De Tambaú para Haia: os 100 anos do texto de José Américo de Almeida sobre a Corte Permanente de Justiça Internacional

Como aconteceu isto? Por que emergi de minha obscuridade, do isolamento compulsório da praia de Tambaú para esta evidência?

Era 28 de junho de 1967 quando o intelectual José Américo de Almeida proferiu esse questionamento em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras1, sucedendo Maurício Campos de Medeiros.

Foi a primeira vez, na história dos discursos da ABL, que se fez menção à praia de Tambaú. Voltaria a ser mencionada na oratória do acadêmico Aurélio de Lyra Tavares2 e do escritor, e também ex-presidente da república, José Sarney, o qual reservou parte da sua fala à história de José Américo, a quem sucedeu na cadeira de número 38 da Academia. 

A referência a Tambaú é característica do pensamento americista. Aquele pedaço de praia, aquela enseada única, hoje dividida em Tambaú e Cabo Branco, no silêncio de seus coqueirais, foi o símbolo da sua solidão. Também é o local no qual a história do escritor se fez museu, biblioteca e arquivo, com a Fundação Casa de José Américo. É lá, onde foi a sua residência rodeada de varandas, que se preserva hoje o pioneiro texto que, há cem anos, Américo publicou sobre a Corte de Haia. 

O velho casarão revela parte importante da dimensão humana de um dos personagens mais importantes das letras e da história nacionais, bem como algo sobre como o “Solitário de Tambaú” sentia os problemas universais e as imagens poéticas locais. Essa paradoxia entre local, regional, nacional e universal foi uma constante na vida e na obra de José Américo de Almeida, marcadas pelas constantes intersecções entre o atuante homem público e o introspectivo homem das letras, o jurista que especulava sobre temas do direito nacional e internacional e o literato preocupado com problemas sociais locais.

Em escrito precursor, Américo foi um dos primeiros juristas a cuidar, em nossa imprensa, da Corte Permanente Internacional de Justiça, o tribunal criado pela Liga das Nações, na cidade holandesa de Haia, na sequência da Primeira Grande Guerra. Os seus apontamentos encontram-se em um artigo centenário, publicado originalmente na revista “Era Nova”, no qual tratou, em 01 de outubro de 1921, da eleição do jurista Rui Barbosa para a função de magistrado da referida corte. Rui faleceu em 1923, antes de atuar em qualquer processo. O paraibano Epitácio Pessoa foi eleito e empossado, na sequência, como o nosso primeiro magistrado internacional. 

José Américo viveu uma vida de pioneirismos. Não à toa, publicou diversos artigos na “Era Nova”, periódico marcado pelas ideias de vanguarda, criado ainda em março de 1921 na cidade paraibana de Bananeiras3. Com produção posterior na então Cidade de Parahyba do Norte, atual João Pessoa, aquela revista, em suas páginas destacadas por prodigiosas fotografias, procurou inspirar futuro e modernidade até a sua última publicação, no ano de 1926. Já a primeira edição, por exemplo, trazia na capa a senhora Maria do Céu Silva ao volante de um automóvel!4 

Bacharel em ciências jurídicas pela histórica Faculdade de Direito do Recife, José Américo ocupou distintos cargos na estrutura pública nacional, chegando a ser por duas vezes ministro de Getúlio Vargas – na primeira, sob a sombra da Revolução de 1930, e, na segunda, durante o período democrático, em 1953. Também foi promotor público, procurador-geral do estado, secretário de segurança pública, senador, governador da Paraíba, primeiro reitor da, hoje, Universidade Federal da Paraíba e ministro do Tribunal de Contas da União5

No ano de 1926, organizou, ao lado de outros intelectuais, o Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo, na cidade do Recife. Destaca-se desse episódio a publicação do “Manifesto Regionalista”, de Gilberto Freyre, no qual se defendeu uma percepção de Brasil como conjunto de regiões, mas que não deveria esquecer a dimensão global6:

A maior injustiça que se poderia fazer a um regionalismo como o nosso seria confundi-lo com separatismo ou com bairrismo. Com anti-internacionalismo, anti-universalismo ou anti-nacionalismo. Ele é tão contrário a qualquer espécie de separatismo que, mais unionista que o atual e precário unionismo brasileiro, visa a superação do estadualismo, lamentavelmente desenvolvido aqui pela República – este sim, separatista – para substituí-lo por novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os Estados, se completem e se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira organização nacional.

Em 1980, outro jurista paraibano, o Prof. Paulo Bonavides, escreveria na tradicional “Revista de Informação Legislativa do Senado Federal” um artigo sobre o “o caminho para um federalismo das regiões”.

José Américo tinha pouco mais de 40 anos quando publicou, em 1928,  o seu mais famoso romance, “A Bagaceira”, marco inaugural do romance social regionalista. O livro abre com uma espécie de credo estético americista, intitulado “Antes que me falem”, em que o escritor pontua: “O regionalismo é o pé-do-fogo da literatura… Mas a dor é universal, porque é uma expressão de humanidade.”7 Jurista de sólida formação na Escola do Recife, o tema da justiça – questão sem dúvida universal – perpassa todo o romance. A certa altura, José Américo é conclusivo: “O mau juiz é o pior dos homens. Se o juiz tiver de pecar, seja, pelo menos, humano. Peque pelo amor que é a liberdade e não pelo ódio que é a injustiça mais grosseira…”

Talvez por isso mesmo, Américo tenha louvado tanto, naquele seu artigo de 1921, a eleição de Rui Barbosa para juiz da Corte de Haia. No texto centenário que a seguir se publica, Américo refletiu – ainda no calor dos acontecimentos – sobre os fundamentos que permitiam o funcionamento de uma jurisdição internacional e os muitos e inegáveis méritos de Rui para o posto de magistrado da corte. Ademais, ressaltou didaticamente os fundamentos e as finalidades do órgão, sua estrutura, competências e funcionamento. Rememorou, enfim, seus tempos de estudante na Casa de Tobias Barreto e comentou as contribuições teóricas do jurista russo Kamarowski e do italiano Pasquale Fiore para o funcionamento pleno de um tal tribunal. 

São as impressões de quem um dia desceu a Serra de Areia e se instalou nas areias de Tambaú, e talvez por isso era capaz de enxergar além-mar. 

A Corte Permanente de Justiça Internacional não se confunde com a atual Corte Internacional de Justiça, que a sucedeu no Palácio da Paz em Haia. Tratam-se de tribunais definidos pelo desenho de distintos contextos históricos. Enquanto a Corte Permanente foi marcada pelo período entre as duas grandes guerras mundiais, a Corte Internacional de Justiça surge  em 1946 reinventada após a Segunda Grande Guerra. Apesar do curto período de funcionamento, entre os anos de 1922 e 1940, a Corte Permanente promoveu uma importante influência no Direito Internacional. Ainda hoje são invocados casos memoráveis da Corte Permanente nas discussões da atual Corte de Haia8.

A CPJI é reconhecida como a primeira jurisdição permanente de direito internacional geral. O belo palácio que a acolheu já era ocupado pela Corte Permanente de Arbitragem que, apesar do nome “permanente” não se pode chamar de uma jurisdição permanente, já que se trata apenas de um Secretariado que gere um repertório de árbitros a serem convocados para casos específicos constituindo cortes arbitrais ad-hoc. 

Por essa razão, ela foi o projeto pioneiro de exercício jurisdicional internacional. É possível reconhecer que todas as jurisdições permanentes que hoje existem, como o Tribunal do Mar, o Tribunal Penal Internacional, as Cortes de Direitos Humanos, dentre inúmeras outras instituições regionais ou quase-jurisdicionais devem algo à sua existência. Parece-nos claro que a própria Corte Internacional de Justiça ganhou muito de sua predecessora e tem ido mais longe, justamente pelos aprendizados que trouxeram o encerramento desta. 

Nas próximas linhas, a transcrição do artigo centenário de José Américo sobre a Corte Permanente de Justiça Internacional.

A CORTE DE JUSTIÇA INTERNACIONAL

José Américo de Almeida

(in Era Nova, a. 1, n. 13, 1° de Outubro de 1921, arquivos da FCJA)

Da intervenção do Brasil na grande guerra não nos advieram vantagens materiais compensadoras sequer dos pequenos sacrifícios que nos custou essa atitude, apesar da diligência com o que têm sido pleiteado os nossos interesses, nos conselhos que decidem a sorte dos beligerantes.

É verdade que o nosso concurso representou antes um movimento idealista de solidariedade com a causa da civilização, do que o impulso dos sentimentos subalternos de vingança ou de ambição.

Mas, se não alcançamos ainda o justo valor das indenizações e os nossos horizontes não se dilataram ao augúrio triunfal de copiosas prosperidades, temos, em câmbio, granjeado no conserto internacional uma situação de recrescente prestígio.

Essas conquistas morais tocam particularmente o orgulho de nossa nacionalidade e favorecem a nossa hegemonia política na América do Sul.

