Entrevista com Antônio Augusto Cançado Trindade: em memória

Nos últimos dias de maio, recebi mensagens de pêsames e, ao mesmo tempo, vi a necessidade de consolar amigos que também haviam perdido o ente querido, mas que, como eu, não levavam o sobrenome Cançado Trindade. Compartilhamos uma dor que a mim pegou desprevenido; e tentamos nos agarrar no consolo de que o professor permanece vivo nas obras e nos amigos que nos legou.

O Brasil perdeu seu maior jurista. O direito internacional, no país, ficou órfão. Antônio Augusto Cançado Trindade lutou pela centralidade do ser humano no direito, e pela consolidação de um “novo jus gentium”, em benefício da humanidade. Alçou o pensamento jurídico brasileiro a novo patamar. Incansável, colocou em prática seus ideais. Como juiz, ofereceu reparação às vítimas que clamavam por justiça; como professor, influenciou gerações; como ser humano, deixou a memória da generosidade que dedicava a todos à sua volta. É insubstituível.

Deixou um legado de humanização do direito internacional, de cuidado e atenção aos justiciáveis. Sua luta por justiça vinha da inconformidade com o sofrimento e com a tragédia humana: “Há que reagir face a um mundo tão sombrio, injusto e imprevisível como o atual”. Em sua atividade como acadêmico, consultor jurídico e juiz, defendeu sempre a realização da justiça como objetivo último do direito.

Em nosso “introvertido país”, como ele próprio dizia, sua obra ainda merece ser melhor estudada. Ela consiste no mais completo e qualificado repertório de direito internacional já escrito por qualquer brasileiro. São dezenas de votos individuais na Corte Interamericana de Direitos Humanos e na Corte Internacional de Justiça; dezenas de livros de sua autoria, incluindo seu curso geral na Academia da Haia; e inúmeros pareceres jurídicos, entrevistas e artigos. Seu conhecimento comparava-se apenas a sua humanidade; ambos estão refletidos em sua obra. A academia brasileira tem muito a enriquecer com a adoção mais sistemática de Cançado Trindade nos currículos universitários.

A entrevista a seguir foi realizada em 2019, originalmente para a Revista JUCA, do Instituto Rio Branco. Após decisão de descontinuar o periódico, a entrevista permaneceu inédita. Sua publicação póstuma é uma pequena homenagem ao professor.

ENTREVISTA

Antônio Augusto CANÇADO TRINDADE

Haia, 01 de setembro de 2019.

P. Sloboda Não é nenhum exagero afirmar que a JUCA entrevista o maior internacionalista brasileiro de todos os tempos. Prêmio York por sua tese de doutorado em Cambridge, Professor Emérito de Direito Internacional da Universidade de Brasília, ex-Consultor Jurídico do Itamaraty (1985-1990), Antônio Augusto Cançado Trindade reinventou a Corte Interamericana de Direitos Humanos no período em que foi seu Presidente (1999-2004). Concebendo como objetivo último do direito a realização da justiça, o Professor Cançado Trindade tem dado contribuição inestimável ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. Sua bibliografia é simplesmente monumental. Doutor honoris causa por diversas Universidades de vários países em três continentes (América Latina, Europa e Ásia), é o jurista brasileiro mais respeitado e lido no mundo. Atualmente, exerce seu segundo mandato como Juiz da Corte Internacional de Justiça. Seus Votos Individuais são estudados nas principais Universidades do mundo. Sua contribuição ao direito internacional ainda está para ser calculada, e sua obra inspirará, por muitas décadas, gerações de internacionalistas. Professor, obrigado pela entrevista. É uma honra para qualquer amante do direito internacional poder ter essa conversa. Professor, sete brasileiros já foram eleitos Juízes da Corte Permanente de Justiça Internacional e da Corte Internacional de Justiça, mas o Senhor foi o primeiro a ser reeleito Juiz da Corte Mundial. Isso pode ser visto como um reconhecimento da contribuição do pensamento brasileiro para o direito das gentes?

A.A. Cançado Trindade: – Efetivamente, em toda a história do Brasil, dos juristas que já foram alçados pela ONU à Corte Mundial na Haia (Corte Permanente de Justiça Internacional [CPJI] e Corte Internacional de Justiça [CIJ]), dos tempos de Ruy Barbosa (CPJI e Sociedade das Nações) até o presente, sou o primeiro e único jurista brasileiro a ter sido reeleito à Corte Mundial da Haia. É este um fato sem precedentes em nosso país. Para minha grata satisfação, minhas reeleições, tanto à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CtIADH) em 2001, quanto à CIJ, em novembro de 2017, se deram com o apoio unânime de todos os países da América Latina.

Estou muito feliz com isto, pois tenho sustentado e avançado com fidelidade, sucessivamente em ambos tribunais internacionais, o legado dos postulados da doutrina jurídica latino-americana e sua contribuição ao desenvolvimento progressivo do direito internacional. Tenho avançado muito além de meus predecessores neste propósito básico dos avanços no direito internacional. E desde 2004, venho representando – e continuarei a fazê-lo – toda a América Latina igualmente no Curatorium ou Conselho Diretor (por este eleito e reeleito) da Academia de Direito Internacional da Haia, que funciona, juntamente com a CIJ, no mesmo Palácio da Paz na Haia. Também na Academia de Direito Internacional da Haia, desde sua criação em 1923 até o presente, sou o primeiro e único jurista brasileiro a ter nela ministrado, além de cursos temáticos, um Curso Geral de Direito Internacional Público (em 2005), reeditado duas vezes.

