Proteger o patrimônio cultural do MERCOSUL é necessário para o futuro dessa organização?

2021 marcou o aniversário de 30 anos de fundação do MERCOSUL, curiosamente, a mesma idade do autor deste texto. A organização regional criada com o intuito de fortalecer as relações econômicas entre países sul-americanos, infelizmente, terá como marca desse ano a palavra divergência. Brasil e Argentina expressaram, no mês de julho, posições divergentes sobre a Tarifa Externa Comum (TEC). Em setembro do mesmo ano, Argentina e Uruguai ficaram em posições opostas quando a pauta foi os impactos para o bloco regional da negociação de tratado de livre comércio entre a China e o país presidido por Lacalle Pou. Apesar dessa situação, existe um aspecto de conexão entre os países membros do MERCOSUL que merece uma maior atenção.

Durante esses 30 anos de funcionamento do MERCOSUL, um ponto que mostrou ser um elo entre os países membros foi a cultura. Expressões culturais como o chamamé e a pajada são exemplos claros dessa conexão, pois ambas podem ser vistas em mais de um Estado Parte do bloco.  Ignorada no Tratado de Assunção de 1991, a proteção à cultura começou a ter normativa mais evidente na organização a partir do Protocolo de Integração Cultural do MERCOSUL, elaborado em 1996.

No contexto da proteção à cultura, é que se insere o patrimônio cultural do MERCOSUL, pois aqui estão as expressões culturais que unem os países membros desta organização sul-americana. Esta união tem reflexos também em aspectos econômicos, pois a preservação desse patrimônio cultural irradia nas finanças dos membros do bloco, seja pelo gasto na salvaguarda ou pelo retorno financeiro através da exibição da expressão cultural. Um turista europeu que visite as Ruínas de São Miguel das Missões e, dias depois, decida ir ao Festival de Chamamé de Corrientes estará em contato com patrimônios culturais materiais e imateriais do MERCOSUL, de maneira que o seu dinheiro utilizado no passeio ficará dentro do referido bloco regional sul-americano, neste exemplo.

A principal normativa em vigor sobre proteção do patrimônio cultural no MERCOSUL é a Decisão nº 21/14 do Conselho do Mercado Comum (CMC), a qual merece destaque dentro do Direito Internacional do Patrimônio Cultural, pois é um complemento tanto para o Protocolo de Integração Cultural do MERCOSUL como para as regras do MERCOSUL Cultural.

O que se entende por patrimônio cultural do MERCOSUL?

De acordo com o artigo 1º do anexo da Decisão nº 21/14 do CMC, é qualquer bem cultural, material ou imaterial, que tenha as seguintes características: 1) manifestação de valores associados a processos históricos vinculados aos movimentos de autodeterminação ou expressão comum da região perante o mundo; 2) expressão de esforços de união entre os países; 3) tenha referências culturais a mais de um país do bloco; 4) constitua fator de promoção da integração entre países do MERCOSUL.

O reconhecimento do primeiro patrimônio cultural do MERCOSUL foi a Ponte Internacional Barão de Mauá, em 2013, ainda na vigência da Decisão nº 55/12 do CMC.

Em bens materiais, deve ser posta a sinalização de Patrimônio Cultural do MERCOSUL, no prazo de 1 ano a contar de seu reconhecimento como tal, nos termos do artigo 9º do anexo da Decisão nº 21/14 do CMC. Não há previsão de sanções ao Estado Parte que abriga o patrimônio nem à Comissão do Patrimônio Cultural do MERCOSUL, caso a placa não seja colocada.

Quem possui a competência para determinar os patrimônios culturais do MERCOSUL?

Segundo o artigo 5º do anexo da Decisão nº 21/14 do CMC, o reconhecimento do patrimônio cultural no MERCOSUL é feito pela Comissão do Patrimônio Cultural do MERCOSUL (CPC) com homologação pela Reunião de Ministros da Cultura (RMC). Ambos os órgãos estão regulamentados no anexo da Decisão nº 22/14 do CMC, documento legal que trata sobre a estrutura do MERCOSUL Cultural. 

