Caso ROE v. WADE: os parâmetros para a realização do aborto nos Estados Unidos

O caso ROE v. WADE, julgado pela Suprema Corte Estadunidense, em 22 de janeiro de 1973, voltou a ser objeto de debates recentes nos Estados Unidos após o vazamento de informações no sentido de que havia a possibilidade de que esse precedente judicial fosse modificado pela nova composição da Corte, o que, de fato, veio a ocorrer em junho de 2022. 

O precedente teve origem a partir do ajuizamento de uma ação coletiva no condado de Dallas, estado do Texas, por Jane Roe, uma mulher solteira que estava grávida e não pretendia levar a gestação adiante. Na ação, Roe contestava a constitucionalidade das disposições dos artigos 1191, 1192, 1193, 1194 e 1196 do Código Penal daquele estado que proibiam a realização do aborto, exceto na hipótese de haver orientação médica indicando a necessidade do procedimento para salvar a vida da gestante. Foi admitida na ação a intervenção do médico licenciado James Hubert Hallford que tinha interesse no processo por já responder a ações penais pela realização de procedimentos abortivos. O Tribunal Distrital, composto por três magistrados, ao julgar o caso, declarou que as normas estaduais proibitivas do aborto eram nulas por serem muito vagas e, por isso, violarem os direitos dos postulantes constantes na Nona e na Décima Quarta Emendas da Constituição Estadunidense.

Nesse sentido, a Nona Emenda refere que a enumeração de certos direitos, na Constituição, não deve ser interpretada de forma taxativa para negar ou menosprezar outros direitos do povo não expressamente previstos no texto constitucional. Já a Décima Quarta Emenda estabelece, em sua primeira seção, que todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas ao estado em que residem são cidadãs dos Estados Unidos e do respectivo estado. Assim, nenhum estado fará ou aplicará qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos quanto aos direitos à vida, à liberdade ou à propriedade, sem o devido processo legal. Além disso, nenhum estado poderá negar a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição igual proteção da lei. 

Houve a compreensão de que, embora os estados possam ter interesses legítimos no sentido de proteger a potencialidade de vida humana, a lei criminal estadual, que não leva em consideração o estágio da gestação e outros interesses envolvidos na questão, viola tanto o direito à privacidade, que incluiria a possibilidade de a mulher interromper a gestação, como a cláusula do devido processo legal. Salienta-se que a legislação criminal do Texas sobre aborto, que foi considerada inconstitucional, se assemelhava às legislações de outros estados norte-americanos em vigor há mais de um século. Na decisão, o Tribunal considerou uma série de argumentos trazidos pelos postulantes e pelo estado do Texas. Dentre eles, a necessidade de se observar a história da medicina legal e o avanço do conhecimento e das técnicas médicas. Para os magistrados, a Constituição é feita para pessoas de visões fundamentalmente diferentes, por isso as opiniões individuais sobre determinadas matérias não podem se sobrepor ou influenciar o julgamento sobre a compatibilidade ou não das leis estaduais, que as incorporam, com a Constituição dos Estados Unidos.

Em síntese, o Tribunal Distrital considerou que o direito fundamental das mulheres solteiras e das pessoas casadas de escolherem se querem ter filhos é protegido pela Nona e pela Décima Quarta Emendas, e que os dispositivos legais proibitivos do aborto no Texas eram nulos por serem inconstitucionalmente vagos. Assim, o Tribunal Distrital estabeleceu os seguintes critérios para a realização do aborto:  1) No primeiro trimestre da gestação, a decisão sobre a realização do aborto deve ser da gestante auxiliada pelo seu médico; 2) Após o primeiro trimestre de gestação, o estado, ao promover seu interesse pela saúde da mulher, pode, se assim o desejar, regular o procedimento de aborto de forma a proteger a saúde materna; 3) A partir do momento em que o desenvolvimento do feto alcançar a condição de viabilidade, ainda que por meio de incubadora artificial, o Estado, ao promover seu interesse na potencialidade da vida humana, poderá, se escolher, regular e até proibir o aborto, exceto quando necessário, em julgamento médico apropriado, para a preservação da vida ou da saúde da mãe. O estado pode definir que somente um médico habilitado poderá realizar um aborto. 

A Suprema Corte Estadunidense, por sua vez, acompanhou as conclusões do Tribunal Distrital de Dallas, no estado do Texas, optando por adotar uma posição intermediária entre a demanda dos postulantes e a justificativa do estado. Os postulantes pretendiam reivindicar um direito absoluto ao aborto que impedisse qualquer imposição estatal de penalidades criminais. Já o estado apelado argumentava que a determinação do estado em reconhecer e proteger a vida pré-natal desde e após a concepção constituía um interesse estatal imperioso. 

