A internacionalização das empresas tem transformado a economia global, permitindo que corporações multinacionais expandam sua atuação para além das fronteiras nacionais e a estruturação de redes corporativas, que se estendem por diferentes jurisdições cresçam e aproveitem regras mais vantajosas nos sistemas financeiros, legais e regulatórios. Nesse sentido, o uso de estruturas offshore se tornou uma ferramenta útil para que as empresas administrem suas operações e otimizem sua carga tributária. O Direito Internacional enfrenta o desafio de equilibrar a promoção de investimentos estrangeiros com a necessidade de proteger as economias locais e garantir justiça fiscal, pelo que uma maior harmonização regulatória e a cooperação entre Estados são essenciais para mitigar os impactos negativos dessas práticas.
Por outro lado, as redes corporativas globais têm emergido e conectam elites empresariais e reguladores, promovendo um fluxo de informações e recursos que influenciam diretamente a governança corporativa e as decisões econômicas. No entanto, essa interconexão também concentra poder em poucos agentes, criando barreiras à entrada de novos participantes e comprometendo a competitividade de mercado. Essas redes, frequentemente utilizadas para legitimar estratégias offshore, tornam-se um desafio para a governança global, evidenciando lacunas regulatórias no Direito Internacional. Nesse sentido, se questiona: Como as estruturas offshore e as redes corporativas globais influenciam a eficiência tributária e a governança das empresas multinacionais?
Esse blogpost parte da hipótese de que as multinacionais utilizam redes corporativas e estruturas offshore não apenas para otimizar sua eficiência tributária, mas há outros critérios para a escolha de um destino offshore, que inclui eficiência operacional (tanto para mercadorias, quanto para serviços), brechas regulatórias e a baixa transparência de alguns centros financeiros offshore. Isso resulta em desigualdade tributária e desafios à equidade social, enquanto intermediários, como grandes firmas de contabilidade, facilitam esse processo ao influenciar o desenvolvimento de regulamentações favoráveis.
As estruturas offshore e as redes corporativas globais representam uma das facetas mais complexas e controversas da economia contemporânea, onde a confluência entre legalidade e ética se torna um ponto de debate constante. Fundamentadas em regulamentações diferenciadas e jurisdições favoráveis, essas ferramentas permitem às empresas multinacionais otimizar sua eficiência tributária e operacional. Contudo, seus impactos sociais e econômicos, aliados à insuficiência de mecanismos regulatórios eficazes no Direito Internacional, levantam questões prementes sobre justiça fiscal, governança global e o papel do direito na proteção da equidade. O uso de estruturas offshore se baseia na exploração de vantagens fiscais e na flexibilidade regulatória oferecida por determinadas jurisdições, como Luxemburgo e os Países Baixos. Essas jurisdições desempenham papéis estratégicos, categorizados como “condutores” – rotas de movimentação de lucros – e “sumidouros” – locais de acumulação de capitais. Embora promovam eficiência para corporações, essas práticas exacerbam desigualdades sociais ao reduzir a base tributária de Estados de origem, privando-os de recursos para investimento em infraestrutura e políticas públicas.
A literatura também evidencia como o sigilo financeiro associado a essas jurisdições facilita atividades ilícitas, incluindo lavagem de dinheiro e evasão fiscal. Escândalos como os Panama Papers demonstram que a ausência de transparência enfraquece a confiança pública nas instituições financeiras e governamentais, comprometendo a governança democrática.
As redes corporativas são as conexões entre indivíduos e organizações dentro e entre fronteiras. Essas realizam o fluxo de informações e recursos e desempenham papel essencial nos processos de governança corporativa e tomada de decisões. Elas incluem membros de conselhos, executivos corporativos e até mesmo autoridades governamentais que, por meio de suas posições interconectadas, ajudam a moldar a economia global. Tais redes operam em diferentes níveis, desde elites empresariais locais até corporações transnacionais, desenvolvendo uma inteligência de mercado e oportunidades de investimento que dependem das relações entre empresas, o que inclui os membros de conselhos, diretoria e em alguns casos órgãos reguladores.