Consoante os artigos 13 e 14 do anexo da Decisão nº 22/14 do CMC, a CPC tem sessões ordinárias, pelo menos, uma vez por semestre, podendo marcar sessões extraordinárias, e seus membros são designados pelos Ministros e Autoridades da Cultura dos Estados Partes. Não há maiores detalhes sobre o mandato desses membros nem informações no site do MERCOSUL da composição atual desse órgão. 

A informação mais recente sobre a CPC é que esse órgão realizou uma reunião em 27 de outubro de 2021, por meio de videochamada, segundo a seção Atas e Anexos na página do MERCOSUL. 

É possível um conjunto de países apresentar a candidatura de um patrimônio cultural do MERCOSUL?

Sim, nos termos do artigo 4º do anexo da Decisão nº 21/14 do CMC. Estados associados ao MERCOSUL também podem apresentar em conjunto com os membros.

É possível que um bem seja excluído da lista de patrimônios culturais do MERCOSUL?

Sim, com base no artigo 7º, parágrafo quinto, do anexo da Decisão nº 21/14 do CMC, se a CPC notar que o bem cultural está perdendo suas características essenciais. Nos parágrafos terceiro e quarto desse mencionado artigo, está a obrigação de que o país responsável pelo patrimônio cultural do MERCOSUL deve prezar pela gestão eficaz da sua salvaguarda apresentada no momento da candidatura.

Até o presente momento, nenhum bem foi excluído da lista de patrimônios culturais do MERCOSUL.

Considerações Finais

 No aspecto econômico, a palavra divergência teve destaque nesse ano de 2021, porém o termo que deve ser almejado nos próximos anos dentro do MERCOSUL é desenvolvimento, de modo que um ponto de partida para esse fim está no âmbito cultural. Serão destacadas aqui três observações extraídas do que foi abordado sobre a Decisão nº 21/14 do CMC.

A primeira conclusão é que há a necessidade de uma melhor regulamentação do funcionamento da CPC bem como da transparência de suas ações, pois atualmente há dificuldade de se constatar quem são seus membros, por exemplo. Não se tem previsão também de quando serão suas próximas reuniões e, em muitas realizadas durante essa pandemia dos anos 2020-2021, não há divulgação das atas na página do MERCOSUL.

Em segundo lugar, não há um maior detalhamento de critérios para o que se entende por gestão eficaz de salvaguarda assim como das quatro características de um patrimônio cultural do MERCOSUL listadas no artigo 1º do anexo da Decisão nº 21/14 do CMC. Por exemplo, caso uma candidatura conjunta de países de um patrimônio cultural seja aprovada pela CPC, não há a especificação de como ficam as obrigações financeiras de cada Estado para a garantia de uma gestão eficaz.

Um terceiro ponto que merece destaque é que não há dentro da Decisão nº 21/14 do CMC nenhuma regulamentação mais detalhada acerca da preservação de patrimônios imateriais, tampouco sobre tráfico ilícito de bens culturais. Sobre esse último aspecto, é curioso que, segundo consta na página oficial do MERCOSUL Cultural, existe o Comitê Técnico para Prevenção e Combate ao Tráfico Ilícito de Bens Culturais, órgão este que está dentro da CPC.

A erva-mate e o chamamé conectam culturalmente os quatros países fundadores do MERCOSUL, e a Ponte Internacional Barão de Mauá liga geograficamente Brasil e Uruguai. Esses patrimônios culturais do referido bloco sul-americano exemplificam reflexos econômicos derivados da união cultural entre nações. A erva-mate é comercializada em vários países assim como muitos bens de consumo passam pela Ponte Internacional Barão de Mauá. Na esfera musical, o chamamé segue importante para a indústria fonográfica na América do Sul. 

Proteger o patrimônio cultural é criar pontes para atenuar divergências econômicas dentro do MERCOSUL. Para que essa proteção seja mais efetiva, é necessário um melhor desenvolvimento normativo, pois a Decisão nº 21/14 do CMC, além de não ser suficiente para fechar algumas lacunas, abre mais dúvidas dentro do Direito Internacional do Patrimônio Cultural.  

  • Ivonei Souza Trindade é advogado inscrito na OAB/RS. Professor de Direito Internacional dos Direitos Humanos no A PARI MUN- Instituto de Investigación y Debate en Derecho (Nuevo Chimbote, Peru)

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