Julgando as trevas do coração: a decisão de reparações da Corte Internacional de Justiça em República Democrática do Congo v. Uganda

A decisão da Corte Internacional de Justiça de 9 de fevereiro de 2022 sobre reparações no caso Atividades Armadas no Território do Congo encerrou uma longa saga judicial iniciada em 1999, cujo pano de fundo eram os conflitos armados na região dos Grandes Lagos Africanos. Em sua sentença, a Corte determinou que Uganda deve pagar um total de US$325 milhões à República Democrática do Congo (RDC) em compensação, valor consideravelmente menor se comparado aos quase US$14 bilhões requisitados pela requerente. O caso suscita distintos pontos de interesse. Este ensaio será dedicado a três dentre eles: a noção de “soma global” (global sum) desenvolvida pela Corte para calcular os danos, a inversão do ônus da prova empregada na avaliação de provas e, enfim, a questão das reparações ambientais, representando certo continuum da temática após o caso Certas Atividades  entre Costa Rica v. Nicaragua.

O caso dos Grandes Lagos refere-se às atividades armadas conduzidas por Uganda em províncias do território congolês em fins da década de 1990, com o alegado objetivo de combater grupos rebeldes. Em síntese e inter alia, em sua decisão de 2005 a Corte concluiu que Uganda deveria ser considerada um “Estado ocupante” na província de Ituri (RDC), o que ensejaria sua responsabilidade internacional por violar o princípio do não uso da força nas relações internacionais o princípio da não intervenção, bem como por seu fracasso, como potência ocupante, em tomar medidas para respeitar e garantir o respeito aos direitos humanos e ao direito internacional humanitário, especialmente em relação à população civil. Uganda foi considerada como responsável por atos de saques, pilhagens, recrutamento de crianças-soldado, destruição de propriedade privada, tráfico de minerais preciosos e exploração ilícita dos recursos naturais na região. Além disso, o Estado também foi condenado por assassinatos, tortura e tratamento degradante, bem como por incitação de conflitos étnicos em diversas províncias congolesas, as quais encontravam-se sob maior ou menor influência de Uganda. As violações foram descritas pela Corte como “massivas”.

Somando globalmente?

Ao quantificar o dano causado à RDC por consequência de tais atos ilícitos, a Corte lançou mão de uma metodologia inédita. Ao invés de estabelecer os valores correspondentes a cada uma das violações, optou por estipular uma “soma global” inspirada pela prática de lump-sum em outros tribunais internacionais. A Corte justificou-se ao notar que o contexto de conflitos armados em áreas remotas e de estrutura precária não raro prejudica a coleta e o armazenamento adequados de provas, conduzindo a um padrão de prova mais flexível na fase de estabelecimento de reparações baseado em “estimativas razoáveis” e “indicativos concordantes”, bem como “considerações de equidade”. No presente caso, a Corte adotou a metodologia para quantificar os danos causados a partir de violações ao direito à vida, à integridade pessoal e à dignidade sexual, à propriedade e às proibições ao recrutamento de crianças-soldado e ao deslocamento forçado.

A escolha da Corte é criticável porquanto parece diminuir a transparência dos cálculos realizados. Ademais, invoca de maneira dúbia o conceito de equidade para fundamentar suas reparações. No mesmo sentido, a opinião separada do juiz Yusuf aponta que os valores apontados pela Corte são discricionários e não se engajaram de maneira aprofundada com as provas oferecidas pelas partes, experts e terceiros independentes. Ao contrário, teriam sido baseados em uma estimativa a partir do “intervalo de possibilidades indicados pelas provas”. Segundo o juiz Tomka, haveria contraste com o artigo 56 do Estatuto da Corte, que impõe a necessidade de fundamentar o julgamento. Além disso, a generalidade das reparações não parece condizente com a Decisão de Mérito expedida em 2005, ponto solevado pelo juiz ad hoc Daudet, na qual a Corte parecia ter se afastado das reminiscências do direito da proteção diplomática em benefício de considerar o direito individual dos sujeitos à reparação por danos sofridos. Trata-se de uma incongruência especialmente gritante, segundo Yusuf, no que concerne às crianças-soldado envolvidas no conflito.

Não há dúvidas que a Corte, nesse caso, encontrava-se perante um panorama probatório de alta complexidade. Contudo, pode-se sempre questionar se as escolhas metodológicas realizadas pela maioria para garantir alguma reparação foram as mais adequadas exatamente porquanto exigia-se maior cautela ao lidar com o corpo probatório existente. O engajamento qualificado com as evidências apresentadas diante da Corte seria, por consequência, desejável.

Quando pode-se inverter o ônus da prova na jurisprudência da Corte?

Em vista da ocupação por Uganda da província congolesa de Ituri e das dificuldades de coleta de provas na região, a Corte optou por operar inversão do ônus da prova em benefício da requerente. A decisão flexibiliza a tendência geral da jurisprudência, notadamente no caso Pulp Mills, no qual a Corte afirmou que “enquanto uma abordagem de precaução pode ser relevante na interpretação e aplicação das disposições do Estatuto, não se segue como consequência uma inversão do ônus da prova”. Asseverando que a determinação do ônus da prova depende “da matéria e da natureza de cada disputa” (para. 117), a Corte parece ter sustentado sua inversão por uma necessidade de eficácia e cumprimento de sua função judicial em um cenário de nítida complexidade probatória.  Em xeque à inversão operada pela Corte, o juiz Yusuf destacou que a mesma colocaria sobre Uganda o dever de provar uma “dupla negativa”, isto é, que os danos particulares provocados em Ituri não teriam sido causados por seu não-cumprimento do dever de diligência. Caso Uganda se mostrasse incapaz de provar tais fatos, a Corte assumiria não apenas a existência do dano, mas também seu nexo causal com a negligência do Estado demandado. Segundo o juiz, trata-se de um limiar excessivamente exigente.

Segundo a jurisprudência da Corte, a inversão do ônus da prova deve ocorrer nas circunstâncias em que a parte contrária àquela que apresenta uma dada alegação encontra-se em “melhores condições” para estabelecer determinados fatos. No caso concreto, a inversão ocorreu por conta de tratar-se de um território ocupado por Uganda, a qual deveria ter observado uma obrigação de vigilância. A averiguação de tal “melhor condição” submete-se ao escrutínio da própria Corte. O entendimento esposado reforça alguma discricionariedade para avaliar tais circunstâncias. Em outras palavras, será a Corte a ter a última palavra sobre quando tais características se verificam. Se no passado, a Corte não elencou critérios delimitados para a inversão do ônus, a decisão de reparações em Atividades Armadas no Território do Congo fornece alguns subsídios para que se compreenda quais são as condições para sua ocorrência em controvérsias envolvendo conflitos armados.

Dano ambiental reparado?

Já em sua decisão de mérito em 2005, a Corte havia apontado a responsabilidade internacional de Uganda pela exploração ilegal – por vezes via pilhagem – dos recursos naturais da RDC, o que serviu de fundamento à demanda deste Estado por compensação a partir do princípio geral da coisa julgada.  O relatório produzido pelos experts nomeados pela Corte, em que pese tenha sublinhado as “condições tumultuosas” nas quais o trabalho foi conduzido e a coleta de “provas anedóticas”, corroborou para a decisão da Corte de que Uganda teria violado o Artigo 43 das Regulamentações da Haia de 1907 enquanto Estado ocupante da província de Ituri. Em contrapartida, a responsabilidade ugandesa sobre o dano ambiental em outras sub-regiões foi submetida a um crivo de controle efetivo daquele Estado sobre seus autores.  A Corte definiu compensação para a extração ilícita de ouro, diamantes e nióbio em valores semelhantes aos apontados pelos experts, enquanto adotou valor inferior no caso da extração ilegal de café e madeira.

Chama atenção, todavia, o fato de que a Corte não estabeleceu compensação por danos ambientais diretamente causados pelo desmatamento, embora tenha estabelecido reparação por danos causados à fauna nativa. Em que pese a alegação da RDC de que a exploração madeireira comercial implicou diretamente na perda de biodiversidade, a Corte não identificou provas suficientes as quais permitissem quantificar o dano ainda que de maneira aproximada e, por esse motivo, não estabeleceu compensação pela demanda. Não obstante, a Corte considerou que os relatórios probatórios oferecidos por organizações internacionais referentes a danos causados à fauna em reservas ambientais congolesas implicavam a necessidade de se estabelecer reparações – à revelia das alegações ugandesas de que o quantum calculado por vida animal perdida era arbitrário e por vezes baseado em preços adotados pelo mercado negro.

Os 60 milhões destinados pela Corte à reparação do dano ambiental podem ser considerados significativos, em especial ao se considerar que a maior reparação ambiental da Corte até então somava 120 mil dólares em Nicarágua v. Costa Rica. Contudo, dadas as proporções dos eventos, e dos debates sobre impactos climáticos, talvez a Corte pudesse ter sido um pouco mais assertiva na consideração desses danos.

Justiça tardia?

            Em sua declaração apensada à ordem da corte nomeando peritos, o juiz Antônio Augusto Cançado Trindade sabiamente recuperou a máxima “justice delayed, justice denied”. Indubitavelmente, o desfecho da longa disputa judicial entre Congo e Uganda é motivo de apologia à existência de organismos internacionais judicantes. Foi a maior reparação deferida pela Corte em sua história. A Corte cumpriu sua função judicial e, como de hábito, ofereceu uma decisão tecnicamente sustentada e em franco diálogo com as partes – e igualmente meritória de crítica por parte de seus comentadores. Parece também uma Corte mais aberta também a dialogar com outros tribunais internacionais – apesar de não se inspirar nas cortes regionais de direitos humanos para cálculos de reparações. Todavia, o mesmo juiz também recordou: “os beneficiários últimos das reparações devidas neste caso (…) são as vítimas.” Há de se questionar se ambos os ditos foram considerados igualmente, e se a celeridade exigida não acabou por “fazer esquecer” uma derradeira e importante frase neste histórico julgamento de reparações.

  • Professor de Direito Internacional Público da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG. Membro da Diretoria da ILA-Brasil.

  • Rodrigo Machado Franco é Mestrando em Direito Internacional Público pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais Stylus Cyuriarum (UFMG/CNPq).

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter