O relógio e as armas do juízo final

Coluna “Desarmamento e Desnuclearização”
por Embaixador Sérgio Duarte

A revista Boletim dos Cientistas Atômicos atualiza anualmente o “Relógio do Juízo Final”, que simboliza a iminência do risco de um desastre nuclear, ambiental ou biológico de proporções planetárias, capaz de extinguir a vida na Terra.

No dia 26 de janeiro último o Relógio foi adiantado em relação ao ano anterior e marca agora 90 segundos para a meia-noite, o ponto mais próximo do final dos tempos desde a primeira edição, em 1947. Os especialistas que fazem parte da diretoria do Boletim, inclusive dez detentores do Prêmio Nobel, explicam que a invasão da Ucrânia pela Rússia e o consequente perigo de escalada nuclear são os principais motivos do adiantamento do Relógio, que leva em conta também a continuada ameaça da crise climática e a emergência de pandemias como a COVID 19. Apontam também o colapso das normas e instituições globais necessárias para tratar das ameaças decorrentes do uso bélico de novas tecnologias.

 “Estamos à beira de um precipício”, diz o texto do comunicado de imprensa publicado na ocasião. “No entanto, nossos líderes não estão agindo com rapidez suficiente e nem na escala necessária para assegurar um planeta pacífico e habitável. Esse panorama tem que mudar em 2023 se quisermos evitar a catástrofe. Estamos vivendo diversas crises existenciais. Os governantes precisam ter consciência da crise” .

A Rússia e os Estados Unidos vêm se dedicando com crescente intensidade ao aperfeiçoamento tecnológico de seus arsenais e ao desenvolvimento de novas armas cada vez mais velozes, precisas e mortíferas. A desenfreada corrida armamentista e consequente proliferação do armamento nuclear a que ambos se entregaram em décadas passadas deu lugar nos tempos mais recentes à busca de avanços tecnológicos decisivos. As duas principais potências contam com vetores hipersônicos de difícil interceptação que tornariam ineficazes ou obsoletos os sistemas defensivos do inimigo. Tecnologias inovadoras como o uso da inteligência artificial, a cibernética e a exploração do espaço exterior têm servido para desenvolver sistemas defensivos e ofensivos com elevado poder destruidor cujo objetivo é garantir, mesmo depois de um ataque  nuclear,  a preservação capacidade de um contra-ataque igualmente arrasador que transformaria em realidade o cenário de “destruição mútua assegurada”, adequadamente descrito desde os anos 1980 por sua sigla em inglês MAD (louco). Esses países passaram também a produzir explosivos nucleares de baixa potência, destinados ao uso em operações militares de escopo limitado, gerando o risco de uma escalada até o enfrentamento com força nuclear máxima.  Durante a Guerra Fria, concluíram entre si diversos acordos visando o controle de armamentos, porém  nenhum deles se encontra mais em vigor,  com exceção do tratado New START, de 2010, que estabeleceu limites para o número de ogivas nucleares e vetores de que cada qual pode dispor. No entanto, muitas das novas armas não estão cobertas por esse instrumento.

Estão sendo atualmente incorporados ao arsenal da Rússia diversos novos tipos de armamento que o presidente Vladimir Putin, em um discurso pronunciado em 2018, classificou como “Armas do Juízo Final”.  Entre essas estão os mísseis balísticos hipersônicos Kynzhal, já em operaçãona guerra contra a Ucrânia, e Tsyrkon, para combates navais; o foguete Burevstnik, com propulsão nuclear e de alcance intercontinental; o míssil hipersônico nuclearmente armado Avangard; e o drone submarino não tripulado Poseidon, também de propulsão nuclear, que dispõe de torpedos atômicos a serem lançados a partir de grandes profundidades e que poderiam provocar um “tsunami radioativo”, tornando inabitáveis extensas zonas costeiras do território inimigo.

Os Estados Unidos continuam igualmente a aperfeiçoar a capacidade de seu armamento nuclear.  A chamada “tríade” de terra, mar e ar, mantida permanentemente em estado de prontidão para ser utilizada a qualquer momento contra possíveis ou potenciais agressores, é composta por armamentos de última geração: mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs) baseados em silos terrestres, mísseis balísticos lançados de submarinos (SLBMs) e bombas de gravidade a bordo de bombardeiros estratégicos que sobrevoam ininterruptamente os possíveis alvos A bomba B-83-1, recentemente aperfeiçoada, tem elevado poder explosivo e é capaz de penetrar e destruir instalações subterrâneas fortificadas.  O mais novo sistema ofensivo norte-americano é conhecido pela sigla LRHW, que utiliza um míssil de dois estágios para lançar um projétil planador a uma velocidade superior a Mach 5. A principal de suas defesas destinadas a interceptar mísseis balísticos ofensivos na fase ante-terminal de suas trajetórias é o GMD (Ground Based Midcourse Defense), baseado no Alaska e na Califórnia, que dispõe de sensores em terra, no mar e em órbita terrestre.  Há planos para colocar em operação novos sistemas defensivos, a partir de 2025, a serem disparados de navios de superfície e de submarinos. Para defesa contra mísseis de alcance curto e médio existe o sistema denominado THAAD (Terminal High Altitude Area Defense). Washington acaba de concluir com as Filipinas um acordo para a instalação de mais quatro bases militares nesse país, situado no Mar da China e próximo ao estreito do Taiwan.     

A rivalidade sino-americana nos oceanos Índico e Pacífico tende a crescer nos próximos anos, o que explica os esforços consideráveis da China para incrementar o poderio de suas forças armadas, inclusive no campo nuclear. Observadores ocidentais acreditam que o país pretenda quintuplicar o número de ogivas e lançadores até 2035. A frota naval chinesa já é a mais numerosa do mundo. Novos submarinos e porta-aviões com propulsão nuclear têm sido incorporados nos últimos anos. O anúncio da parceria entre Estados Unidos, Reino Unido e Austrália que visa dotar este último país de uma força de submarinos de propulsão nuclear, embora convencionalmente armados, causou grande preocupação à China, que tem denunciado o risco de proliferação nuclear na região.  O Reino Unido anunciou há dois anos a intenção de aumentar de um terço o número de mísseis nucleares a bordo de seus submarinos.

Devem-se igualmente mencionar os esforços da Índia e do Paquistão, países não reconhecidos como possuidores de armas atômicas pelo Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), para a modernização de seus arsenais nucleares. A Coreia do Norte tem procurado desenvolver de mísseis de curto e longo alcance, inclusive intercontinentais, capazes de alcançar as regiões costeiras ocidentais dos Estados Unidos. O aumento das tensões no nordeste asiático nos últimos anos tem levado setores de opinião no Japão e na Coreia do Sul a advogar abertamente a aquisição de capacidade nuclear própria para opor-se à crescente ameaça representada pelo avanço bélico norte-coreano.

 Até o momento não foi encontrada uma solução para revitalizar o acordo conhecido pela sigla JCPOA entre alguns países ocidentais e o Irã. Na ausência de uma definição, este último país tem procurado aumentar sua capacidade de enriquecer urânio e estima-se que possa vir a adquirir explosivos atômicos, com capacidade de lançamento, em prazo muito breve. Aliás, diversos países se encontram em estado de desenvolvimento industrial e técnico considerado “latente” do ponto de vista tecnológico e poderiam desenvolver capacidade nuclear bélica com relativa rapidez. Considerações de segurança e restrições internacionais constituem  

Outro motivo de preocupação para a comunidade internacional como um todo é o fato de que o conjunto de normas e instituições multilaterais elaboradas desde os primeiros anos da Guerra Fria para evitar a proliferação do armamento nuclear a um número maior de países e para buscar progressos no sentido do desarmamento e controle de armamentos mostra-se inadequado para lidar com os desafios contemporâneos.  Além disso, as duas principais potências não parecem interessadas em utilizar os mecanismos as instâncias multilaterais existentes para buscar avanços significativos no sentido da redução dos riscos e obtenção de progressos para negociar novas reduções e medidas efetivas de desarmamento nuclear.   

Parece haver uma lógica inexorável segundo a qual cada avanço tecnológico por parte de uma potência leva a outra a esforçar-se por obter novos recursos bélicos para anular a vantagem do rival e por sua vez colocar-se em situação vantajosa, que durará até que o adversário a alcance ou ultrapasse. No tempo da Guerra Fria, essa situação ensejou uma competição pelo desenvolvimento de explosivos nucleares cada vez mais poderosos[1].

 O aperfeiçoamento da eficácia de sistemas defensivos leva o potencial adversário a refinar os seus próprios e a procurar novas formas de neutralizar os do inimigo. A fim de romper esse círculo vicioso e evitar a constante aceleração da competição armamentista é essencial retomar o diálogo entre os países armados e iniciar imediatamente entendimentos bilaterais e globais que levem à negociação de instrumentos bilaterais e globais para a redução e eliminação do perigo nuclear, que exige em última análise medidas juridicamente vinculantes e irreversíveis de desarmamento.

No atual ambiente internacional de incerteza, desconfiança e temor, e em meio a uma guerra que já se prolonga por quase um ano e na qual estão envolvidos direta ou indiretamente países possuidores de arsenais nucleares, o recrudescimento da rivalidade e hostilidade entre países nuclearmente armados torna ainda mais urgente buscar avanços significativos para conter e reverter a corrida armamentista, trazendo estabilidade e segurança para toda a comunidade internacional. Esta tem o dever de engajar-se decisivamente nesse esforço.

A humanidade não pode resignar-se a aguardar a chegada do Juízo Final, quando os ponteiros do Relógio atingirem a meia-noite.


[1] A potência da chamada Bomba do Czar, detonada experimentalmente pela União Soviética em 1961, era equivalente a mais de 50 milhões de toneladas de TNT, 1.500 vezes superior à da bomba de Hiroshima.  A mais poderosa detonação experimental norte-americana, denominada Castle Bravo, em 1954, foi de 15 milhões de toneladas de TNT.  

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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