Reflexões sobre a “Agenda Internacional de Direitos Humanos e Empresas” e sua contribuição para o Direito Internacional

Acompanho o processo de negociação de um Tratado Internacional sobre Empresas e Direitos Humanos junto ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU), na condição de Coordenadora Geral do Homa-Centro de Direitos Humanos e Empresas da Faculdade de Direito da UFJF, desde o seu início, em 2015. Em final de outubro desse ano, presenciamos a sétima sessão de negociação. Antes de apontar aqui os principais desafios e as perspectivas futuras do Tratado, gostaria de destacar a importância de um instrumento internacional como esse, e quais discussões referentes ao Direito Internacional ele ajuda a evidenciar.

A presença de empresas multinacionais, ou transnacionais, como usualmente são denominadas hoje, como atores capazes de incidirem no território dos Estados, tanto em suas deliberações políticas, quanto econômicas, muitas vezes difíceis de serem diferenciadas, passa a ser mais digna de nota a partir da década de 70 do século XX, quando debates sobre o processo de globalização ou mundialização do capital, conforme definiu François Chesnais (A Mundialização do Capital, Ed. Xamã, São Paulo, 1996) passam a ganhar mais evidência.

A chamada “Agenda Internacional de Empresas e Direitos Humanos”, ou “Direitos Humanos e Empresas”, como nós do Homa preferirmos chamar, em razão da demanda pela supremacia dos Direitos Humanos sobre quaisquer acordos de comércio ou de investimento, que também está em disputa na elaboração do texto do Tratado, tem como marco histórico o discurso do então presidente do Chile, Salvador Allende, na Assembleia Geral da ONU, em 1972. A morte de Allende no ano seguinte, após um golpe de Estado que contou com a contribuição de empresas transnacionais, além de uma reconfiguração da ordem internacional, impulsionada pela descolonização, e o movimento do G77 em prol de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), somados ao ativismo da sociedade civil, que também se preparou para uma melhor participação nos espaços internacionais, configuraram elementos importantes para pressionar as Nações Unidas pela incorporação da temática.

Considero bem didática a divisão que os professores Surya Deva e David Bilchitz fazem dos diferentes estágios referentes ao “avanço” dessa Agenda. Segundo Deva e Bichitz (Human Rights Obligations of Business: Beyond the Corporate Responsability to Respect? Nova York, Cambridge University Press, 2013) a primeira fase se inicia em 1972, após o discurso de Salvador Allende, tendo como primeiros passos a criação da Comissão sobre Empresas Transnacionais, (Comissão sobre Investimento Internacional e Empresas Transnacionais), submetida ao Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, e iria até 1990, com a apresentação do draft do Código de Conduta para Empresas Transnacionais.

A segunda fase, por sua vez, instaura-se em 1997-1998 com o estabelecimento de um Grupo de Trabalho na Subcomissão para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, subordinada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, anteriormente chamada de Comissão de Direitos Humanos, para analisar os métodos de trabalho e atividades das empresas transnacionais e apresentar um documento normativo ao final do trabalho. Em meados de 2003, o grupo de trabalho ligado à Subcomissão para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos apresentou o draft das Normas sobre Responsabilidades das Empresas Transnacionais e Outros Negócios com Relação a Direitos Humanos, conhecidas como “Normas”, que em razão justamente dos avanços trazidos, não obteve aceitação por parte do Comitê de Direitos Humanos;

Em concorrência ao trabalho deste grupo, o então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, no ano de 1999, lançou o Pacto Global, Global Compact.

A terceira fase se iniciaria em 2005 com a nomeação do professor de Harvard, consultor de empresas, e um dos relatores do próprio Pacto Global, John Ruggie, Representante Especial do Secretário Geral para a temática Direitos Humanos e Empresas Transnacionais. O seu mandato foi prorrogado até 2011, quando este apresentou ao Conselho de Direitos Humanos da ONU os Princípios Orientadores em Empresas e Direitos Humanos (Guiding Principles), resultado final de seu trabalho.