P. Sloboda – O Senhor é famoso pelos Votos Dissidentes, que muitas vezes são mais extensos e fundamentados que as próprias decisões da Corte Internacional de Justiça. Como o Senhor acha que esses Votos contribuem para o desenvolvimento progressivo do direito internacional?

A.A. Cançado Trindade: – Assim têm meus Votos Individuais contribuído em razão de meu empenho em avançar a visão humanista da missão comum dos tribunais internacionais contemporâneos, a da realização da justiça. Neste mesmo propósito, continuarei atualizando, em novas edições, alguns de meus livros publicados nos últimos anos em vários países em distintos idiomas. E prosseguirei com dedicação em minha construção jurisprudencial dentro da CIJ, rumo à consolidação da humanização do direito internacional contemporâneo. Para minha satisfação, meus Votos Individuais têm sido estudados e amplamente reconhecidos nos círculos acadêmicos de muitos países.

A esse respeito, o Conselho Editorial da Nijhoff, principal editora jurídica europeia de direito internacional, decidiu, há meia década, incluir meus Votos Individuais em sua seletiva Série “Juízes”: meus Votos nela figuram em três tomos, lançados na Haia e em Estrasburgo (volume I com meus Votos na CtIADH, e volumes II-III com meus Votos na CIJ até 2016). Desde a criação da CIJ em 1945 até o presente (meados de 2019), sou o sexto Juiz no mundo (o único de todo o continente americano) a ter a honra de ser incluído nesta coletânea. Meus Votos Individuais, em ambos tribunais internacionais, já se encontram publicados também em língua francesa (em Paris), e em espanhol (na cidade do México, em três tomos).

P. Sloboda. – Na ocasião em que o Senhor foi reeleito para a CIJ, ocorreu algo inédito, que resultou na ausência de nacional de um membro permanente do Conselho de Segurança na Corte Internacional de Justiça. O Senhor acha que isso pode ser um indício de um novo tempo na Corte?

A.A. Cançado Trindade: – Espero que sim. Afinal, não havia razão alguma para que os Estados que compõem o P-5 no Conselho de Segurança da ONU continuassem a supor que lhes caberia sempre ter um Juiz (cada um deles) também na CIJ. Não há P-5 na CIJ; nenhum outro tribunal internacional contemporâneo abre ou abriria espaço para isto. Espero que estejamos realmente ingressando em um novo tempo na CIJ, pois todos os Estados são juridicamente iguais. A atual situação – refletindo a justiça – se encontra em plena conformidade com a letra e o espírito da Carta das Nações Unidas, que forma um todo com o Estatuto da CIJ.

P. Sloboda – No seu Voto Dissidente no caso Croácia versus Sérvia (2015), sobre a Convenção contra o Genocídio, o Senhor criticou o rigor do conjunto probatório exigido pela Corte Internacional de Justiça com relação ao dolus specialis do crime de genocídio. O Senhor acha que a CIJ ainda é muito relutante ao tratar de direitos humanos?

A.A. Cançado Trindade: – Na CIJ, ao longo da última década, tenho estado engajado na adjudicação de todas as questões e casos interpostos, sobre distintas áreas do direito internacional. Desde que ingressei na CIJ (eleito e reeleito pela ONU em 2008 e em 2017, respectivamente), os casos têm passado a versar sobre virtualmente todos os capítulos do direito internacional, o que me encanta: cada caso é um universo em si mesmo, quanto à temática e ao volume da documentação, e quanto às controvérsias apresentadas para decisão pela CIJ. Tanto os casos contenciosos interestatais como os pedidos de parecer são muito documentados. Quanto à fase escrita do procedimento, é este o tribunal internacional mais documentado que existe (conheço também os demais); soma-se a documentação adicional apresentada posteriormente na fase oral, das audiências. No futuro próximo haverá matérias de alta complexidade diante da CIJ, a exemplo do que tem ocorrido nos três últimos anos. Por exemplo, no referido caso da Aplicação da Convenção contra o Genocídio (Croácia versus Sérvia, 2015), que encerrou a adjudicação das guerras nos Bálcãs ao longo da década de noventa, em que a CIJ evitou determinar uma violação daquela Convenção, apresentei um longo e contundente Voto Dissidente no qual alertei para a necessidade de interpretar e aplicar a referida Convenção com atenção voltada aos grupos de indivíduos vulneráveis, e não às susceptibilidades dos Estados.

P. Sloboda – Em outro Voto Dissidente, no caso das Imunidades Jurisdicionais dos Estados, o Senhor argumentou que os Estados não deveriam gozar de imunidades por crimes graves, que o Senhor chamou de delicta imperii. Que papel o acesso à justiça deve ter no direito internacional?

A.A. Cançado Trindade: – No caso anterior das Imunidades Jurisdicionais dos Estados (Alemanha versus Itália, com intervenção da Grécia, sentença de 03.02.2012), em meu extenso e firme Voto Dissidente discordei da decisão da CIJ, e sustentei que não há imunidades estatais em casos de crimes internacionais. O primado é o do direito de acesso à justiça. Ao concentrar-me na necessidade de assegurar a proteção da pessoa humana face aos crimes internacionais, rejeitei a invocação indevida de imunidades estatais. Ainda antes desta lamentável sentença de 2012 quanto ao mérito, ante a decisão prévia da CIJ de 06.07.2010 de rechaçar a demanda reconvencional da Itália, emiti outro Voto Dissidente também extenso, em que sustentei, inter alia, que era inadmissível e infundado sugerir, inclusive buscando apoiar-se nos mais falsos dogmas positivistas, que os crimes de trabalho forçado e escravo da época do III Reich não estariam proibidos.