A eleição de Rui Barbosa para a Corte Permanente da Justiça Internacional é mais uma gloriosa afirmação de nossa atual influência nos destinos do mundo.

Esse acontecimento repercutiu em todo país com uma vibração desusada, tamanha é a honra que nos foi atribuída pelos condutores de um novo pensamento de paz universal.

Ainda bem que correspondemos a essa confiança em nossa cultura geral com um nome que, pela  extensão do seu valor, excede às nossas aptidões e se incorpora ao patrimônio espiritual da humanidade.

Todos nós folgamos de ver o pontífice de nossa intelectualidade deslocado de uma asfixiante espera de ação, em que o seus poderosos recursos se apoucavam, às vezes, na verbiagem das contendas estéreis, para as culminâncias de uma magistratura de jurisdição mundial. Se o Brasil tem sido surdo à sabedoria dos seus avisos e as suas faculdades de estadista têm sido relegadas dos nossos postos governamentais, saibamos, ao menos, aproveitá-lo para “ uso externo “, certos de que a sua atividade nessas elevadas relações da inteligência será, nas caminhadas do saber, a mais luminosa projeção dos nossos créditos.

Organização de jurista, por excelência, com um senso incontrastável de exegese, servido pela paixão da justiça, Rui Barbosa terá, longe dos embates de nossa vida interna, no exercício dessas eminentíssimas funções, uma esclarecida e reta consciência de juiz que será o maior ornamento do seu tirocínio público.

O seu voto de oráculo será uma segurança dessa aspiração de paz que senhoreia a alma contemporânea.

A eliminação da guerra, pelo estabelecimento de um tribunal permanente, que assegurasse o respeito e a sanção das regras do direito internacional, foi um sonho de muitos filósofos e publicistas. Uns, como Bentham, pretendiam atribuir a essa jurisdição um simples valor moral; outros, porém, encareciam a organização de um poder sancionador, encarregado de aplicar as medidas coercivas. Fiore não acreditava na eficácia dessa judicatura, a menos que a humanidade estivesse organizada sob a forma de uma confederação de Estados, com unidade de codificação.

Martens desdenhava a ideia pela impossibilidade da criação de um exército internacional, incumbido de apoiar a execução das sentenças do tribunal. O Conde Kamarowski, professor em Moscou, o mais entusiastas propugnador dessa Justiça das Nações, também deixava sem solução o seu ponto mais delicado: A execução dos arestos.

Mas o Pacto da Sociedade das Nações inscreveu no seu art. 14 esse princípio pacifista: “o Conselho será encarregado de preparar um projeto de tribunal Permanente de Justiça Internacional e de submetê-lo aos membros da Sociedade. Esse Tribunal tomará conhecimento de todos os litígios de caráter internacional que as Partes lhe submetam. Dará também pareceres consultivos sobre toda a pendência ou todo ponto que lhe submeta o Conselho ou Assembleia.”

A Assembleia da Liga, em que o Brasil se fez representar pelos srs. Rodrigo Octávio, Raul Fernandes, e Gastão da Cunha, reunida em Genebra, aprovou, em uma resolução 13 de dezembro de 1920, o projeto de Estatuto da Corte Permanente de Justiça, cuja adoção foi submetida aos seus membros, sob a forma de protocolo.

A jurisdição foi aceita por uns sem reserva e por outros com a condição de reciprocidade.

Com a entrada de um patrício nosso para esse Pretório das Nações, é natural que haja de nossa parte curiosidade em conhecer os moldes de sua organização.

É um corpo de magistrados independentes, eleitos pelo Conselho e pela Assembleia da Liga entre pessoas que gozem de mais alta consideração moral e reúnam as condições exigidas em seus respectivos países para o exercício das mais elevadas funções judiciárias ou que sejam jurisconsultos de notória competência em Direito Internacional.

A Corte é composta de quinze membros: onze juízes titulares e quatro suplentes. São eleitos por nove anos e reelegíveis. Não podem eles exercer nenhuma função política ou administrativa, salvo os suplentes, fora do exercício. Gozam os ministros de privilégios e  imunidades diplomáticas.

O presidente e o vice-presidente são eleitos por três anos.

A sede da Corte é fixa em Haia, onde o seu presidente é obrigado a residir. O juiz que não residir na sede terá ajuda de custo para a viagem de ida e volta.

O exercício das funções será determinado por um regimento interno. Será adaptado de preferência o processo sumário, com instrução escrita e discussão oral.

Haverá uma sessão em cada ano, começando a 15 de junho e prolongando-se até a conclusão dos trabalhos. Poderão ser convocadas sessões extraordinárias.

A Corte dividir-se-a em câmaras especiais com a discriminação das matérias do respectivo julgamento.

A sua competência abrange todas as hipóteses submetidas pelas partes, bem como os casos especiais previstos pelos tratados e convenções em vigor. Não dependem de seu funcionamento a Corte de Arbitragem, organizada pelas Convenções de Haia, de 1899 e 1907, nem os Tribunais de Árbitros aos quais os Estados têm a faculdade de confiar a solução dos seus litígios.

A Corte aplicará: as convenções internacionais, quer gerais, quer especiais, que estabelecem regras expressamente reconhecidas pelos Estados em litígio; o costume internacional, quando tiver o carácter de uma prática geral; os princípios gerais de direito aceitos pelas nações civilizadas e, com reserva do art. 59 dos estatutos, as decisões judiciárias e a doutrina dos publicistas mais qualificados, como meio auxiliar de determinação de regras de direito. Tem também a faculdade, se as partes acordarem, de julgar ex aequo et bono.

As línguas oficiais dos seus trabalhos são a francesa e a inglesa.

As decisões da corte serão obrigatórias para as partes litigantes e não admitiram recursos.

As despesas com os processos serão custeadas pelas partes e com a corte pela sociedade das Nações.

O presidente perceberá anualmente 15.000 florins holandeses e mais uma representação de 45.000 florins.

Cada juiz titular terá ordenado anual de 15.000 florins e mais 200 X 100 por dia de trabalho, até o máximo de 20.000 florins.

Desvanece-nos sobremodo ver o Brasil contribuir com um elemento dessa sábia organização para a conquista da paz universal.

Uma nota final: Sabemos todos que, além de Rui Barbosa e Epitácio Pessoa, outros brasileiros já exerceram funções na Corte de Haia, sempre honrando a tradição brasileira de juristas com perfil de enorme competência e profundo senso de justiça. Relendo o texto num presente em que José Américo já é parte de nosso passado, somos levados a conhecer um pouco da euforia que sentiu pelo surgimento daquele órgão até então sui generis no Direito Internacional e perceber o valor das conquistas do Direito das Gentes.  (Os autores)

_______________________

¹ ALMEIDA, José Américo de. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 1967.

² TAVARES, Aurélio de Lyra. Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, 1970.

³ SOUZA, Vitória Diniz. A violência simbólica e o antifeminismo: uma análise da revista Era Nova (Parahyba, 1920). Aedos, Porto Alegre, v. 11, n. 24, p. 367-387 , Ago. 2019, p. 371.

4 ABRANTES, Alômia. Escritas e Inscritas: mulheres na imprensa dos anos 1920. In: ABRANTES, Alômia e NETO, Martinho Guedes dos Santos. Outras Histórias – Cultura e Poder na Paraíba (1889-1930). João Pessoa: UFPB, 2010

5 BRANDÃO, Nilvanda Dantas. Trajetória intelectual de José Américo: contribuições para o pensamento social brasileiro. 2012. 232 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012, p. 222.

6 FREYRE, Gilberto. Manifesto regionalista. 7.ed. Recife: FUNDAJ, Ed. Massangana, 1996. p.47-75.

7 ALMEIDA, José Américo de. A bagaceira. 37. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004, p. 3

8 SPIERMANN, Ole. International legal argument in the Permanent Court of International Justice: the rise of international jusdiciary. Cambridge University Press: Cambridge, 2004.

  • Pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu (EUI), em Florença (Itália). Árbitro da Court of Arbitration for Art (CAfA), do sistema de solução de controvérsias da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. Professor de Direito da Arte da Universidade Federal da Paraíba, Procurador-Chefe da Força-Tarefa do Patrimônio Cultural do Ministério Público de Contas da Paraíba. Foi Professor Visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Turim (Itália). Presidente do Conselho Superior da ILA Brasil.

  • Alessandra Franca é Professora de Direito Internacional da Universidade Federal da Paraíba, Doutora em Direito Internacional pela Universidade de Genebra. Membro fundadora do LABIRINT (Laboratório Internacional de Investigação em Transjuridicidade). Foi Visiting Fellow na Universidade de Torino e no Tribunal de Justiça da União Europeia.

  • Graduando do Curso de Direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador do Laboratório Internacional de Investigação em Transjuridicidade (LABIRINT). Coordenador do Grupo de Estudos Armorial: Direito e Literatura. Monitor de Hermenêutica Jurídica no CCJ/UFPB.

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