Alguns aspectos devem ser destacados para a compreensão do processo em curso atualmente: existe uma narrativa predominante de valorização e reprodução dos Guiding Principles como parâmetro regulador da atividade empresarial em matéria de Direitos Humanos. A princípio isso se justificaria pela adoção consensual do documento no Conselho de Direitos Humanos. Cabe a consideração, entretanto, de que para muitos críticos dos Princípios, esse consenso foi produzido artificial e pragmaticamente, uma vez que todos os ingredientes favoráveis aos interesses empresariais, e das grandes potências detentoras das matrizes das empresas transnacionais estariam garantidos na elaboração do documento, ou seja, desde a escolha do professor John Ruggie como Representante Especial, passando pela  natureza voluntária do texto, a falta de previsão a respeito de instrumentos internacionais vinculantes em matéria de Direitos Humanos a nortear a conduta empresarial, além da omissão sobre obrigações diretas  para as empresas em matéria de Direitos Humanos, assim como de mecanismos de extraterritorialidade ou cooperação internacional que respondessem à altura dos desafios concernentes ao caráter transnacional da atividade empresarial, que as coloca em uma cenário considerado propicio à impunidade, ou como parte da chamada “arquitetura da impunidade” .

Segundo Juan Hernández Zubizarreta e Pedro Ramiro (Against the ‘Lex Mercatoria’: proposals and alternatives for controlling transnational corporations. Madrid, OMAL, 2016), a “arquitetura da impunidade” define-se como um conjunto de elementos normativo-fático-políticos que tornam o contexto global propício às empresas para atuarem em seu modus operandi violador de direitos, repetido sistematicamente, sem qualquer imposição de medidas sancionatórias efetivas. 

A falta desses elementos que consideramos fundamentais, que se evidenciam na constatação cotidiana da persistência de violações de Direitos Humanos cometidas por empresas, sem uma responsabilização ou reparação efetiva aos atingidos e atingidas, já havia sido diagnosticada logo após a adoção dos Princípios, no mesmo Conselho de Direitos Humanos. Durante a 24ª Sessão do Conselho, em setembro de 2013,  o “consenso” ao redor dos Princípios Orientadores mostrou-se frágil, quando um grupo de países africanos e árabes, além  do Paquistão, Sri Lanka, Quirguistão, Cuba, Nicarágua, Bolívia, Venezuela, Peru e Equador apresentaram uma declaração na qual deixaram claro que sem buscar um marco juridicamente vinculante, o endosso dado aos Princípios Orientadores pelos Estados, em 2011,  seria a first step, without further consequences (UNHRC, 2013), e que mecanismos de soft law ,como os Princípios de Ruggie, não seriam suficientes para garantir a reparação e a devida proteção às vítimas de violações de Direitos Humanos por empresas, principalmente transnacionais, não sendo  capazes, portanto, de preencherem o gap jurídico existente para a devida responsabilização de empresas, extraterritorialmente.

A partir de então, podemos mencionar, de forma sintética, que existem três processos em curso na aqui denominada ‘Agenda Internacional de Direitos Humanos e Empresas”: 1. A negociação do Tratado Internacional após a adoção da Res26/9 de 2014 (A/HRC/RES/26/9) pelo Conselho de Direitos Humanos. Importante destacar que a Resolução contou com 20 votos à favor, 14 votos contrários e 13 abstenções, incluindo a abstenção brasileira, evidenciando uma clara separação entre os posicionamentos do norte e sul globais. Com a aprovação da Resolução criou-se o Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta sobre Empresas e Direitos Humanos, cujo mandato deveria concentrar-se na busca por uma melhor regulamentação de empresas transnacionais ou outras empresas com caráter transnacional, a fim de prevenir violações de Direitos Humanos, ou melhor repará-las;

