Fonte da Imagem: International Law Library / Peace Palace Library
É como se a referência às “nações civilizadas” no Estatuto da CIJ fosse um fóssil. Nos manuais e nas aulas de direito internacional, trata-se a expressão como um resquício de outros tempos, que deve ser lida hoje em dia em outro sentido, já que vivemos num mundo de igualdade soberana. E a memória da nossa disciplina sobre o longo séc. 19, aquele em que o direito internacional dividia “estados civilizados” e “não civilizados”, para por aí.
Mas talvez haja mais disso no internacionalismo do que os manuais costumam admitir. No “Imperalism, Sovereignty and the Making of International Law”, um dos livros que inaugurou a análise crítica terceiro-mundista há quase duas décadas, Antony Anghie destaca como a missão civilizatória” marcou a história da construção da noção jurídica de direito internacional da soberania. Com outros nomes, o referencial teve novas versões na “guerra contra o terror” e na própria forma como as instituições internacionais moldaram o “desenvolvimento”. Tudo começou com um direito instrumentalizado por potências europeias que se viam legitimadas a usar meios diversos (entre massacres, expropriação, escravidão) em nome do que projetavam como sua “superioridade” jurídica e moral.
A “missão civilizatória”, em sua versão formalizada no direito internacional do séc. 19, apoiava-se em noções de ciência e modernidade muito fomentadas por ideologias racistas. Elas são criatura da mesma segunda metade de século que consolidou a profissionalização de um direito internacional mais próximo dos moldes de hoje, como disciplina separada da antropologia, da economia e das relações internacionais. Aconteciam muitos momentos “fundantes” da memória dessa nossa disciplina entre aquelas últimas décadas e a virada para o século seguinte. Na própria história da nossa região, houve conferências de codificação do direito internacional e a consolidação da doutrina Monroe, por exemplo. Em artigo recente, aliás, Arnulf Lorca conecta alguns desses pontos, argumentando que os Estados Unidos se fiaram em construções de hierarquia racial para sua pressão imperialista sobre a América Latina.
Mas antes de virar critério para a soberania oitocentista — seja na história mais geral, seja na história regional — a arquitetura de hierarquias raciais marcou outro capítulo do direito internacional. Um capítulo que se desdobra já nas primeiras décadas do séc. 19, por meio de um conjunto de regras emprestadas de outros regimes, mas agora direcionadas para um novo objetivo: abolir o tráfico transatlântico de africanos escravizados. Era um direito ungido de noções humanitárias de um liberalismo expansionista que ganharia traços mais evidentes de “missão civilizatória” ao longo dos anos. A Grã-Bretanha, que havia lucrado com a escravidão internacional por séculos, passava a pressionar outros Estados pela assinatura de dezenas de tratados bilaterais com mecanismos de implementação das promessas de abolição do tráfico. Criava-se, então, na primeira metade do séc. 19, um maquinário jurídico munido de dentes próprios, que incluía marinhas com poderes de captura dos navios traficantes e comissões mistas que serviam de órgãos jurisdicionais para julgar navios apreendidos e emancipar pessoas traficadas para a escravidão.
O Brasil, como sujeito de direito internacional que conhecemos hoje, nasce como um dos perversos protagonistas dessa história. Aceitou entrar na rede de tratados antitráfico em troca de reconhecimento internacional. Na prática, seus representantes diplomáticos articulavam a linguagem do direito internacional e de suas ideias de modernidade para projetar imagens de “civilização”, enquanto navegavam o regime de abolição do tráfico se desviando das pressões britânicas para manter o objetivo de suas elites de postergar a abolição. Era uma independência que se disputava continuamente pelo direito internacional que se entrelaçava ao imperialismo britânico. Mas era também uma independência sustentada a custo do trabalho e das vidas negras.
O sistema antitráfico britânico tinha também suas próprias contradições e efeitos perversos. Era inspirado na regulação de presas marítimas, que trazia uma lógica de proteção de propriedade de sua fonte original. Para as pessoas escravizadas receberem cartas de alforria, o trajeto e a bandeira do navio tinham de demonstrar antes que a captura da embarcação havia ocorrido legalmente. Emancipações formais muitas vezes não aconteciam. Muitas outras se convertiam em novas formas de explorações do trabalho. Tudo isso era feito com lastros jurídicos e em nome da “humanidade”. Como escreve Vasuki Nesiah, “[a] liberdade jurídica carregava suas próprias patologias opressivas e justificava sua própria falta de liberdades, […] desta vez como parte integrante da noção de humano”.
O que W.E.B. Du Bois chamou de “linha de cor” que separa o mundo, aponta Nesiah, fica apagada por detrás dessa noção construída de “humanidade”. Parece até que sumiu. E só quando se rejeita a imagem absoluta do direito internacional como grande emancipador é que se vê esses efeitos. Também Anthony Anghie rejeitou a imagem absoluta do direito internacional como benfeitor da humanidade quando contou, em vez disso, a história de um direito internacional que se entrelaça à expansão colonial e ao imperialismo.
Muita coisa some (ou é vista como fóssil) na construção de uma disciplina que toma como ponto de partida uma visão absoluta do seu objeto. Some das páginas dos livros, da forma como a disciplina é contada, mas não da realidade social. Olhar dentro das feridas ajuda a entender do que essas ferramentas jurídicas são capazes. Rompe-se esse “silêncio” (como escreve Karina de Souza Silva sobre as relações internacionais no Brasil) e, quem sabe, se desfaz o sumiço.
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Adriane Sanctis de Brito é Associada do Departamento de História da Universidade de Harvard. Foi Visiting Scholar na Faculdade de Direito de Harvard e professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Como Sylff Fellow da Tokyo Fondation, foi pesquisadora visitante no Instituto Erik Castrén da Universidade de Helsinque, e pesquisadora bolsista no Instituto Max Planck e no Programa Laureate de Direito Internacional na Universidade de Melbourne. É graduada, mestre em direito internacional e doutora em teoria do direito pela Universidade de São Paulo - USP.