Homenagem ao Prof. Dalmo de Abreu Dallari

Ao escrever uma homenagem póstuma a um grande Professor necessariamente expõe-se um vínculo simbólico entre o autor da homenagem e o homenageado. Tive o privilégio de ter tido contato com o Professor Dalmo de Abreu Dallari no meu primeiro ano na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (as Arcadas). Suas aulas entusiasmadas representavam um convite ao tema que marcaria toda a minha trajetória acadêmica e profissional: a proteção dos direitos humanos. Nos rumos cruzados que a vida nos proporciona, convivi posteriormente com o Professor Dalmo nas suas mais diversas atuações: como leitor de suas obras, como participante de suas conferências, partilhando o mesmo lado do “bom combate” na defesa de direitos na minha atuação no Ministério Público Federal e, finalmente, compartilhando bancas de julgamento de dissertações e teses e mesas de debates ou seminários.

Professor Dalmo era a síntese de conhecida frase de Fernando Pessoa: plural como o universo. Jurista, professor, autor, gestor público (Diretor da Faculdade de Direito, Secretário Municipal da Prefeitura de São Paulo), ativista internacional (na Comissão Internacional de Juristas), e, sempre, militante. Entre todas essas diferentes atuações, o elo condutor era a promoção dos direitos humanos, resistência à opressão e defesa dos vulneráveis. Seu papel na defesa dos direitos dos povos indígenas é notável, sendo um dos responsáveis pela redação do direito de acesso à justiça por parte das comunidades indígenas estabelecido no art. 232 da CF/88. 

Nascido em 1931, o Professor Dalmo vivenciou em suas décadas de vida tempos de ditadura e democracia e fez sempre a escolha certa, pela defesa dos ideais de justiça e respeito a todas e todos. Creio que é possível invocar as lições de Hannah Arendt e sua classificação das atividades mentais de um indivíduo, em seu clássico, The Life of Mind, para descrever a magnitude da trajetória de Dalmo Dallari. 

De início, há a categoria “pensar”, que consiste no esforço de compreensão do indivíduo e do mundo. Trata-se de uma questão hermenêutica, de busca do sentido das coisas. Desafiava ele: “tentem ficar um minuto sem pensar” e, continuava, sempre o “o ser humano pensa, avalia e julga” (palestra sobre Ética). Dalmo Dallari, na sua profícua carreira acadêmica, não só refletiu profundamente sobre o mundo em seus mais diversos contextos, como estimulou o pensamento crítico.

Após, há a categoria da vontade, que dá o contorno da individualidade e mostra as liberdades do ser humano, em sua vida em sociedade. O Professor Dalmo, em toda sua trajetória, valorizou o indivíduo, seu agir e sua autonomia, mas não uma autonomia descompromissada com o viver em sociedade. Era necessário sempre respeitar a pluralidade da sociedade e também a singularidade de cada indivíduo. Para o Prof. Dalmo, “o ser humano não apenas vive, ele convive” (Ética).

A última categoria é o julgar. A persuasão consequente se faz com comunicabilidade pública e o Professor Dalmo, em sua obra clássica sobre os juízes, exigia o abandono da quimera da neutralidade jurídica, devendo o juiz ser consciente da politicidade do direito (que não se confunde com opções partidárias) e levar em consideração, nas suas decisões, a garantia de uma aplicação justa do Direito (O Poder dos Juízes[1]).

O caminho percorrido por décadas por Dalmo Dallari mostra a rara e feliz combinação de um pensar crítico, um querer orientado para o bem e um julgar persuasivo. Mostra também a trajetória de um acadêmico, Professor Emérito da Universidade de São Paulo, que se juntou às exigências de um homem político e altivo, que não se escondeu do debate público, buscando convencer e não vencer.

Um grande jurista nos é revelado por suas obras, que perduram por gerações. O Professor Dalmo foi referência para a Teoria do Estado e para os Direitos Humanos. Sua tese de titularidade mostra seu olhar para o porvir (O Futuro do Estado, 1972) e seu Elementos de Teoria Geral do Estado formou gerações. Na promoção dos direitos humanos, o seu Direitos humanos e cidadania inspirou e continua a inspirar os que militam na área.

Sua influência vai além da academia e contaminou todo o sistema de justiça. O Professor Lewandowski organizou obra que sintetiza a força do pensamento de Dalmo Dallari no Poder Judiciário (A influência de Dalmo Dallari nas decisões dos tribunais). Para o Professor Lewandowski, julgador e pensador compromissado com a proteção dos direitos humanos e antigo aluno, Dalmo Dallari é o “paradigma de jurista”, principalmente pela sua dedicação à causa dos vulneráveis. 

No plano acadêmico, o Direito Internacional revela-se em vários momentos na obra e no agir do Professor Dalmo. Na obra, suas reflexões sobre os direitos humanos sempre perpassaram o estudo da Declaração Universal dos Direitos Humanos e os tratados da matéria. A análise atenta da teoria geral do Estado não prescindiu do estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) e, com ele, o debate sobre o futuro da humanidade. No agir, o Professor Dalmo Dallari foi membro da Comissão Internacional de Juristas, organização não governamental credenciada na ONU, que atua justamente em cenários de graves violações de direitos.

Dalmo Dallari não foi somente um grande jurista. Foi um intelectual público e, ao mesmo tempo, um ativista. Uniu a reflexão contínua à ação na esfera pública, incentivando a discussão política de temas caros aos vulneráveis, e, sobretudo, defendeu com todas as suas forças, em diversos momentos históricos, uma sociedade – global – livre, justa e solidária.

Nunca desistiu.

Um exemplo virtuoso que inspira continuamente os que utilizam os direitos humanos como vetor de interpretação do Direito (e pode haver melhor vetor?).

Ao reverenciar a memória do Professor Dalmo, só podemos dizer: muito obrigado.

_____________________


[1] DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 95-96

  • Professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco). Professor e Coordenador de Mestrado da Unialfa. Procurador Regional da República. Diretor da ILA-Brasil.

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter