O TPI e a Proteção do Patrimônio Cultural em Conflitos Armados: Desenvolvimentos Jurisprudenciais Disruptivos

Coluna “Prática Penal Internacional”

Fico muito honrado e grato ao Corpo Editorial do International Law Agendas pelo convite para atuar como colunista quanto ao tema “Prática Penal Internacional”. Propõe-se que o mote da coluna seja explorar a constatação basilar por Carsten Stahn, professor da Universidade de Leiden, segundo a qual o direito penal internacional atualmente se encontra (ou enfrenta) uma “encruzilhada fundamental” (A Critical Introduction to International Criminal Law, 2019, 412, em inglês: “critical juncture”). Essa encruzilhada se manifesta nas mais variadas formas, incluindo desenvolvimentos institucionais, negociações de novos instrumentos convencionais sobre crimes internacionais ou a reforma de instrumentos existentes, e variações ou inovações na jurisprudência dos tribunais internacionais, híbridos e nacionais. Indo além de uma persistente narrativa de crise(s) que povoa trabalhos doutrinários contemporâneos na área (cf aqui, aqui, aqui, aqui), a coluna explorará as constantes transformações no horizonte normativo e institucional da justiça penal internacional como um elemento inerente à sua adaptabilidade enquanto projeto e compromisso global entre diplomacia, academia, e militância civil. 

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O tema escolhido para esta primeira entrada consiste em um dos aspectos mais celebrados do Tribunal Penal Internacional (TPI ou Tribunal): a sua regulamentação e atuação na proteção do patrimônio cultural. O Artigo 8(2) do Estatuto de Roma tipifica o crime de guerra de atacar objetos protegidos em conflitos armados tanto internacionais (Artigo 8(2)(b)(ix)), quanto não internacionais (Artigo 8(2)(e)(iv)). Estes dois dispositivos serão referidos em conjunto como “Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv)”, já que eles possuem a mesma linguagem: “Dirigir intencionalmente ataques a edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos históricos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares”. Em 2016, o TPI condenou o seu primeiro (e até o momento único) réu por este crime: Ahmad Al Faqi Al Mahdi (Al Mahdi), pela destruição de mausoléus em Timbuktu, Mali. Possivelmente, em breve Al Mahdi deixará de ser o único réu condenado sob o Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv), pois Al Hassan Ag Abdoul Aziz Ag Mohamed Ag Mahmoud (Al Hassan) atualmente enfrenta julgamento, entre outros, pelos mesmos fatos aos quais Al Mahdi foi sentenciado. As acusações contra Al Hassan foram confirmadas em setembro de 2019 e seu julgamento se encontra em andamento desde julho de 2020. Como veremos abaixo, o TPI também lidou com o crime de atacar objetos protegidos no caso Bosco Ntaganda.

Apesar da significância do TPI na luta contra a impunidade por crimes contra o patrimônio cultural, o exato escopo jurisdicional de atuação do Tribunal vis-à-vis o Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv) do Estatuto de Roma está longe de ser consolidado. Isso porque, existe um debate doutrinário e jurisprudencial acerca da forma como o termo “ataque”, empregado em diferentes crimes de guerra do Artigo 8, incluindo no crime de atacar objetos protegidos, deve ser interpretado.  

Parte da doutrina e decisões do TPI anteriores ao caso Al Mahdi (aqui, §267; aqui, §45) têm entendido que os crimes de guerra do Artigo 8 são divididos em duas grandes categorias. A primeira delas se refere aos crimes de guerra que empregam, em sua tipificação no texto do Artigo 8 do Estatuto de Roma, a linguagem “[d]irigir intencionalmente ataques” ou uma formulação análoga. Os crimes desse grupo apenas podem ser consumados no contexto de atos de combate entre as partes beligerantes, visto que, à luz das origens do Artigo 8 no Direito Internacional Humanitário, o termo “ataque” deve ser conceituado levando em consideração a definição no Artigo 49(1) do Protocolo Adicional I de 1977, isto é, “atos de violência contra o adversário, quer sejam atos ofensivos, quer defensivos”. Essa definição tem sido interpretada no contexto humanitário como a se referir a atos de combate em sentido estrito, antes que o objeto ou pessoa atacada esteja sob o controle da parte beligerante que executa o ataque (aqui, §§2-5; aqui, §1880). Assim, os delitos dessa categoria focam em determinar quais alvos não podem ser atacados durante o combate. Isso implica que os tipos penais do Artigo 8 que possuem aquela linguagem não podem ser aplicados antes do início de operações de combate ou depois que o combate entre as partes do conflito cessou, mas apenas durante ou no decurso das hostilidades. A segunda categoria de crimes de guerra compreende aqueles delitos do Artigo 8 que não contêm a expressão “[d]irigir intencionalmente ataques” ou uma linguagem análoga e, portanto, podem ser aplicados antes, durante ou depois do combate sem qualquer restrição. 

Sabendo que o crime de guerra de atacar objetos protegidos emprega a linguagem “[d]irigir intencionalmente ataques a edifícios…”, este delito estaria a priori na primeira categoria, ou seja, apenas o patrimônio cultural atacado durante o combate estaria coberto pelo Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv). Os responsáveis por danos ou destruição de objetos protegidos no contexto de um conflito armado, mas antes ou depois dos momentos de combate deveriam ser processados não como o crime do Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv), mas como outros crimes de guerra, tais como pilhagem (Artigo 8(2)(b)(xvi), (e)(v)) e destruição ou apreensão de propriedade do inimigo (Artigo 8(2)(b)(xiii), (e)(xii)). O crime de guerra de ataques a objetos civis (Artigo 8(2)(b)(ii)) não seria aplicável já que também exige combate. 

Esta questão se tornou relevante no caso Al Mahdi, já que o patrimônio cultural objeto das acusações foi atacado pelo réu quando nenhum ato de combate estava ocorrendo na área. No momento do crime, Timbuktu já estava sob o controle do Ansar Dine, o grupo armado ao qual Al Mahdi era membro. Dessa forma, a destruição dos mausoléus não foi implementada como parte das operações militares em sentido estrito do Ansar Dine, mas como parte da política mais ampla desse grupo de impor uma versão radical da sharia na área. Considerando a categorização acima dos crimes de guerra do Artigo 8 do Estatuto de Roma, esse fato tornaria o Artigo 8(2)(e)(iv) inaplicável no caso.

Porém, o Juízo de Julgamento em Primeira Instância no caso Al Mahdi concluiu que o Artigo 8(2)(e)(iv) deveria ser aplicado, pois “o elemento de ‘[d]irigir intencionalmente ataques’ abrange qualquer ato de violência contra objetos protegidos” (§15). Também determinou que “não faria qualquer distinção se o ataque foi realizado durante a condução de hostilidades ou após o objeto ter caído sob controle de um grupo armado inimigo. O Estatuto não faz essa distinção” (§15). Por fim, o Juízo enfatizou o caráter especial do patrimônio cultural como justificativa para sua proteção adicional e concluiu que “não deveria alterar este caráter fazendo distinções que não estão presentes no texto do Estatuto de Roma. De fato, o Direito Internacional Humanitário protege os bens culturais enquanto tais contra crimes cometidos tanto em combate quanto fora dele” (§15). 

À luz destas conclusões, o Juízo de Primeira Instância condenou Al Mahdi pelo crime de guerra de atacar objetos protegidos (Artigo 8(2)(e)(iv) do Estatuto). A possibilidade de recurso contra a condenação foi inibida graças a um acordo de colaboração premiada entre o réu e a Procuradoria. De toda forma, William Schabas, um defensor da categorização acima, não se viu convencido pela fundamentação do Juízo e concluiu que “Al Mahdi foi condenado por um crime que ele não cometeu”. Apesar dessa crítica incisiva, a ratio decidendi do caso Al Mahdi foi reiterada pelo TPI três anos depois, em setembro de 2019, na decisão de confirmação de acusações no caso Al Hassan (aqui, §522). 

Um resultado diferente emergiu no caso Ntaganda, no qual o réu havia sido acusado, entre outros, por danos a uma igreja e a um hospital quando o combate já havia cessado e a área em questão se encontrava sob o controle das Forças Patrióticas para a Libertação do Congo, o grupo armado ao qual Ntaganda era um dos líderes. Na esperança de repetir o sucesso do caso Al Mahdi, a Procuradora indiciou Ntaganda pelos danos à igreja e ao hospital como o crime de guerra de atacar objetos protegidos, nos termos do Artigo 8(2)(e)(iv) do Estatuto. Contudo, em julho de 2019, o Juízo de Primeira Instância inocentou Ntaganda dessas acusações, alegando que o Artigo 8(2)(e)(iv) apenas poderia ser aplicado durante atos de combate em sentido estrito. O Juízo se baseou principalmente na definição do Artigo 49(1) do Protocolo Adicional I de 1977 (aqui, §§760-763, 916-917).

A Procuradora apelou da decisão, gerando intenso debate e divisão no Juízo de Recursos do TPI. Os juízes Howard Morrison e Piotr Hofmański, atual Presidente do Tribunal, concordaram com a interpretação na decisão recorrida e entenderam que, ausente combate, os danos e a destruição de patrimônio cultural não poderiam ser processados sob o Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv). Eles também enfatizaram o Artigo 22(2) do Estatuto de Roma, que impõe o princípio in dubio pro reo nos casos de ambiguidade nos tipos penais do Estatuto. Por outro lado, os juízes Luz del Carmen Ibáñez Carranza (§§1165-1168) e Chile Eboe-Osuji, preocupados com a efetividade do Estatuto de Roma e determinados a evitar impunidade, concluíram que restringir o crime de atacar objetos protegidos apenas a atos de combate seria uma limitação inaceitável. Usando dicionários comuns, os juízes Ibáñez Carranza e Eboe-Osuji atestaram que “ataque” deveria ser entendido como qualquer ato de violência, sem se limitar a combate militar em sentido estrito. Diferente de seus pares, a juíza Balungi Bossa focou numa análise fática, sem definir de forma abstrata o escopo de aplicação do Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv) e sem aderir de forma inequívoca a uma destas duas abordagens. No final, o resultado no Juízo de Recursos foi uma divisão 2-2-1 entre os seus membros, de forma que o Juízo fracassou na tarefa de assentar uma interpretação quanto ao escopo de aplicação do Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv), fato destacado pelo Gabinete do Procurador em sua Policy on Cultural Heritage (§45) (para um exame mais amplo do acordão, cf aqui, aqui, aqui, aqui, aqui). 

Em última análise, os defensores de uma interpretação restritiva do Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv), segundo a qual este dispositivo apenas se aplicaria no estrito contexto de combate, devem conviver com a constatação de que o Estatuto de Roma, nessa abordagem, não teria nenhum tipo penal específico que trate da destruição e danos a bens culturais depois de cessado o combate, quando tais bens estão sob o controle da parte beligerante que os ataca. Trata-se de uma relevante lacuna, já que, com frequência, atos de destruição do patrimônio cultural ocorrem não apenas no contexto de combate, mas como parte de um projeto maior de perseguição e extermínio de certos grupos. 

Para os opositores desta abordagem restritiva do Artigo 8(2)(b)(ix), (e)(iv), a resultante exclusão de atos cometidos fora de combate da jurisdição do TPI seria perigosa, pois limitaria severamente a atuação do Tribunal e abriria caminho para impunidade por sérios crimes contra o patrimônio cultural. Contudo, os juízes Morrison e Hofmański (§§40-41), bem como Roger O’Keefe, veem essa preocupação quanto à impunidade como superestimada, já que atos que vilipendiam objetos protegidos cometidos fora de combate podem ser processados no TPI como os crimes de guerra de pilhagem e destruição ou apreensão de propriedade do inimigo, quando cabível. Eles alegam que esse resultado não necessariamente negligencia ou diminui o status especial do patrimônio cultural, pois um Juízo de Julgamento em Primeira Instância ainda pode destacar, na sentença, o caráter protegido do objeto danificado ou destruído e, posteriormente, impor uma pena mais severa dada a gravidade particular de atacar estes bens.

O TPI provavelmente voltará a lidar com o escopo de aplicação do crime de atacar objetos protegidos muito em breve. Como dito antes, Al Hassan enfrenta julgamento, nos termos do Artigo 8(2)(e)(iv), pelos mesmos atos que Al Mahdi cometeu em Timbuktu. Trata-se de curiosa situação. Se o Juízo de Primeira Instância no caso Al Hassan decidir “corrigir” a interpretação empregada no caso Al Mahdi e adotar a abordagem mais restritiva da sentença no caso Ntaganda e dos juízes Morrison e Hofmański, o TPI poderia se encontrar em uma posição incongruente, pois Al Hassan seria absolvido pela mesma conduta pela qual Al Mahdi foi condenado em 2016. Por outro lado, uma posição mais coerente seria se manter fiel ao caso Al Mahdi e a decisão de confirmação de acusações, abordagem que provavelmente resultaria na condenação de Al Hassan. No entanto, ante a cisão no Juízo de Recursos, é razoável esperar que a defesa de Al Hassan apele da condenação com o objetivo de revertê-la. 

Além do caso Al Hassan, outro desafio imediato ao TPI relacionado ao crime de atacar objetos protegidos é a atual investigação na situação da Ucrânia. A UNESCO relatou que, entre 24 de fevereiro e 24 de outubro de 2022, o conflito russo-ucraniano resultou em danos a 207 objetos protegidos: 88 locais religiosos, 15 museus, 76 edifícios de interesse histórico e/ou artístico, 18 monumentos, e 10 bibliotecas. A mídia internacional também tem dado atenção à destruição do patrimônio cultural ucraniano (cf aqui, aqui, aqui). Diante disso, especula-se que a investigação na Ucrânia pelo Procurador possa envolver crimes contra objetos protegidos, o que possivelmente acarretará novos debates acerca do âmbito de aplicação do Artigo 8(2)(b)(ix) se os incidentes investigados foram cometidos fora do contexto de combate, em áreas sob o controle da Rússia.

In fine, nos resta aguardar para descobrir como o TPI lidará com esta relevante questão em decisões futuras. 

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