 2. Os esforços para a implementação dos Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos, através do Grupo de Trabalho sobre Empresas e Direitos Humanos, que preceituam, basicamente, a implementação de Planos Nacionais de Ação sobre Empresas e Direitos Humanos pelos Estados (NAPS). O Grupo sobre os Guiding Principles é conhecido pelo seu vasto orçamento, que em muito supera o do Grupo de Trabalho Intergovernamental, entretanto, a proposta dos Planos Nacionais de Ação tem se mostrado desastrosa, não apenas no sul global, mas também nos países do norte. O Homa já publicou dois estudos a respeito dos mesmos

3. Em razão do diagnóstico de falência, já em grande medida disseminado, da iniciativa dos Planos Nacionais, muitos países têm investido na elaboração de Leis de Devida Diligência. Além dos debates atuais em torno de uma Lei Regional Européia sobre Devida Diligência,  e outras iniciativas nacionais de natureza semelhante, um grande marco foi a aprovação, em fevereiro de 2017, pelo Parlamento Francês de uma lei estabelecendo o chamado “dever de vigilância” para empresas domiciliadas em território francês. Apesar de ter sua aplicação limitada apenas às maiores corporações francesas, a nova legislação marca um importante passo na imposição de obrigações diretas de respeito e proteção aos Direitos Humanos por empresas, no âmbito da sua cadeia global de valor. Entretanto, a mesma lei já não se mostrou efetiva no caso Total, em Uganda.

Apesar dos diferentes caminhos que nos levam a refletir sobre a necessidade de se buscarem recursos mais eficientes para a prevenção e reparação de violações de Direitos Humanos por empresas, especialmente transnacionais, ou com caráter transnacional, acreditamos que a negociação do Tratado é o que efetivamente abre espaço para as melhores oportunidades nessa seara, além de propiciar as análises mais ambiciosas concernentes ao Direito Internacional. Após sete rodadas de negociação, e cinco documentos apresentados pela presidência do Equador do Grupo de Trabalho Intergovernamental (Elements, Draft 0, Draft1, Draft2, Draft3) grandes questões ainda se encontram em disputa:

1.Ao atribuirmos obrigações às empresas, necessariamente estamos atribuindo-lhes maior capacidade jurídica internacional, correspondente a mais direitos? Esse debate revelou a posição mais política do que técnica, ou jurídica, dos países matrizes das empresas transnacionais, uma vez que durante as sessões vários experts (eu, inclusive, tive a oportunidade de participar como expert na 3ª sessão, em 2017, a convite do Equador) debateram o tema, destacando demais instrumentos internacionais que já prevêem obrigações para as empresas, claro que distintas das obrigações dos Estados, como bem destacou o professor Olivier De Schutter, assinalando que tal fato não corresponderia ao reconhecimento de mais garantias, apesar da existência de todo um conjunto de mecanismos internacionais, hoje, que já beneficiam as empresas, permitindo que até processem Estados pela defesa de seus interesses, como o conhecido ISDS (Arbitragem de Litígios Investidor-Estado). Soma-se a tal argumento, o recente Relatório Redesca, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que consolida os precedentes do Direito Internacional dos Direitos Humanos, em seu espectro regional, reafirmando a existência de tais obrigações, como afirma Andressa Oliveira Soares (Direitos Humanos e Empresas no Sistema Interamericano, Belo Horizonte, Editora Dialética, 2021);

2.Necessidade de mudança de paradigma, de forma mais sistemática, com relação ao reconhecimento da importância histórica dos Guiding Principles, mas com a sua superação, especialmente no que tange à linguagem. Deve-se admitir a possibilidade das empresas violarem Direitos Humanos algo que só caberia aos Estados, na década de 50 do século XX, quando da criação dos Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos), e não apenas promoverem riscos ou impactos. Além disso, para uma correspondência mais adequada com os parâmetros protetivos dos Direitos Humanos, é fundamental entender que seria possível mitigar riscos, mas nunca mitigar impactos ou violações de Direitos Humanos, uma vez que os Direitos Humanos são inegociáveis, indivisíveis e interdependentes. Esta nova linguagem estaria mais de acordo com o Comentário Geral 24 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas;