Em minha dissidência, sustentei que estavam claramente proibidos pela consciência humana, e que tais crimes não poderiam ser encobertos por imunidades estatais; já na época da Alemanha nazista, e ainda antes dela, a impossibilidade de impunidade do Estado por crimes contra a humanidade (como os massacres perpetrado pelas tropas nazistas em Civitella (Itália) e em Distomo (Grécia), e pela sujeição de pessoas detidas a trabalho forçado e escravo na indústria bélica alemã, entre 1943 e 1945, já se encontrava profundamente arraigada na consciência humana, na consciência jurídica universal, como – em meu entendimento – fonte material última de todo o Direito.

Por conseguinte, na concepção que sustento – tanto neste caso assim como em outros, – os seres humanos não são meros objetos de regulamentação do direito internacional, mas sim sujeitos de direitos que emanam diretamente deste. Na minha percepção, foi o despertar gradual da consciência humana que fez evoluir a conceitualização dos “delicta juris gentium”, como violações do Direito Internacional Humanitário. Assim prevalece a concepção humanista, que sustento, do próprio Direito Internacional, o direito das gentes (droit des gens), com o primado da consciência sobre a vontade.

Os direitos humanos efetivamente se sobrepõem aos interesses e conveniências dos Estados, são anteriores e superiores aos Estados. Em minha dissidência na CIJ no caso das Imunidades Jurisdicionais do Estado, sustentei a inalienabilidade dos direitos inerentes ao ser humano, rechaçando qualquer pretendida renúncia destes direitos por parte do Estado, como contrária ao ordre public internacional e desprovida de quaisquer efeitos jurídicos. Seria infundado tentar sugerir que isto ainda não estava reconhecido à época da II guerra mundial, uma visão própria da velha postura positivista, com sua inevitável submissão ao poder estabelecido. Não há – nunca houve – imunidade nem impunidade estatal para crimes contra a humanidade.

P. Sloboda Desde quando o Senhor é responsável, no Palácio da Paz da Haia, pela custódia dos Arquivos de Nuremberg? E como se sente a respeito?

A.A. Cançado Trindade: – Ao tornar-me Presidente da Comissão da Biblioteca da CIJ, eleito por meus pares em 2015, e por eles reeleito no início do ano de 2018, tenho sido o responsável pela custódia ou guarda dos históricos Arquivos de Nuremberg, depositados no subsolo de nossa Biblioteca aqui no Palácio da Paz da Haia. Tenho me dedicado à sua preservação e divulgação, e me sinto sumamente honrado em fazê-lo, em benefício da comunidade internacional como um todo. É algo mais do que nunca necessário e de suma importância, ainda mais em nossos dias, face à onda inaceitável de “negacionismo” que hoje nos aflige.

Em fevereiro de 2018, lançamos aqui na Corte Mundial na Haia, um livreto narrando e explicando todo o conteúdo dos Arquivos de Nuremberg. Uma vez digitalizados (já com o aval da consultoria jurídica do Secretário Geral da ONU e o consentimento das quatro potências aliadas da II Guerra Mundial), passarão estes Arquivos, ademais, a ser apresentados nas exposições permanentes do Museu Memorial do Holocausto (em Washington D.C.) e do Memorial da Shoah (em Paris). Pela primeira vez os Arquivos de Nuremberg serão mostrados em exibições públicas permanentes, a partir de 2018. Sinto-me gratificado em estar contribuindo decisivamente a tornar isto possível. Até o presente, oacesso aos Arquivos de Nuremberg tem sido possível, ainda que restrito, sujeito a autorização prévia, dada a necessidade de sua preservação cuidadosa.

Em outubro de 2017 visitei pessoalmente, em Nuremberg, o Centro de Documentação (recentemente aberto) sobre as origens do nazismo, impressionante e assustador; também visitei o Palácio de Justiça, onde se realizaram os juízos do Tribunal de Nuremberg (1945-1946), marcando o fim do nazismo. Com esta visita, espero haver contribuído a consolidar a rota histórica de Nuremberg à Haia, na busca da realização da justiça no plano internacional. Mas o preocupante é que, posteriormente ao ocorrido na II guerra mundial, seguiram-se novos genocídios, em distintos continentes, como os do Camboja, de Ruanda, dos Bálcãs, dentre outros.

Cabe recordar que, uma vez concluídos os juízos de Nuremberg, seus Arquivos foram confiados à nossa CIJ em 1947, e foram depositados conosco aqui na CIJ na Haia entre dezembro de 1948 e março de 1950, encarregando-se a ONU de assumir as despesas de seu transporte e preservação. Compõem os referidos Arquivos quatro tipos de documentos, a saber: a) 250 mil páginas de documentos em papel (transcrições das audiências nos quatro idiomas, e demais documentos investigatórios); b) 1942 discos de gramofone correspondendo a 775 horas de audiências dos juízos de Nuremberg; c) 37 filmes e 13 microfilmes, contendo o material probatório; d) outros objetos usados como provas (inclusive fragmentos de pele humana).