No que tange ao Direito Internacional, este desempenha um papel central na tentativa de equilibrar a eficiência operacional das empresas com os interesses sociais e fiscais dos Estados. No entanto, a fragmentação normativa e a ausência de mecanismos globais eficazes limitam sua capacidade de regular adequadamente essas práticas. A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, lidera esforços para mitigar os impactos nocivos das estruturas offshore por meio de iniciativas como o BEPS (Base Erosion and Profit Shifting). Contudo, tais medidas enfrentam resistência de Estados que se beneficiam da manutenção de jurisdições de baixa tributação. Temos também os tratados bilaterais de investimentos (BITs) e convenções internacionais, que frequentemente favorecem a proteção de investidores em detrimento da soberania fiscal dos Estados, dificultando o combate à evasão fiscal e à lavagem de dinheiro. Por exemplo, o uso estratégico de tratados, como no caso do gasoduto Bolívia-Brasil mediado por investimentos nos Países Baixos, demonstra como o Direito Internacional pode ser instrumentalizado para proteger interesses privados em detrimento de políticas públicas locais e dar maior segurança jurídica a negócios internacionais.
Um dos aspectos mais controversos das redes corporativas é o uso de centros financeiros offshore por empresas multinacionais. Os centros offshores servem como nós cruciais dentro da rede corporativa global, permitindo que as empresas reduzam suas cargas tributárias, aumentem a privacidade financeira e facilitem os fluxos de investimentos globais. Países como os Países Baixos, Luxemburgo e o Reino Unido desempenham papéis significativos nessa estrutura global, atuando como condutores pelos quais as corporações direcionam seus investimentos. No Reino Unido, por exemplo, Londres ocupa uma posição de destaque como centro financeiro global, conectando as redes corporativas da Europa continental com aquelas dos Estados Unidos e de outras nações do Commonwealth. Já os centros offshore, como Ilhas Cayman, Bermuda e Ilhas Virgens Britânicas, são amplamente utilizados para facilitar essas conexões, fornecendo às corporações vantagens fiscais significativas e um alto grau de sigilo financeiro (Takes et al., 2016).
Os países condutores, como os já mencionados Países Baixos e Reino Unido, servem como rotas principais pelas quais as empresas multinacionais movem seus lucros e ativos. Tais jurisdições oferecem um ambiente legal e regulatório sofisticado, que permite a otimização fiscal e a eficiência operacional. Em contraste, os países sumidouros, como Luxemburgo e Hong Kong, são onde os lucros acumulam-se e ficam armazenados. Esses países são conhecidos por suas baixas taxas de imposto e por suas políticas financeiras que incentivam o sigilo e a acumulação de capitais (Garcia-Bernardo et al., 2017).
Um fator chave que contribui para a eficácia dessas estruturas offshore é o papel dos intermediários, como escritórios de contabilidade e consultores jurídicos, que lhes confere eficiência operacional. As “Big Four” firmas de contabilidade (Deloitte, PwC, EY e KPMG) são notórias por auxiliar corporações a estruturar suas operações offshore. Essas empresas não só fornecem expertise em planejamento tributário, mas também desempenham um papel ativo na criação dos arcabouços legais que permitem que as multinacionais atuem nessas zonas cinzentas das regulamentações internacionais. Elas frequentemente agem como intermediárias entre governos e empresas, influenciando o desenvolvimento de novas regulamentações de maneira que favoreça seus clientes (Ajdacic et al., 2021). Em alguns casos, essas empresas têm sido apontadas como protagonistas na defesa dos interesses de outras corporações que buscam minimizar suas obrigações fiscais, pois operam como facilitadores, conectando empresas a mercados que, de outra forma, seriam inacessíveis devido a regulamentações locais. Além disso, muitas vezes influenciam o próprio processo de formulação de políticas regulatórias, de forma a garantir que as empresas continuem a se beneficiar de brechas fiscais.