3.Outro aspecto fundamental, e que abarca o campo da prevenção em matéria de violações de Direitos Humanos diz respeito à reformulação dos preceitos da devida diligência. Importante implementar uma lógica real de devida diligência de Direitos Humanos, com um potencial de monitoramento que vá além do automonitoramento empresarial, com a obrigação de transparência por parte dos entes corporativos, garantindo a participação ampla de potenciais atingidos e atingidas por violações de Direitos Humanos. E, sobretudo que seja assegurado o direito ao Consentimento de ditas populações, compreendendo a natureza da devida diligência, em alguns setores da atividade produtiva, como obrigação não só de meio, um checklist, mas uma obrigação de resultado, em toda a cadeia global de produção empresarial;

4. Acirrado debate envolve a previsão de responsabilidade civil, penal e administrativa das pessoas jurídicas, em uma estrutura judicial que garanta o amplo acesso à justiça e o devido processo legal, reconhecendo, essencialmente, o enorme desequilíbrio habitual entre as partes do processo. O que nos levaria a defender o direito à inversão do ônus da prova, em prol dos atingidos e atingidas, somado à necessidade de um fundo financeiro que auxilie na prestação jurisdicional aos mais vulneráveis;

5.Uma serie de mecanismos concernentes à extraterritorialidade e à assistência legal mutua estão abertos à discussão na proposta de Tratado, como a necessidade de cooperação, fornecimento de informações, mais uma vez o dever de transparência por parte das empresas, assim como critérios para homologação de sentenças provenientes de casos de graves violações de Direitos Humanos, proibição de alegação do forum non conveniens, além de um critério de determinação de forum necessitatis;

6.Com relação aos remédios, vários Estados, assim como organizações não governamentais e experts defendem que seja incorporada, ao menos como uma possibilidade, a composição de uma Corte Internacional para julgar violações de Direitos Humanos cometidas por empresas transnacionais ou com caráter transnacional.

Esses foram alguns dos principais aspectos que estiveram em discussão durante essa 7ª sessão de negociação do Tratado Internacional sobre Empresas e Direitos Humanos, em outubro, muitos revisitados, evidenciando a riqueza do espectro teórico e analítico, tanto para o para o Direito Internacional Público, quanto para o Privado. Como perspectiva futura, apostamos na continuidade do processo, com vistas a um momento mais favorável à defesa dos Direitos Humanos em espaços multilaterais, e que novas tentativas de boicote, como a apresentação de uma desconstrução do Tratado, transformando-o em uma framework Convention, sob a desculpa de se assegurar um novo “consenso”, aos moldes dos Princípios Orientadores, defendida pela professora da Claire Methven O`Brien, da Universidade de Dundee, não seja adotada. Também é fundamental que se impeça a captura corporativa total do processo (apesar de já se assegurar ECOSOC e direito de participação à Associação Internacional de Empregadores e à Câmara Internacional de Comércio, por exemplo), agora que na nova previsão de criação de um Grupo, intitulado de “Amigos da Presidência”, tenha sido aprovada a consulta às empresas para a elaboração do novo Draft, até junho de 2022. Com relação a esse aspecto, evocamos o art5.3 da Convenção da Organização Mundial da Saúde (OMS) para Controle do Tabaco. Enfim, exortamos que esse processo e o espaço do Conselho de Direitos Humanos se mantenha como um forum de defesa desses direitos e de sua lógica e princípios, como muitas vezes, durante todos esses anos de negociação, foi reclamado por Estados, diversos integrantes da sociedade civil, e experts. 

  • Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutora em Direito Internacional e da Integração Econômica pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

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