Em meio ao agravamento dos conflitos armados na Colômbia, os civis são os grandes perdedores

Através da divulgação do seu mais recente relatório sobre a Colômbia, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) revelou dados preocupantes relacionados ao país, buscando sintetizar os dados relevantes da região para as causas humanitárias, auxiliando não apenas na tomada de decisões dos agentes do CICV, mas também na difusão de informações acerca do conflito e da aplicabilidade do Direito Internacional Humanitário (DIH).

A disseminação de conhecimento em DIH é uma das obrigações dos Estados-Parte das Convenções de Genebra de 1949 e do CICV. Reforça-se que o contato da população civil com as regras permite que os afetados pelos conflitos notifiquem as autoridades, reportando violações e buscando assistência, facilitando a aplicação do DIH. Para os estudiosos da área, o panorama oferecido pelo relatório possibilita a identificação de novas estratégias e soluções para os problemas enfrentados. Para o CICV, a correta divulgação e esclarecimento acerca da sua atuação in loco é essencial, na medida em que seu trabalho depende da confiança dos atores

Apesar da ampla divulgação do DIH na Colômbia, as violações continuam altas. Tentativas de frear as violações foram feitas, com a inserção de um capítulo de violações de DIH no Código Penal e criações de Jurisdições para a Paz, mas a falta de interpretação clara das regras por parte da população e dos combatentes pode ser um fator contribuinte. Devido a essa situação, o CICV conta com times jurídicos que divulgam informações detalhadas e técnicas.

O território abriga atualmente sete conflitos armados não-internacionais, dos quais sucedem uma série de indicadores negativos, como aumento da violência e da organização das partes envolvidas, dificultando a proteção da população civil.. Ainda, houve um registro recorde de ataques a pacientes e pessoal da saúde, resultando em sete mortes em 2022, superando o total de seis mortes contabilizadas entre 2018 e 2021, além de violência sexual, deslocamentos internos massivos e número de vítimas de explosivos que aumentou, com 56 mortes entre 515 atingidos.

Esses números podem ser vistos com surpresa por alguns, tendo em vista o Acordo de Paz firmado em 2016, anunciado como o “fim dos confrontos”. Porém, o entendimento estabelecido à época incluía apenas as FARC e uma parcela dissidente deste grupo não aderiu ao acordo. Nessa perspectiva, grandes atores como o Exército de Libertação Nacional (ELN) permanecem ativos no conflito, apesar de existir um processo de negociação em curso com o propósito de findar a beligerância.

Em que pese a complexidade do cenário, uma indigesta certeza se impõe: as grandes vítimas do conflito são as pessoas que dele não tomam parte. Segundo o relatório, especificamente com relação às informações levantadas sobre o ano passado, os civis representam 54% dos atingidos por dispositivos explosivos, deste percentual as crianças responderam por 43%. Tais dados devem ser lidos não de maneira isolada, mas em diálogo com toda a sua cadeia de consequência, isso porque, não obstante os impactos decorrentes das sequelas físicas provocadas por estes ferimentos, materializados em imputações e outros danos graves à saúde corporal, a ansiedade constante enfrentada pela população civil, que teme a todo o momento a possibilidade da morte à espreita, resulta em verdadeira fragmentação do tecido social, uma vez que tolhe o direito às liberdades individuais e coletivas dessas pessoas, sobretudo aquelas que vivem nas zonas rurais e afastadas.

O exemplo mais claro disso são os deslocamentos forçados. Dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) já haviam registrado, em 2016, o total de 7,4 milhões de deslocados internos na Colômbia – aqueles que não atravessam fronteiras internacionais, mas permanecem no território do Estado. Segundo a estimativa de dados oficiais dispostos no relatório do CICV, só em 2022, deslocamentos em massa teriam atingido 58.010 pessoas no país. A atuação de atores armados nas proximidades de áreas povoadas e o constante uso de objetos civis com fins militares fazem com que comunidades inteiras sejam forçadas a abandonar suas casas, dada a manifesta situação de vulnerabilidade e a busca pela sobrevivência. Os números expostos no relatório anual apontaram, ainda, cerca de 123.220 casos de deslocamento individual, e 39.404 casos de confinamento – quando as pessoas não saem de suas casas em razão da atuação ou ameaça de atuação dos grupos armados, sendo impossibilitada a mobilidade e o acesso a bens essenciais à sobrevivência.

Em documento similar referente às consequências humanitárias dos conflitos armados na Colômbia durante o ano de 2021 (Humanitarian Challenges 2022: Colombia), o CICV já demonstrava preocupação pelo aumento do número de deslocados ou confinados em relação ao ano de 2020. A comparação entre os dois relatórios (2022 e 2023), contudo, não exibe números satisfatórios ou um abrandamento nos conflitos em andamento. Estimou-se que, em 2021, 52.880 pessoas tenham sido afetadas pelos deslocamentos em massa, 77.568 pessoas pelos deslocamentos individuais, e que 45.108 pessoas tenham sofrido confinamento. Logo, os números refletem a crescente vitimização de civis e, particularmente em relação ao decréscimo de casos de confinamento entre 2021 e 2022, não exibem a atenuação da violação de preceitos humanitários, mas demonstram a complexidade e a dinamicidade dos conflitos armados na Colômbia, cujas intensidades transitam entre diferentes localidades, em meio às disputas territoriais.

