Direito Internacional e Guerras Intermináveis

Coluna de Desarmamento e Não Proliferação de Armas Nucleares

Desde 1945 e até fevereiro passado não houve conflagrações bélicas em território europeu, com exceção de conflitos entre ex-repúblicas iugoslavas e operações militares levadas a cabo pela OTAN nos Bálcans na década de 1990.  Coreia, Vietnã, Oriente Médio, diversos países e regiões da África e até mesmo a América Latina tampouco estiveram imunes aos sofrimentos das guerras, muitas vezes causadas ou fomentadas por interesses políticos ou econômicos dos países centrais. A lista de conflitos armados em todo o mundo nas últimas décadas, alguns ainda em andamento, é extensa e trágica. Uma lucrativa indústria armamentista alimenta dissensões e combates.

Mesmo sem conflitos mais amplos, a Europa conheceu uma era de tensa expectativa durante as décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial. Duas áreas ideológica e politicamente adversárias, ambas possuidoras de armas nucleares, ocupavam espaços geográficos divididos por uma linha que se estendia de norte a sul desde o leste da Escandinávia, cortando a Alemanha em duas, prosseguindo até os Bálcans e englobando partes do Mediterrâneo e a Turquia: a oeste a OTAN [1], instituída sob a liderança dos Estados Unidos em 1949 e do lado oposto, na parte oriental do continente europeu, o Pacto de Varsóvia, capitaneado pela União Soviética. Apesar de ameaças mútuas e de algumas situações de crise, as duas alianças militares nunca se enfrentaram em guerra aberta e mantiveram um delicado equilíbrio de forças. Um novo tipo de hostilidade caracterizou esse período, que ficou conhecido como “Guerra Fria” e se estendeu até o colapso da URSS em 1989. A Guerra Fria não desapareceu; apenas mudou de forma. Seus componentes ideológicos aos poucos foram sendo substituídos pela busca de poder e influência na ordem internacional. 

Com o fim da URSS o Pacto de Varsóvia foi extinto em 1991. Em 2002, por iniciativa russa, foi fundada a Organização do Tratado de Segurança Coletiva [2]. Aos poucos a grande maioria dos países do antigo Pacto de Varsóvia gravitou para a esfera da OTAN, adotando formas de organização política e econômica baseadas nos princípios em voga em seus vizinhos do ocidente e ingressando na União Europeia, que hoje possui 27 membros. 

Oriente e Ocidente são noções relativas; dependem da localização do observador. Do ponto de vista político, econômico e militar o Ocidente europeu – cujo limite no pós-guerra era simbolizado pelo muro de Berlim – deslocou-se até quase as fronteiras da Federação Russa, sucessora da União Soviética [3]. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e a Rússia passaram a identificar cada qual no outro seu principal adversário. Ambos se empenham em uma nova corrida armamentista em busca de ilusória supremacia. A desconfiança mútua cresceu, mesmo depois que os dois presidentes declararam conjuntamente, em 2021, que “uma guerra nuclear não terá vencedores e jamais deve ser travada”. 

A Rússia considera o avanço da OTAN para leste uma grave ameaça a sua segurança. Alarmada com a possibilidade de que a Ucrânia, cujo território é contíguo ao seu, viesse a pleitear ingresso na OTAN, Moscou escolheu o caminho da agressão armada para afastar essa eventualidade. Por mais ponderáveis que possam ser seus receios, essa atitude contraria frontalmente as normas aceitas de direito internacional e os compromissos assumidos na Carta das Nações Unidas, notadamente os expressos nos artigos 2.3 e 2.4. Todos os membros da organização internacional se comprometeram a solucionar as disputas internacionais por meios pacíficos e a abster-se do uso da força contra a integridade territorial de outros estados, obrigações que também têm sido ignoradas por vários países ao longo do tempo. 

O tratado de criação da OTAN estabelece que uma agressão contra qualquer dos seus membros equivale a uma agressão a todos e justificaria uma resposta militar. Como a Ucrânia não é parte da OTAN, a aliança ocidental não está obrigada a intervir diretamente nas hostilidades, mas vários países dentre os que a compõem têm destinado quantidades crescentes de armamentos ao governo de Kiev. Ao mesmo tempo, adotaram severas sanções contra a Rússia, com o intuito de debilitá-la econômica e militarmente. 

Uma solução negociada parece distante. O custo humanitário da guerra é elevado, enquanto o resultado no campo de batalha permanece indefinido.  É difícil prever as consequências do conflito no longo prazo, mas seus efeitos sobre a produção mundial de alimentos básicos, a oferta de energia de origem fóssil e outros insumos começam a fazer-se sentir. Por sua vez, o arcabouço jurídico de segurança global resultante da Segunda Guerra Mundial se mostra inadequado para lidar com uma possível nova configuração geopolítica do mundo. 

O aparente objetivo imediato russo é assegurar a ligação terrestre com a península da Crimeia, anexada em 2014 [4], e estabelecer controle sobre o litoral ucraniano do Mar Negro. As forças ucranianas tiveram sucesso em repelir invasores no norte do país, ao longo da fronteira com Belarus, e mantêm controle sobre as regiões central e leste, inclusive a capital Kiev. Por sua vez, o presidente da Ucrânia deixou claro que não pleiteará ingresso na aliança militar ocidental, embora não pareça disposto a renunciar à soberania sobre partes de seu território. Até momento, os contatos diplomáticos entre ambos os países têm-se limitado a providências de caráter humanitário, claramente insuficientes para evitar ou minorar o sofrimento das populações civis.  

A ansiedade e tensão voltaram a dominar a Europa, enquanto cresce em todo o mundo a preocupação com os rumos do conflito. O principal pesadelo é o risco de uma escalada militar que possa levar ao uso de armas nucleares. Existem hoje nos arsenais russos e nos da OTAN armas atômicas denominadas “táticas”, isto é, de potência relativamente baixa, desenvolvidas para serem usadas em operações de alcance limitado. Mesmo assim, essas armas possuem capacidade explosiva muitas vezes maior do que as utilizadas para arrasar Hiroshima e Nagasaki, e seu uso poderá provocar retaliações semelhantes por parte do adversário, numa escalada de resultados imprevisíveis.    

As forças nucleares estacionadas em território russo e o poderio bélico que pode vir a ser utilizado pela OTAN são mais do que suficientes para assegurar danos catastróficos em caso de conflito direto. Além disso, Rússia e Estados Unidos contam como mísseis nucleares intercontinentais supersônicos, de duvidosa interceptação pelos sistemas de defesa existentes, cujo uso poderá resultar na completa destruição mútua, com consequências irreversíveis para o restante do planeta.  Embora até agora o capítulo russo-ucraniano da confrontação entre a Rússia e o Ocidente tenha dependido exclusivamente do uso de armamentos convencionais, persistem ameaças de retaliação nuclear diante de um envolvimento mais direto de países da OTAN nas hostilidades. 

As grandes convulsões internacionais costumam produzir novos padrões de comportamento e instrumentos jurídicos inovadores, assim como formas mais avançadas de governança global. Isso ocorreu em várias fases anteriores da história não há motivo para duvidar de que assim continuará a ser. Na grave e imprevisível situação atual, o mundo pode estar à beira da catástrofe mas pode também encontrar-se no limiar de uma nova e mais saudável configuração, com maior segurança para todos e  melhor distribuição dos frutos do progresso material. No momento, o mais importante é evitar o perigo da conflagração nuclear e buscar um cessar-fogo que leve à negociação de um acordo de paz. 

Uma paz justa e duradoura somente pode ser alcançada mediante entendimentos que levem em consideração as legitimas preocupações de segurança de todos os interessados. Os instrumentos de direito internacional que seguem à disposição dos membros da comunidade internacional foram criados precisamente para afastar o flagelo da guerra. A competição em busca de armamentos de potência explosiva cada vez mais destruidora constitui o caminho mais direto para a perpetuação das rivalidades e desconfianças que contribuem para gerar e alimentar guerras intermináveis. 

 Não há justificativa lógica e moral para que a História seja apenas uma sucessão de conflitos com armas cada vez mais mortíferas. A humanidade precisa compreender que a observância das normas de direito internacional é a garantia da segurança de todos.

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[1] A OTAN hoje é composta por 30 estados: Albânia, Alemanha, Bélgica, Bulgária, Canadá, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Estados Unidos, Eslovênia, Espanha, Estônia, França, Grécia, Holanda, Hungria, Inglaterra, Islândia, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Macedônia do Norte, Montenegro, Noruega, Polônia, Portugal, República Tcheca, Romênia e Turquia.

[2] Os membros atuais da OSTC são Armênia, Belarus, Casaquistão, Quirguistão. Rússia. Tadjiquistão e Sérvia.

[3] A Federação Russa foi criada em 1991

[4] A anexação da Crimeia gerou controvérsia que dura até hoje.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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