Há que preservar a memória viva das trágicas devastações do passado, gerando milhões de vítimas civis inocentes, inclusive crianças. Afinal, os seres humanos realmente não aprendem as lições do passado, como podemos constatar no mundo altamente perigoso em que hoje vivemos, ou sobrevivemos, com a ameaça crescente das armas nucleares, e o lamentável ressurgimento do fascismo e neonazismo em alguns países em distintos continentes. Os seres humanos têm – sempre tiveram – o bem e o mal dentro de si, de nossos dias até séculos de volta ao Livro do Gênesis.

P. Sloboda – O Senhor é o primeiro brasileiro a ter integrado e presidido, em dois períodos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos; como se sente como pioneiro nas posições que sustentou, com tanta repercussão internacional?

A.A. Cançado Trindade: – Sim, sou o primeiro brasileiro, eleito pela OEA em 1994, a tornar-se Juiz da CtIADH (em 1995), da qual vim em seguida a tornar-me Presidente (eleito por meus pares) por dois mandatos (1999-2004). Ao lá terminar meu segundo mandato, tornei-me, eleito pela ONU, Juiz da CIJ (em 2009). Antes de tudo isto, quando atuei como Consultor Jurídico do Itamaraty (1985-1990), preparei os pareceres que serviram de fundamentos para as decisões tomadas pelo Brasil de aderir aos tratados gerais de proteção internacional dos direitos humanos da OEA e ONU (a saber, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e os dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas), e de aceitar a competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Além de ser o responsável pela fundamentação da inserção do Brasil no corpus juris do Direito Internacional dos Direitos Humanos, também sou o autor do disposto no artigo 5(2) de nossa Constituição Federal. Esta disposição teve origem em uma proposta que apresentei à Assembleia Nacional Constituinte (Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais). Minha proposta foi aceita e transformou-se no artigo 5(2) de nossa Constituição de 1988, mediante o qual os direitos humanos consagrados em tratados de direitos humanos em que o Brasil seja Parte incorporam-se ipso facto ao direito interno brasileiro, no âmbito do qual passam a ter “aplicação imediata” (artigo 5(1)), da mesma forma e no mesmo nível que os direitos constitucionalmente consagrados.

Não sou notícia, faço história; muito discretamente, venho fazendo história ao longo de mais de três décadas, inclusive na solução de importantes controvérsias internacionais (em distintos continentes), sucessivamente em duas jurisdições internacionais, e também mediante pareceres a organismos internacionais (ACNUR, UNESCO, OEA e Conselho da Europa). Algumas destas controvérsias têm afetado segmentos da população em situações graves; sua solução judicial (tanto na CtIADH como na CIJ) têm assim se revestido da maior importância.

Meus 12 anos na CtIADH (1995-2006) foram uma época mística, inesquecível, de grande e memorável construção jurisprudencial, hoje mundialmente reconhecida. Deixei toda esta experiência registrada em meu livro de memórias da Corte Interamericana, hoje em sua quinta edição. A visão humanista da missão dos tribunais internacionais contemporâneos, que venho sustentando e avançando ao longo dos anos, sucessivamente em duas jurisdições internacionais (CtIADH e CIJ), bem conhecida no exterior, talvez venha a ser mais conhecida e reconhecida também em nosso país introvertido, o Brasil, dentro de algumas décadas, se o mundo ainda existir.

P. Sloboda – Há muitos anos o Senhor tem chamado atenção para o processo de humanização do direito internacional. No seu Voto Arrazoado no Parecer Consultivo da CIJ sobre a Declaração de Independência do Kossovo, por exemplo, o Senhor ressalta a importância desse direito centrado no ser humano. Como o Senhor compreende a relação entre população e território enquanto elementos constitutivos do Estado?

A.A. Cançado Trindade: – Efetivamente há muitos anos venho sustentando a concepção humanista do direito internacional, abarcando os fins humanos do Estado, tal como o fiz, inter alia, em meu extenso Voto Arrazoado no Parecer Consultivo da CIJ sobre a Declaração de Independência do Kossovo (de 22.07.2010). Comecei por recordar a experiência histórica dos sistemas de minorias e de mandatos na era da Sociedade das Nações, e do sistema de tutela e da administração internacional de território na era das Nações Unidas, – atentos todos às condições de vida da população, consoante uma visão essencialmente humanista, revelando, como denominador comum, a consciência para o dever de cuidado com o gênero humano.

O jus gentium contemporâneo, fiel a esta visão humanista, deixa claro que o Estado, ou quaisquer outras formas de organização sócio-política, foram todos concebidos, e passaram a existir, para a pessoa humana, e não vice-versa. E as organizações internacionais, criadas por Estados, passaram a ser fiéis à observância do princípio de humanidade lato sensu, situando-o bem além da antiga e estrita dimensão interestatal. Efetivamente, – acrescentei em meu Voto Arrazoado, – os seres humanos, a população ou o povo constituem o mais precioso elemento constitutivo da condição de Estado (statehood).

Os sistemas históricos mencionados, voltados à proteção das populações e à salvaguarda da dignidade da pessoa humana, se inspiraram no princípio fundamental de humanidade. Assim sustentei minha posição principista e anti-voluntarista. Ainda em meu Voto Arrazoado no Parecer da CIJ sobre a Declaração de Independência do Kossovo, destaquei a importância dos princípios de direito internacional no âmbito do Direito das Nações Unidas, e em relação aos fins humanos do Estado, conduzindo inclusive à superação do paradigma estritamente inter-estatal no direito internacional contemporâneo.