A Suprema Corte observou, analisando a jurisprudência de diferentes estados sobre a questão, que a maioria desses Tribunais concordou que o direito à privacidade é amplo o suficiente para abranger a decisão do aborto; que esse direito fundamental, no entanto, não é absoluto e está sujeito a algumas limitações; e que, em algum momento, os interesses do estado quanto à proteção da saúde, dos padrões médicos e da vida pré-natal se tornam dominantes. Além disso, pontuou que a Constituição Estadunidense ao se referir a “pessoa” na Décima Quarta Emenda considera como cidadãos as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos. Na Constituição, em todas as vezes em que a expressão “pessoa” é empregada é para se referir a condição pós-natal, dos nascidos com vida, e não pré-natal. Considerando, também, que durante a maior parte do século XIX as práticas de aborto legal predominantes eram muito mais livres do que na década de 1970, a Corte entendeu que a palavra “pessoa”, usada na Décima Quarta Emenda, não incluía o nascituro.

O estado do Texas insistiu no argumento de que a vida começa na concepção e de que o estado tinha um forte interesse em proteger essa vida desde e após a concepção. No entanto, a Suprema Corte compreendeu que não era preciso resolver a difícil questão de se definir em que momento a vida humana começa, uma vez que não havia consenso na medicina, na filosofia e na teologia. Além disso, os novos dados embriológicos indicam que a concepção é um “processo” ao longo do tempo, e não um evento. Já são, inclusive, admitidas novas técnicas médicas, como a extração de óvulos, a “after pílula” ou pílula do dia seguinte, a implantação de embriões, inseminação artificial e até úteros artificiais. Salienta-se que os nascituros foram reconhecidos como adquirentes de direitos ou interesses por meio de herança, por exemplo, mas a perfectibilização dos interesses envolvidos depende do nascimento com vida. Em suma, os nascituros nunca foram reconhecidos na lei como pessoas em todo o sentido. 

Assim, a Suprema Corte Estadunidense fixou o entendimento de que o aborto seria permitido até o terceiro mês de gestação por se tratar do termo convincente da gestação de acordo com o conhecimento médico. Depois desse período, cada estado poderia regular o procedimento de aborto na medida em que a regulamentação se refira razoavelmente à proteção da saúde materna, incluindo questões como as exigências de qualificação tanto dos profissionais habilitados como dos locais autorizados (hospitais ou clínicas). Já para o estágio posterior à viabilidade (possibilidade de vida extrauterina), o estado ao promover seu interesse na potencialidade da vida humana pode, se assim o desejar, regular e até mesmo proibir o aborto, exceto quando necessário, em condições apropriadas e por julgamento médico, para a preservação da vida ou da saúde da mãe. Como se observa, a Suprema Corte Estadunidense julgou a questão levando em consideração critérios científicos tanto do ponto de vista do desenvolvimento do conhecimento médico como do ponto de vista da interpretação dos direitos fundamentais das mulheres previstos na Constituição, que não poderiam ser restringidos pelos seus intérpretes ou por motivações ideológicas. Trata-se de um marco na discussão sobre os limites e as possibilidades de realização do aborto. Salienta-se que em outro caso julgado pela Suprema Corte Estadunidense, em 1992 (Planned Parenthood v. Casey), o direito ao aborto foi mantido como decorrência do direito constitucional à liberdade, protegido pela Décima Quarta Emenda. No entanto, essa decisão já havia ampliado as possibilidades de que os estados estabelecessem certos requisitos para a realização do aborto ainda no primeiro trimestre de gestação. Ocorre que o recente caso Dobbs v. Jackson Women’s Health, julgado em 2022, anulou os dois precedentes anteriores, permitindo que cada estado legisle de forma mais livre sobre a questão do aborto. Em apertada síntese, os magistrados consideraram constitucional a lei do estado do Mississippi que só admite o aborto, após o período de 15 semanas de gestação, quando há emergência médica ou em caso de anormalidade fetal. O argumento central dos magistrados foi no sentido de que a Constituição Estadunidense não ampara de forma expressa um direito constitucional fundamental ao aborto e que os precedentes anteriores, em especial o caso Roe v. Wade, ao estabelecerem um conjunto de detalhado de regras, colocaram-se no lugar dos legisladores, violando o processo democrático. Com a devolução desse poder aos estados, não surpreende o receio gerado pela mera possibilidade de alteração das normas vigentes sobre o aborto, levando à sua criminalização generalizada em pleno século XXI.

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