Além disso, o Relatório ainda assinala os problemas quanto à segurança dos trabalhadores da saúde e dos pacientes, principalmente nas áreas de Arauca, Nariño, Cauca, Norte de Santander, Putumayo, Chocó e Antioquia. Assassinatos, violência sexual, situações em que indivíduos armados utilizam-se de ambulâncias para manobras, remoção forçada de pacientes, bem como ameaças e chantagens também estão presentes. Essa situação, em conjunto com a detonação de explosivos perto de unidades de saúde, impede o normal funcionamento e o acesso das comunidades aos serviços médicos. Cerca de 38% dos casos de violência contra os profissionais são abarcados por regras de DIH. Dispositivos das Convenções de Genebra e Protocolos Adicionais I e II são claros ao proteger hospitais civis de qualquer tipo de ataque. Da mesma forma, as unidades de saúde, móveis ou não, de modo algum podem ser utilizadas como escudos ou ser atacadas.

Nesse sentido, ressalta-se que a Cruz Vermelha tem um papel crucial para a minimização dos problemas causados pelo conflito. Os resultados dos trabalhos de libertação de prisioneiros em custódia de grupos armados, unidades especiais para rastreamento de desaparecidos, e retorno de corpos aos familiares, são destacados pelo relatório. Além disso, o trabalho de educação de grupos armados sobre as regras de DIH por parte do CICV é extremamente importante e, embora não seja suficiente para erradicar violações, ao menos as reduzem.

Se em 2019 haviam cinco conflitos armados não internacionais classificados – e atualmente existem sete -, o cenário tornou-se ainda mais complexo no país. O aumento da violência em regiões ao sul evidencia que apesar da ampla presença do CICV, que beneficiou 334 mil pessoas em 2022, o descumprimento das normas humanitárias por parte dos atores do conflito segue ocorrendo. Ainda que o DIH tenha passado por um processo de intensa difusão na Colômbia, sendo regularmente citado nos meios de comunicação, a atuação estatal insuficiente dificulta a sua aplicação e, consequentemente, a redução das violações. Da mesma forma, há a falta de um entendimento técnico do funcionamento do DIH dentro das estruturas estatais, sendo que a sua resposta ante às violações é sobretudo normativa e centrada na criação de um corpo complexo de leis, porém com brechas para sua aplicação prática por conta da insuficiência de recursos empregados pela administração pública local.

Notoriamente, há empenho para o desenvolvimento das normas humanitárias na Colômbia. Contudo, a limitada implementação e respeito ao quadro legal vigente, seja pelo Estado ou pelos grupos armados não estatais, reflete a necessidade da construção de um novo paradigma ambicioso, capaz de projetar o direito internacional humanitário como imperativo incontornável em um cenário de conflito. Esse esforço deve, obviamente, apostar na conscientização da sociedade acerca da sua importância, o que já vem sendo feito no país. No entanto, mais do que isso, se revela como ponto crítico a sua tradução em resultados tangíveis. 

O relatório nos ensina que existe um abismo que separa duas Colômbias, aquela onde o poder estatal consegue implementar o seu exercício, e outra onde parece existir uma realidade intransponível. A capacidade de interligar estes dois mundos deve surgir através da construção de uma ponte composta por atores que consigam lidar com as peculiaridades deste terreno. Neste sentido, a fomentação e criação de novos grupos de negociadores que conversem diretamente com os grupos armados é fundamental, eles devem convencer os beligerantes que as lacunas encontradas – lidas como a ausência ou desrespeito às regras humanitárias – devem ser preenchidas com suas obrigações correspondentes; alimentos, medicamentos, assistência psicológica, construção de “cordões” que separem as hostilidades das áreas povoadas. Contudo, a forma pela qual essa mensagem é enviada aos grupos armados deve ser cuidadosa, de forma a esclarecer que não se trata de uma abordagem empreendida por uma das partes que lhe são antagônicas, seja o Estado ou outro grupo armado, mas sim a materialização de uma necessidade inescapável, preconizada pelas leis internacionais. 

Por Amandha Jobim, Danilo Portela Lima, Luiza Fernandes, Nathalia de Castro e Souza, Marcelynne Aranha e Valentina Reck de Azevedo.

  • A UFRGS IHL Clinic é a primeira Clínica brasileira voltada ao ensino, pesquisa e prática do Direito Internacional Humanitário (IHL, em inglês), também conhecido como direito do conflito armado.

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