Posteriormente, em meu outro Voto Arrazoado sobre a matéria, que apresentei na Sentença da CIJ (de 16.04.2013) abarcando a demarcação de fronteira e condições de vida de populações nômades, no caso da Disputa Fronteiriça entre Burkina Faso e Níger, concentrei-me sobretudo no “fator humano”, constituído no cas d´espèce pelas populações nômades e semi-nômades habitando na região da fronteira. No curso do procedimento ante a CIJ, as próprias partes litigantes asseguraram que as condições de vida das populações locais não seriam afetadas pelo traçado da fronteira, considerando o regime de transhumance como um verdadeiro “sistema de solidariedade”.

Ponderei então que o presente caso revelava que, mesmo um tema clássico como o do território, passava a ser hoje abordado conjuntamente com a população, à luz do princípio de humanidade, orientando a busca da melhoria das condições de vida da societas gentium e a realização do bem comum”, no âmbito do novo jus gentium de nossos tempos. Era perfeitamente viável demarcar a fronteira tendo em mente as necessidades das populações locais; havia que ter presente, – agreguei, – que em perspectiva histórica ou temporal, as populações nômades e semi-nômades, assim como sedentárias, precederam em muito a emergência dos Estados no jus gentium clássico.

Os Estados, – acrescentei em meu Voto Arrazoado, – se formaram historicamente para cuidar dos seres humanos sob suas respectivas jurisdições, tendo sempre presentes os seus fins humanos. Mais além da soberania estatal, a lição básica a extrair-se do presente caso entre Burkina Faso e Níger centrava-se na solidariedade humana, pari passu com a necessária segurança jurídica das fronteiras. Isto se encontra em linha com a sociabilidade, emanando da recta ratio nos fundamentos do jus gentium. A recta ratio, – recordei, – marcou presença no pensamento dos “pais fundadores” do direito das gentes (já no século XVI), e continua a ressoar na consciência humana em nossos dias.

P. Sloboda Isso me remete a uma de suas principais obras: seu Curso Geral ministrado na Academia da Haia: “Direito Internacional para a Humanidade: Rumo a um Novo Jus Gentium”. Em que medida o Senhor acha que é possível criar um novo direito internacional para o século XXI, pautado, como o Senhor diz, não por uma raison d’État, mas por uma raison d’humanité?

A.A. Cançado Trindade: – Neste meu opus magnum, três vezes reeditado até o presente na Haia, e hoje estudado e reconhecido em numerosos países, desenvolvo o Leitmotiv da identificação de um corpus juris crescentemente orientado ao atendimento das necessidades e aspirações dos seres humanos, dos povos e da humanidade como um todo. Com a superação do enfoque estritamente inter-estatal da disciplina do passado, a personalidade jurídica internacional se expandiu, vindo hoje a abarcar, além dos Estados e organizações internacionais, também os povos, indivíduos e a humanidade como sujeitos do direito internacional.

A conscientização crescente da necessidade de orientar-se por valores universalmente compartilhados tem gerado uma mudança fundamental na visão do direito internacional nas últimas décadas, com maior atenção a seus fundamentos e, paralelamente a suas fontes formais, à sua fonte material (a consciência jurídica universal). Examino, ao longo da obra, em seguida, as construções conceituais desse novo direito internacional e identifico considerações básicas de humanidade permeando todo o seu corpus juris (todos os seus capítulos), revelando os processos correntes de sua humanização e universalização. Enfim, analiso a construção do Estado de direito (état de Droit, rule of law) internacional, reconhecendo a necessidade e a busca da jurisdição internacional obrigatória, rumo a um novo jus gentium, o Direito Internacional para a humanidade.

P. SlobodaQual é o papel da recta ratio, da consciência jurídica universal, nesse novo direito das gentes?

A.A. Cançado Trindade: – Como examino em meu referido opus magnum resultante do meu Curso Geral de Direito Internacional Público, que ministrei na Academia de Direito Internacional da Haia, a noção de recta ratio, em perspectiva histórica, passou a ser identificada a partir das obras dos chamados “pais fundadores” do direito internacional, nos séculos XVI e XVII (F. Vitoria, A. Gentili, F. Suárez, H. Grotius, entre outros), como pertencente ao domínio dos fundamentos do direito natural, e, para alguns, a identificar-se ela própria integralmente com este último.

As raízes de seu pensamento humanista remontam a um passado mais distante, como, e.g., o dos ensinamentos magistrais no De Officiis de Cícero, baseados na recta ratio, tendo se inspirado em grande parte na filosofia escolástica do direito natural, em particular na concepção estoico‑tomista da recta ratio e da justiça, que reconheceu a pessoa humana como um ser social, racional e dotado de dignidade intrínseca. Foi Cícero quem formulou a mais célebre caracterização da recta ratio, ao sustentar que tudo o que é correto encontra-sedeterminado, em muitos aspectos, pelo orthos logos.

Desse modo, a recta ratio passou a ser considerada como indispensável para a sobrevivência do próprio direito internacional emergente, tido como universal (dada a unidade do gênero humano), aplicável a todos – tanto aos Estados como aos indivíduos – e em todas partes (totus orbis). Ao contribuir ao surgimento do jus humanis societatis, mestres como Francisco de Vitoria e Domingo de Soto imbuíam seus ensinamentos do pensamento humanista que os precedeu. A partir dos “pais fundadores” do direito internacional, nos séculos XVI e XVII, a recta ratio passou a ser invocada para fundamentar a visão do direito internacional nascente como necessário e não simplesmente voluntário.

Os princípios da recta ratio emanam da conciência humana e afirmam a relação inelutável entre o jurídico e o ético, na visão do direito natural, que situa os ditames da recta ratio nos fundamentos do próprio jus gentium. Com efeito, ainda antes dos “fundadores” do direito internacional, já no século XIII, Tomás de Aquino (1225‑1274) se referiu ao conceito de jus gentium em sua Summa Theologiae, como algo apreendido pela própria razão natural (sendo assim mais perfeito que o direito positivo), consciente da dimensão temporal, revestido de uma validez universal, e dirigido à realização do bem comum, em benefício último de todos os seres humanos, – pois de outro modo seria injusto. Assim, na visão tomista, era claro o fundamento ético do jus gentium, conformando uma “razão comum de todas as nações”na busca do bem comum. Esse novo jus gentium emana, em última análise, da consciência humana (recta ratio), da consciência jurídica universal como sua fonte material última, tal como a identifico, concebo e examino em meu referido opus magnum.

P. SlobodaNo seus três Votos Dissidentes nos três casos das Ilhas Marshall (2016), o Senhor lamenta a invocação jurisprudencial negativa da CIJ e comenta que no Parecer de 1996, ao não condenar explicitamente as armas nucleares, ela priorizou a vida de um estado hipotético em prejuízo da vida, em última análise, da própria humanidade. A CIJ continua estadocêntrica?

A.A. Cançado Trindade: – Em 2016, nos três casos das Obrigações de Desarmamento Nuclear, em que a CIJ rechaçou indevidamente as três demandas interpostas pelas Ilhas Marshall, apresentei três extensos e contundentes Votos Dissidentes, em que condenei firmemente as armas nucleares e conclamei todos os Estados ao pronto cumprimento da obrigação universal de desarmamento nuclear. Sou o primeiro dos Juízes da CIJ, em toda a sua história, a ter sido reeleito pela ONU à CIJ depois desta condenação das armas nucleares que fundamentei em minhas três referidas dissidências nestes casos, decididos em 05 de outubro de 2016.

A posição que sustentei em minha forte dissidência na CIJ em sustentação do pronto e necessário desarmamento nuclear teve repercussão na Assembleia Geral da ONU, que, pouco tempo depois,

em 23.12.2016, convocou uma Conferência neste propósito. Dentro da CIJ, tenho me empenhado assim para que ela se conscientize da necessidade premente de transcender sua miopia concentrada nos Estados, pois só sobreviveremos se passarmos a responder às necessidades da humanidade como um todo; uma delas é precisamente por um fim às armas nucleares, uma afronta à comunidade internacional como um todo.

A referida Conferência convocada pela Assembleia Geral da ONU em fins de 2016 se realizou em duas sessões, em março e junho-julho de 2017, culminando com a adoção recente do Tratado de Proibição de Armas Nucleares, aos 07.07.2017, aberto à assinatura seguida de ratificação pelos Estados no dia 20.09.2017. As potências nucleares evitam referir-se a esta Convenção, e pressionam os demais Estados a não assiná-la nem ratificá-la. Só se referem ao Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares de 1968, como se a Convenção de 2017 não existisse. Mas não logram impedir que as armas nucleares estejam definitivamente proibidas para todos no direito internacional contemporâneo.

P. SlobodaO Senhor acredita que o recrudescimento do nacionalismo e as atuais críticas a um suposto globalismo podem significar um retrocesso nessa evolução do direito internacional?

A.A. Cançado Trindade: – Vivemos um momento perigosíssimo para a humanidade como um todo. As razões que levaram à ascensão do multilateralismo e ao reconhecimento da importância das organizações internacionais vêm sendo postas de lado, de modo irresponsável, pelos arautos da política de poder e do unilateralismo, que estão causando um dano irreparável à comunidade internacional como um todo. O único “globalismo” que enxergam é o do fluxo de capitais, em favor dos mais ricos, ao mesmo tempo em que erguem muros para bloquear o livre movimento de seres humanos, dos migrantes indocumentados e dos mais pobres.

Como o demonstram as condições de vida das populações, o mundo de hoje se afigura cada vez mais fragmentado (de modo algum “globalizado”), com um número crescente (mais de um bilhão de pessoas) vivendo em condições infra-humanas, e com sua força de trabalho submetida às vicissitudes do “mercado”. Já não mais se preservam os bens da educação pública e da saúde pública, tragicamente destruídos em numerosos países, a partir dos programas (de fins da década de oitenta e início da década de noventa) do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial falsamente cunhados como de “desenvolvimento”. Ao contrário, os recursos financeiros à busca de lucro passaram a ser tidos como sendo de muito maior importância do que as próprias vidas dos seres humanos.

