Guerras e Ordem Mundial

Coluna “Desarmamento e Desnuclearização”
por Embaixador Sérgio Duarte

No dia 26 de junho de 1945 a Carta da nova organização mundial afirmou a decisão dos povos das Nações Unidas de “poupar as gerações futuras do flagelo da guerra”. A Carta estabeleceu os princípios básicos da convivência pacífica e construtiva entre nações e instituiu os órgãos responsáveis pela manutenção da paz e segurança internacionais. Até o momento, porém, a humanidade não possui mecanismos eficazes para evitar as guerras e garantir a paz.  Ao longo dos 75 anos de existência das Nações Unidas ocorreram inúmeros conflitos armados em várias partes do mundo, com dezenas de milhões de vítimas entre combatentes e civis.

 A mais grave e potencialmente mais perigosa de todas as conflagrações desde 1945 é sem dúvida a decorrente da recente agressão russa contra a Ucrânia, que envolve diretamente os países mais fortemente armados.  Após quatro semanas de morte e destruição essa guerra não provocada não dá sinais de chegar ao fim. A esta altura, não se pode saber como, e por quanto tempo, a situação ainda poderá evoluir. Três cenários pessimistas podem ser vislumbrados: um impasse militar prolongado que multiplique as mortes e sofrimentos; a conquista do território ucraniano pela Rússia e a consequente instalação de um governo títere obediente a Moscou; e finalmente um ataque, por acidente ou incompetência, contra a Polônia ou outro país da OTAN. Como o artigo 5 do estatuto da OTAN dispõe que a organização responderá militarmente em caso de agressão a qualquer de seus membros, esta última possibilidade é a mais assustadora, porque poderá provocar retaliações e escaladas contínuas capazes de levar a uma guerra nuclear que ninguém parece desejar.

As negociações em curso entre ucranianos e russos se concentram atualmente em um plano de paz que envolveria compromissos formais de Kiev de jamais se tornar membro da OTAN, a promessa de não abrigar bases ou armamento estrangeiro em seu território e a aceitação de independência para as províncias de Lugansk e Donetsk, no extremo leste da Ucrânia, além do reconhecimento da soberania russa sobre a Crimeia, que fora anexada por Moscou em 2014.  Esse arranjo deveria satisfazer as exigências russas no que toca às garantias de sua segurança. Ao mesmo tempo, asseguraria a retirada das tropas invasoras e estabeleceria alguma forma de garantir também a independência e a segurança da própria Ucrânia. Devastado pelos bombardeios russos, inclusive contra áreas residenciais e a população civil, o país necessitará ajuda maciça para sua reconstrução.

Seja qual for o desfecho, o mundo certamente não será mais como antes. A agressão russa teve como consequência imediata o reforço da solidariedade e cooperação entre os membros da OTAN que vinha sendo abalada desde o período presidencial de Donald Trump em Washington. A aliança atlântica, que nascera em 1949 como resposta à expansão soviética para o Ocidente europeu, trata de rearmar-se diante da necessidade de definir sua postura política e militar. Tão logo iniciado o conflito na Ucrânia a OTAN adotou e pôs em prática severas sanções econômicas e comerciais e promoveu a condenação da Rússia nas instâncias multilaterais, mobilizando principalmente o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral da ONU. O Conselho não conseguiu adotar uma moção de condenação devido ao poder de veto de que dispõe a Rússia, mas tanto nesse órgão quanto na Assembleia Geral ficou evidente o consenso geral de que a ação russa constituía uma inaceitável violação dos princípios que regem o relacionamento entre estados, notadamente a solução pacífica de controvérsias e a abstenção de uso da força contra a integridade territorial e política de outro estado, exceto em caso de legítima defesa, em conformidade com o Capítulo VII. 

Durante as décadas de 1945 a 1988 as relações entre os Estados Unidos e a União Soviética praticamente se esgotavam no antagonismo ideológico e na busca ou consolidação de blocos de apoio político e militar em um mundo dividido em dois. A rivalidade e desconfiança provocaram conflitos periféricos, mas não houve enfrentamento militar direto entre ambos. Ao suceder à URSS, a Rússia passou a esforçar-se por recuperar e manter paridade estratégica com os Estados Unidos e minimizar, tanto quanto possível, os inconvenientes de sua situação geopolítica desfavorável, procurando refazer, às vezes com uso da força, os contornos do antigo estado soviético. Naquele período, até o reconhecimento formal da soberania de Pequim sobre o território continental em 1972, a China permaneceu afastada da comunidade internacional. No mundo globalizado, aos poucos a divergência ideológica entre comunismo e capitalismo desapareceu. Nos tempos atuais, caracterizados por profunda desconfiança sobre a capacidade dos governos de atender aos anseios das populações, a dicotomia parece consolidar-se entre os regimes democráticos ao estilo ocidental e os que tendem mais para a autocracia, inclusive no mundo em desenvolvimento.

A atual competição hostil entre os Estados Unidos e a China poderá ser mais duradoura e mais ampla do que outras situações semelhantes na história moderna, inclusive a própria Guerra Fria. Washington vê com desagrado o recrudescimento da atitude repressiva e pouco respeito aos direitos humanos para com dissidentes e minorias na China e a considera um competidor capaz estabelecer constante desafio a um sistema internacional estável e aberto. Pequim, por sua vez, pretende afirmar e ampliar sua presença e influência no mundo, inclusive em áreas até aqui mantidas sob a órbita norte-americana. Ainda que certamente remota, não deixa de ser preocupante a possibilidade de que a competição entre dois países dotados de armamento nuclear leve a situações capazes de transformar-se em conflito bélico.

Os três países têm o dever de gerenciar com eficiência suas divergências, evitando seu agravamento. A China parece disposta a levar adiante a sua crescente inserção na vida política e econômica mundial sem abrir mão da estrutura autoritária de governo apoiada no PCC. Para Pequim, a questão da soberania de Taiwan não é negociável. Para a Rússia, a expansão da OTAN em direção ao leste gera graves e legítimas preocupações de segurança. Preservar a zona de influência que lhe restou após a dissolução da União Soviética, e se possível ampliá-la, é essencial para os dirigentes russos. Para os Estados Unidos, o apoio aos valores da civilização ocidental e a manutenção da superioridade estratégica são objetivos permanentes.  A comunidade internacional, por sua vez, precisa manter-se firme na defesa dos princípios que embasam as relações entre as nações, consubstanciados no direito internacional e no costume. Deve também prosseguir a busca do aperfeiçoamento dos mecanismos decisórios multilaterais. A opinião pública e a sociedade civil têm um papel importante a desempenhar nesse particular. Por sua tradição diplomática e reconhecida capacidade de interlocução, o Brasil é um dos países mais capacitados para participar dessa tarefa.

A ordem internacional vigente desde 1945 é sem dúvida deficiente e discriminatória, mas é a que foi até hoje possível construir. Seu descrédito e eventual desaparecimento não são do interesse de ninguém. É de esperar-se que governos esclarecidos, tanto em Washington quanto em Moscou e em Pequim, compreendam que há mais a ganhar com o estímulo a relações de cooperação – ou pelo menos não conflituosas – e mutuamente proveitosas do que com provocações e cultivo de rivalidades e ressentimentos.

Paz e a segurança são bens públicos que pertencem à humanidade como um todo. A construção de um novo paradigma internacional de segurança que não seja baseado unicamente nos estritos interesses nacionais e no poderio bélico não será possível em um ambiente de confrontação. O interesse geral se sobrepõe a considerações meramente paroquiais. Um paradigma eficaz terá de ser não discriminatório e inclusivo, a fim de proporcionar garantias de segurança para todos e não apenas para uns poucos.  As condições para atingir esse objetivo são bem conhecidas e estão claramente enunciadas na Carta das Nações Unidas: renúncia ao uso da força, solução pacífica das controvérsias, adesão às normas e princípios estabelecidos de direito internacional, respeito pelos padrões geralmente aceitos de comportamento internacional e cumprimento de boa fé dos compromissos assumidos.

O artigo 5 do estatuto da OTAN dispõe que a organização responderá militarmente em caso de agressão a qualquer de seus membros.

No limiar da terceira década do século 21, Estados Unidos, Rússia e China têm a extraordinária possibilidade – e também a responsabilidade para com a comunidade internacional como um todo – de orientar suas relações no sentido de uma participação efetiva na busca de um consenso internacional capaz de tratar com seriedade dos problemas da existência de armas nucleares, da mudança do clima, da redução de desigualdades e outros nos quais os interesses de ambos são convergentes com os da maioria dos outros países. A crise da ordem mundial poderá constituir um ponto de inflexão positivo em prol do reforço da  segurança e bem estar de todos.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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