Liberdade sindical, gênero e novas tecnologias no trabalho

A Opinião Consultiva 27/2021 da CIDH
Imagem: Direito Criativo

A Opinião Consultiva (OC) 27/2021 foi emitida em 5 de maio de 2021 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos como resposta a uma consulta feita em 2019 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o alcance das obrigações dos Estados em garantir a liberdade sindical, sua relação com demais direitos e sua aplicação desde a perspectiva de gênero.

Em resumo, a consulta envolveu três grandes temas – liberdade sindical, gênero e mudanças no mercado de trabalho em razão do uso de novas tecnologias – e instou a Corte a responder diversos (e interligados) questionamentos: (a) qual é o alcance das obrigações dos Estados na garantia da liberdade sindical, criação de sindicatos, democracia interna, negociação coletiva e greve? (b) que ações os Estados devem realizar para verificar a efetivação desses direitos no cumprimento de suas obrigações progressivas? (c) como se manifesta a relação entre liberdade de associação, negociaçãocoletiva e liberdade sindical e qual a sua relação com promoção do direito ao trabalho e condições justas e equitativas? (d) é possível permitir que as proteções estabelecidas por lei sejam revogadas “in peius” (para pior) por meio de negociação coletiva? (e) quais especificidades devem ser levadas em consideração no exercício dos direitos sindicais pelas mulheres? (f) qual é o papel dos Estados na garantia da participação efetiva de mulheres como sindicalistas e dirigentes em cumprimento do princípio da igualdade e não discriminação? (g) qual é o alcance das obrigações dos Estados quanto às garantias para a participação efetiva dos trabalhadores por meio do exercício da liberdade de associação, negociação coletiva e greve, nos processos de concepção, construção e avaliação das normas e políticas públicas relacionadas ao trabalho em contextos de mudanças no mercado de trabalho por meio do uso de novas tecnologias?

Liberdade sindical

O tema da liberdade sindical ocupa grande parte da OC e é abordado em suas diferentes dimensões: direito de organização, direito de eleição de representantes (democracia interna), liberdade de associação para formar um sindicato, direito de se filiar a um sindicato já estabelecido e direito de deixar um sindicato, sem discriminação.

Segundo a Corte, trabalhadores e empregadores podem se associar livremente para a defesa de seus interesses, incluindo o direito à negociação coletiva e à greve pelos trabalhadores. O direito à liberdade sindical é um direito humano, reconhecido em diversos tratados internacionais e, para ser garantido, necessita de ações e abstenções dos Estados, como a proibição de dissolução dos sindicatos pela via administrativa, a proibição de exigências quanto à autorização para criação de um sindicato, a garantia de proteção para dirigentes sindicais exercerem a sua função sem ameaças de violência.

Destaca-se a menção de que o direito à liberdade sindical é um direito habilitador dos trabalhadores na defesa de seus interesses e negar o seu exercício constitui um risco para os direitos trabalhistas.

Um dos elementos essenciais da liberdade sindical é a negociação coletiva, pois viabilizaos meios necessários para que os trabalhadores defendam os seus interesses. Para além do reconhecimento de sua importância enquanto instrumento de diálogo social, a Corte também se manifestou sobre a impossibilidade de a negociação coletiva restringirdireitos assegurados pela legislação. Segundo a Corte, permitir a revogação do direito do trabalho “in peius” pela negociação coletiva colocaria os trabalhadores em maior desvantagem em relação ao empregador, podendo causar a deterioração das condiçõesde trabalho e de vida, violando assim a proteção mínima estabelecida pelo direito nacional e internacional.

Também decorrente da liberdade sindical, a greve é reconhecida pela Corte como um dos direitos fundamentais dos trabalhadores. Trata-se de um mecanismo de pressão sobre o empregador, que busca solucionar problemas que são do interesse direto dos trabalhadores. Por isso, o direito à greve deve ser reconhecido pelos Estados, sem prejuízo de limitações no tocante às forças armadas e para a manutenção de serviços essenciais.

Gênero

 

Outro grande tema abordado na OC envolve as questões de gênero no ambiente laboral e também no âmbito sindical. A Corte reafirmou a proibição de discriminação e a necessidade de garantir a igualdade em sua dimensão formal e material, ressaltando a proibição de diferenças arbitrárias de tratamento, bem como a obrigação dos Estados de criar condições de igualdade real em relação aos grupos que historicamente foram excluídos ou que correm maior risco de serem discriminados, citando expressamente aspessoas LBGTQIA+, migrantes, negros, pobres e indígenas, embora a OC não tenha avançado na abordagem interseccional de uma série de discriminações ainda presentesno mercado de trabalho.

Dentre as questões de gênero, a Corte sinalizou a preocupação com práticas de discriminação indireta; necessidade de proteção especial durante e após a gravidez; estereótipos de gênero, especialmente no trabalho doméstico; violência de gênero no ambiente laboral e sindical; e maior vulnerabilidade das trabalhadoras na economia informal.

 

Diante desses desafios, destacou que os Estados devem adotar medidas destinadas a eliminar as barreiras que impedem as mulheres de participar ativamente nos sindicatos, bem como em seus cargos de direção e, portanto, ter uma participação ativa na tomada de decisões. Em paralelo, destacou também o papel dos Estados em endereçar ações progressivas para combater desigualdades estruturais, como ampliar acobertura dos serviços de creche de acordo com as necessidades das mães e pais que trabalham, oferecer sistemas abrangentes de licença remunerada, dentre outras.

 

Destaca-se também a sinalização da Corte sobre a necessidade de mudança nas práticas das organizações sindicais a fim de alcançar a igualdade de gênero no exercício dos direitos à liberdade de associação, negociação coletiva e greve, visto que embora o número de mulheres sindicalizadas tenha aumentado nos últimos tempos, nós seguimos tendo pouca representatividade na direção dos sindicatos.

 

Novas tecnologias no trabalho

 

Por fim, a OC salienta que a proteção dos direitos humanos deve levar conta que as relações de trabalho estão em constante transformação devido a variados fatores, entreos quais se destaca a utilização das novas tecnologias digitais no trabalho. Nesse sentido, os Estados devem adaptar continuamente as suas legislações, o que deve ser feito de acordo com os critérios da universalidade e inalienabilidade dos direitos humanos, garantindo um trabalho digno a todos.

Acerca das transformações no mundo do trabalho, a Corte menciona que trabalhadoresa tempo parcial e teletrabalhadores devem se beneficiar dos mesmos direitos que os demais, inclusive no que diz respeito à liberdade sindical, saúde, proteção de dados, vida privada, etc. Ainda observa que a popularização do trabalho em plataformas digitais tem gerado desafios significativos para os direitos trabalhistas de seus usuários, que normalmente são considerados como independentes, o que, em geral, acaba por alijar os trabalhadores de direitos como salário mínimo, estabilidade no emprego, bem como afastando-os do exercício de direitos sindicais.

Para enfrentar esses desafios, a Corte destacou a importância do diálogo social tripartite entre trabalhadores, empresas e Estado a fim de garantir direitos humanos nas relações de trabalho.

 

A consulta e a OC foram elaboradas em momento muito oportuno, considerando o cenário global e o brasileiro, bem como os impactos da pandemia de Covid-19 no mundo do trabalho.

Em 2019, quando a consulta foi feita, as discussões sobre gênero e novas tecnologias notrabalho eram crescentes. Neste mesmo ano, houve o centenário da Organização Internacional do Trabalho (OIT), momento simbólico para o direito internacional do trabalho, em que foram aprovadas a Convenção nº 190 da OIT sobre violência e assédio no trabalho, bem como a Declaração do Centenário, documento que salientou que o mundo do trabalho estava em um momento de grandes transformações e reafirmou a importância de garantia de direitos fundamentais no trabalho para a promoção da justiça social e de um desenvolvimento sustentável.

No cenário brasileiro, em 2019, observávamos as primeiras consequências da reforma trabalhista de 2017, que gerou alterações legislativas que afetaram sensivelmente o direito coletivo do trabalho acerca de pontos abordados na OC, como o enfraquecimento da atuação sindical e a negociação coletiva “in peius”.

 

Em 2021, em meio à pandemia, pontos de preocupação mencionados na OC – como a desigualdade de gênero, aumento da informalidade, popularização do trabalho em plataformas digitais e garantia de direitos conectados à liberdade sindical – tornaram-semais evidentes.

Nesse sentido, a OC adquire um papel importante ao destacar que o mercado de trabalho ainda é desigual e que, para além das necessárias ações dos Estados para mitigar as desigualdades, os direitos de liberdade sindical também são instrumentos essenciais para perseguir tal finalidade, especialmente considerando um mundo do trabalho em acelerada mudança. Contudo, não se pode deixar de notar que a OC foi tímida ao mencionar a existência de interseccionalidades que podem intensificar a discriminação no mercado de trabalho. Durante a pandemia da desigualdade, foi possível perceber que as pessoas foram afetadas de forma distinta, tendo tido impactosparticularmente mais severos para mulheres, para os jovens, para a população negra e pobre, o que não foi endereçado na OC.

Embora não tenha mencionado expressamente consequências diretas da pandemia de Covid-19, a Opinião Consultiva emitida neste momento serve como um lembrete de queainda há muito a ser feito para a garantia dos direitos humanos nas relações de trabalho.

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