Entretanto, a utilização de estruturas offshore fazem emergir o argumento por parte de alguns pesquisadores que embora sejam legalmente permitidas em muitas jurisdições, a prática de usar essas estruturas para reduzir a carga tributária acaba contribuindo para a desigualdade global. Empresas e indivíduos extremamente ricos conseguem minimizar o pagamento de impostos, o que diminui os recursos disponíveis para governos investirem em infraestrutura e serviços públicos, agravando assim as disparidades sociais (Heemskerk et al., 2016). Além disso, o sigilo associado aos centros financeiros offshore também facilita atividades ilícitas, como lavagem de dinheiro e corrupção. Escândalos como os Panama Papers e o Luxembourg Leaks expuseram como empresas e indivíduos de alta renda utilizam essas jurisdições para esconder ativos e evadir impostos. Essas revelações têm gerado apelos por maior transparência e regulamentações mais rígidas para coibir o abuso dessas estruturas (Fichtner et al., 2017).
Apesar dos riscos e de questões éticas envolvidas, os centros financeiros offshore continuam a ser uma ferramenta utilizada de forma estratégica para muitas corporações globais. Como alternativa, alguns especialistas sugerem que maior regulamentação é necessária para equilibrar as necessidades de eficiência operacional com as demandas por transparência e equidade social. Promover maior controle sobre os intermediários e seus papéis no planejamento tributário internacional também é uma peça fundamental para garantir que as redes corporativas globais operem de forma mais justa (Garcia-Bernardo et al., 2017).
Em última análise, o desafio para os formuladores de políticas será encontrar um equilíbrio entre permitir que as empresas operem internacionalmente de maneira flexível e garantir que contribuam de forma justa para as sociedades em que atuam. À medida que a integração econômica global continua, o fechamento de brechas regulatórias e o aumento da transparência financeira pode ser o caminho para assegurar que as redes corporativas beneficiem não apenas um grupo privilegiado, mas a sociedade como um todo.
Esse blogpost é um breve resumo dos tópicos abordados na dissertação de mestrado da autora “O direito na proteção da riqueza e a remessa de capital: quando a baixa tributação não responde tudo, uma análise sobre os Países Baixos e Luxemburgo”, que teve como base a revisão sistemática de literatura visando encontrar o que além da tributação importa no momento de estruturação de empresas offshore.
Referências
AJDACIC, Lena D.; HEEMSKERK, Eelke M.; GARCIA-BERNARDO, Javier. The Wealth Defense Industry: A large-scale study on accountancy firms as profit shifting facilitators. New Political Economy, v. 26, n. 1, p. 1-17, 2021.
FICHTNER, Jan; HEEMSKERK, Eelke M.; GARCIA-BERNARDO, Javier. Uncovering Offshore Financial Centers: Conduits and Sinks in the Global Corporate Ownership Network. Scientific Reports, v. 7, art. 6246, 2017.
GARCIA-BERNARDO, Javier; FICHTNER, Jan; TAKES, Frank W.; HEEMSKERK, Eelke M. Sinks and Conduits: Identifying Offshore Financial Centers by using Big Data. IFC Economic Report, Winter 2017/18, p. 61-63, 2017.
HEEMSKERK, Eelke M.; FENNEMA, Meindert; CARROLL, William K. The global corporate elite after the financial crisis: evidence from the transnational network of interlocking directorates. Global Networks, v. 16, n. 1, p. 68-88, 2016.
TAKES, Frank W.; KOSTERS, Walter A.; WITTE, Burkhardt; HEEMSKERK, Eelke M. Multiplex network motifs as building blocks of corporate networks. Applied Network Science, v. 3, n. 39, p. 1-22, 2018.
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Anna Cortellini é doutoranda e mestre em Direito e Desenvolvimento pela FGV Direito SP. Graduada em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e em Ciências Contábeis e administração de empresas pela FIPECAFI. É advogada e professora de direito. Foi pesquisadora no Centro de Estudos do Comércio Global e Investimentos (CCGI), EESP/FGV e, atualmente, está vinculada ao Núcleo de Direito Global e Desenvolvimento (NDGD) da FGV Direito SP e ao Centro de Inovação da EAESP FGV.