Passou-se hoje em dia a vangloriar a “soberania” dos Estados (poderosos), responsável por tantas atrocidades no passado, e também no presente. A soberania estatal volta a ser invocada para a execução de atos desumanos remontando a ilícitos internacionais, como a edificação de muros, gerando a trágica desagregação familiar, e impedindo a livre circulação e até mesmo a própria sobrevivência de migrantes indocumentados e vulneráveis, em contraste chocante com o livre fluxo de capitais. Os líderes nacionalistas de hoje, em sua ignorância do direito internacional, vêm assim fomentando o lamentável ressurgimento do fascismo. Há que reagir face a um mundo tão sombrio, injusto e imprevisível como o atual; todos os que nos opomos a esta lamentável desconstrução, alimentamos a esperança na prevalência e contínua evolução do novo jus gentium, em benefício da humanidade como um todo, assim como nossa determinação de prosseguir trabalhando neste sentido.

P. SlobodaNeste ano de 2019, no seu Voto Arrazoado no Parecer da CIJ das Ilhas Chagos, o Senhor ressaltou a natureza cogente da autodeterminação dos povos. No século XXI, os próprios povos devem ser considerados sujeitos de direito internacional?

A.A. Cançado Trindade: – Já há muito os povos são sujeitos do direito internacional, de que têm dado testemunho o direito de autodeterminação dos povos, e a própria evolução do Direito das Nações Unidas. Em fevereiro deste ano de 2019, emitimos na CIJ o Parecer, a nós solicitado pela Assembleia Geral da ONU, acerca da questão do reassentamento dos habitantes do arquipélago de Chagos, no contexto do processo histórico de descolonização das Ilhas Maurício, à luz de resoluções da Assembleia Geral da ONU. Emiti um longo Voto Arrazoado, em que fui mais além da CIJ, ao sustentar que o direito de autodeterminação dos povos pertence ao domínio do jus cogens, e que a população do arquipélago de Chagos, indevidamente deportada das Ilhas, tem o direito de retornar às mesmas, e às reparações de danos. Toda a matéria encontra-se cuidadosamente examinada e explicada em detalhes em meu extenso Voto Arrazoado no referido Parecer da CIJ.

P. Sloboda Que poderia nos dizer sobre a adjudicação internacional presente de casos pela Corte Mundial, e a que casos o Senhor tem se dedicado mais nesse momento?

A.A. Cançado Trindade:

A par de nossas decisões recentes, temos, no momento, neste início de setembro de 2019, 16 casos pendentes na agenda da CIJ, sobre distintos capítulos do direito internacional. As repercussões de alguns deles poderão vir a ser amplas. Dedico-me inteiramente ao exame dos casos, todos eles, apresentados à CIJ, tal como registrado em meus Votos Individuais completos e publicados em coletâneas em distintos idiomas, estudados em diversos países (muito mais do que em nosso próprio país introvertido, alheio aos grandes temas do direito internacional).

Breve, em um caso complexo, opondo a República Democrática do Congo a Uganda, terá a CIJ audiências públicas em novembro de 2019 aqui em sua sede na Haia, para adjudicar e determinar as reparações no tocante ao conflito armado e aos massacres perpetrados na Região dos Grandes Lagos na África (ocorridos na segunda metade da década de noventa, pouco após o genocídio em Ruanda), tidos como a “Guerra Mundial Africana”, lamentavelmente esquecida, com seus mais de quatro milhões de vítimas.

P. SlobodaO tema dessa edição da revista JUCA é “muros”. No Parecer Consultivo sobre a construção por Israel de um muro em território palestino ocupado, se o senhor estivesse na Corte, haveria um voto separado?

A.A. Cançado Trindade: – O que hoje voltamos a constatar, ao nos aproximarmos do final da segunda década do século XXI, é que não se aprenderam as lições do passado, e vivemos – ou sobrevivemos – hoje em um mundo auto-destrutivo. Há uma década e meia, quando a CIJ emitiu seu Parecer sobre as Consequências Jurídicas da Edificação de um Muro no Território Palestino Ocupado, em meados de 2004, eu atuava como Juiz da CtIADH. Se eu já estivesse na CIJ naquela época, teria votado a favor do referido Parecer, que estabeleceu violações decorrentes da edificação do muro de Jerusalém e o dever de reparação de danos. Ademais, teria apresentado um Voto Arrazoado, para superar as insuficiências do raciocínio da CIJ.

Neste Voto Arrazoado, teria defendido a necessidade de ir mais além do mesmo, sustentando as convergências entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional Humanitário, assim como a consolidação do direito de autodeterminação dos povos, e a incidência aqui do jus cogens, a par das obrigações erga omnes (e não apenas estas últimas). Apesar de todas as resoluções anuais sucessivamente adotadas pela Assembleia Geral da ONU desde então, no mesmo sentido do Parecer da CIJ de 2004, o muro lá permanece, e hoje se edificam novos muros em distintos continentes. Urge rechaçar o atual culto ideológico à ignorância e à vulgaridade, vitimizando com a maior indiferença um número rapidamente crescente de seres humanos.

As próprias organizações internacionais – a começar pela ONU – encontram-se hoje crescentemente desprovidas de recursos para a realização de sua missão, em decorrência da hostilidade de determinadas superpotências (a própria ONU privada de 35% de seu orçamento). O multilateralismo está sendo deliberadamente debilitado, ao mesmo tempo em que se passa a vangloriar a soberania dos Estados (poderosos), responsável por tantas atrocidades no passado, e também no presente. A soberania estatal é invocada para a execução de atos desumanos remontando a ilícitos internacionais, como a edificação de muros, gerando a trágica desagregação familiar, e impedindo a livre circulação e até mesmo a própria sobrevivência de migrantes indocumentados e vulneráveis, em contraste chocante com o livre fluxo de capitais.

