equipes de defesa do TPI entram em greve por uma semana, reclamando direitos trabalhistas e protestando contra disparidade salarial. O pessoal das equipes de defesa tem menos direitos e salários mais reduzidos em comparação com os funcionários regulares do Tribunal, incluindo os que atuam para o Gabinete do Procurador. Apesar de também trabalharem no edifício-sede do TPI, os funcionários da defesa não possuem vínculo formal com o Tribunal, nem período de rescisão de contrato de trabalho, licença médica, férias e licença maternidade. Seus salários não foram reajustados desde 2013 e, enquanto os servidores do Tribunal gozam de isenção fiscal, tal isenção não se aplica às equipes de defesa (cf. aqui, aqui, aqui, aqui). 

7 de dezembro: O Procurador do TPI publica a Política sobre o Crime de Perseguição com base em Gênero, com vistas a servir de guia às atividades do seu Gabinete na luta contra a impunidade por crimes sexuais e baseados em gênero.

15 de dezembro: A Câmara de Recursos do TPI emite julgamentos (aqui e aqui) nos quais confirmou a condenação e pena de 25 anos de prisão imposta a Dominic Ongwen em primeira instância. Ongwen havia sido condenado em 2021 por crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos no norte de Uganda entre 2002 e 2005, como um dos comandantes do Exército de Resistência do Senhor (ERS), um grupo armado não-estatal. O caso se tornou objeto de intenso debate acadêmico, pois Ongwen foi sequestrado pelo ERS quando ele tinha apenas 9 anos, passou por um brutal treinamento militar e depois foi forçado a atuar como uma criança-soldado do grupo. Passados anos junto ao ERS, Ongwen subiu na cadeia militar e, já adulto, se tornou um de seus principais comandantes. Ele foi condenado apenas por crimes cometidos enquanto adulto. Apesar de reconhecer o sofrimento imposto ao Ongwen no passado, a Câmara de Recursos concordou com a decisão de primeira instância, segundo a qual esse sofrimento pretérito não isenta Ongwen de responsabilidade penal pelos crimes que ele cometeu enquanto adulto. Em específico, ele não poderia ser considerado inimputável por motivos de doença mental ou coação alegadamente derivados da sua condição de criança-soldado no passado (cf. aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui).  

16 de dezembro: O Procurador do TPI anuncia a conclusão das investigações nas situações na Geórgia e na República Centro-Africana. Segundo Karim Khan, a decisão se alinha a sua discricionariedade para melhor gerir e priorizar os recursos disponíveis. 

16 de dezembro: As Câmaras Especializadas do Kosovo emitem o seu primeiro julgamento de mérito sobre crimes de guerra, no caso Procurador Especializado v. Salih Mustafa. O julgamento de mérito anterior, emitido em 18 de maio, referia-se a ofensas contra a administração da justiça e não a crimes de guerra ou outro core crime. Mustafa era o comandante militar de uma das unidades do Exército de Libertação do Kosovo. O Painel de Primeira Instância o absolveu do crime de tratamento cruel, mas o condenou pelos crimes de guerra de detenção arbitrária, tortura e homicídio, cometidos contra civis kosovares de descendência albanesa enquanto estavam detidos em um complexo comandado por Mustafa, no leste do Kosovo, em abril de 1999. Ele foi sentenciado a uma pena de prisão de 26 anos. O julgamento ainda não transitou em julgado devido a possibilidade de recurso. O Painel de Primeira Instância também emitirá, nos próximos meses, uma ordem de reparações em favor das vítimas. 

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