Os recursos financeiros à busca de lucro passam a ser tidos como sendo de muito maior importância do que as próprias vidas dos seres humanos. Há que reagir ao mundo tão sombrio, injusto e imprevisível como o atual. Passou a haver um abismo socioeconômico, que se aprofunda entre os países, e, no interior deles, entre segmentos da população, perdendo de vista que os Estados foram originalmente concebidos para a realização do bem comum, e não para a satisfação egoísta de interesses privados. O Estado existe para o ser humano, e não vice-versa. Não podem os Estados eximir-se de tomar medidas de proteção redobrada dos seres humanos que dela tanto necessitam, para enfrentar e superar a crescente vulnerabilidade dos mesmos. Há que ter sempre em mente todo um sistema de valores, e, em seu âmbito, o papel central reservado aos direitos inerentes à pessoa humana.

P. Sloboda – Professor, na sua opinião, qual foi o seu Voto mais importante?

A.A. Cançado Trindade: – Alguns de meus Votos Individuais têm sido marcantes, e reconhecidos como tendo feito história. Em meu livro de memórias da CtIADH, hoje em sua 5ª. edição (El Ejercicio de la Función Judicial Internacional – Memorias de la Corte Interamericana de Derechos Humanos, Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2018, pp. 1-452), eu os identifico e abordo a influência que vieram a ter na construção jurisprudencial atinente a determinados capítulos do direito internacional (e.g., personalidade e capacidade jurídicas internacionais da pessoa humana, direito fundamental de acesso à justiça, reparações de danos em todas as suas formas, regime jurídico próprio das medidas provisórias de proteção). Do mesmo modo, no tocante a meus Votos Individuais na CIJ, tenho do mesmo modo os examinado em meus estudos recentes publicados em distintos países. Alguns desses meus Votos encontram-se mencionados nesta entrevista.

P. Sloboda – Professor, durante a sua formação, quando o Senhor percebeu a sua vocação internacionalista? E o pensamento jusnaturalista esteve presente desde o início da sua formação?

A.A. Cançado Trindade: – Em 2013 concedi uma entrevista, por escrito, a uma Professora da Universidade de Valencia, Espanha, precisamente sobre minha formação e minha visão do direito internacional. O texto final, depois de meses de preparação, foi editado em forma de livro (Conversación con Antônio Augusto Cançado Trindade – Reflexiones sobre la Justicia Internacional, Valencia, Tirant lo Blanch, 2013, pp. 15-111). Aí assinalo que muito cedo, já em meus anos de formação, me conscientizei de minha vocação internacionalista, e me identifiquei inteiramente com o pensamento jusnaturalista, que marcou presença já em meus primeiros escritos. Na mesma entrevista abordei, inter alia, os dramas da atualidade diante dos tribunais internacionais, a relação entre o tempo e o direito, a relevância do acesso direto da pessoa humana à justiça internacional, a necessidade de realização desta justiça, agregada à gradual consolidação da humanização do direito internacional contemporâneo.

P. SlobodaQue livro o Senhor indicaria para um jovem estudante que leia essa entrevista?

A.A. Cançado Trindade: – Os pontos aos quais nos referimos nesta entrevista encontram-se por mim examinados em meu livro publicado recentemente em nosso país, já em sua 3ª. edição, intitulado Os Tribunais Internacionais e a Realização da Justiça, (Belo Horizonte, Edit. Del Rey, 2019, pp. 1-507). Neste livro, examino questões históricas, problemas da atualidade, e os avanços logrados, com base em minha própria experiência acumulada ao longo dos anos no âmbito dos tribunais internacionais contemporâneos.

P. SlobodaE um livro não jurídico?

A.A. Cançado Trindade: – Recomendo a leitura das tragédias gregas clássicas, escritas por Ésquilo (circa 525-524 a 456-455 a.C.), Sófocles (circa 497-496 a 406-405 a.C.), e Eurípides (circa 480 a 406 a.C.). Sempre as tenho lido e relido, ao longo da vida. Seus ensinamentos são perenes, o que em minha percepção as dota de atualidade sempre. Em sucessivos Votos Individuais meus, tanto na CtIADH como na CIJ, ao longo dos anos, encontram-se numerosas ponderações que neles inseri acerca dos ensinamentos das tragédias gregas clássicas, tais como os percebo.

Em meu bem recente e extenso Voto Arrazoado anexado ao Parecer da CIJ (de 25.02.2019) sobre as Consequências Jurídicas da Separação do Arquipélago de Chagos de Mauritius em 1965, por exemplo,referi-me, – como anteriormente em tantos outros Votos, – inter alia, à presença nas tragédias gregas da permanência do sofrimento humano imposto, e da presença do bem e do mal por toda parte. Com isto, constituem uma fonte inestimável de atenção constante ao destino dos seres humanos, sobretudo em face da imperfeição da justiça humana. Dadas a violência persistente, agravada pela vulnerabilidade das vítimas, e a propensão humana à crueldade, torna-se imprescindível a leitura dos escritos de Ésquilo, Sófocles e Eurípides: das antigas tragédias à contemporâneas, a existência humana tem estado sempre circundada pela tragédia.

P. SlobodaProfessor, muito obrigado.

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter