A Competência da Corte Internacional de Justiça sobre a Convenção de Discriminação Racial: os casos Armênia e Azerbaijão

Introdução

Em 12 de novembro de 2024, a Corte Internacional de Justiça proferiu os julgamentos de objeções preliminares nos casos paralelos entre Armênia e Azerbaijão, instituídos em 2021 com base na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD). Com a rejeição da maior parte das objeções apresentadas pelos Estados demandados em ambos procedimentos, os casos receberão julgamento de mérito, seguindo o proferido no caso entre Ucrânia e Rússia em janeiro de 2024, também com base na CERD. O presente post, porém, foca na decisão de objeções preliminares e em sua contribuição para a delimitação do escopo jurisdicional da Convenção ratione materiae e, sobretudo, ratione temporis, estaque pode ser estendida a cláusulas compromissórias de outros tratados, crescentemente utilizadas para acionar a jurisdição da Corte.

Os casos

Em 16 de setembro de 2021, a Armênia instituiu procedimento perante a CIJ contra o Azerbaijão para discutir supostas violações da Convenção de Discriminação Racial pelo demandado, sob a alegação de que este perpetrava campanha de discriminação contra indivíduos de origem étnica ou nacional armênia por décadas, o que teria sido agravado pela deflagração da segunda guerra de Nagorno-Karabakh em 2020, após décadas de cessar-fogo com alguns incidentes bélicos na região. De maneira análoga, sete dias depois da petição armênia, o Azerbaijão apresentou caso à Corte sob o mesmo fundamento, alegando a prática de limpeza étnica pela Armênia contra azerbaijanis, também exacerbada durante o conflito iniciado em 2020 na região que o Azerbaijão denomina Garabagh.

Desde então, foram proferidas numerosas ordens envolvendo medidas provisórias em ambos os procedimentos – cinco no que tem como demandante a Armênia e duas no instituído pelo Azerbaijão – até a decisão sobre as objeções preliminares em novembro de 2024.

As decisões

Armênia v. Azerbaijão

            No caso iniciado pela Armênia, o Azerbaijão sustentou que as alegações apresentadas não eram admissíveis porque a demandante não realizara negociações prévias, requeridas pelo artigo 22 da CERD como condição ao acionamento da Corte. Argumentou, ainda, que a CIJ não possuía jurisdição ratione materiae sobre o suposto cometimento de assassinatos, tortura, tratamento desumano, detenção arbitrária e desaparecimento de armênios étnicos, por se tratarem de violações regidas pelo direito humanitário que estão fora do escopo da Convenção.

            A primeira objeção foi rejeitada pela Corte sob o fundamento de que houvera negociações diretamente relacionadas ao objeto da demanda jurisdicional, conforme demonstrado pelas trocas entre os dois Estados com menção explícita à CERD, cujo caráter negocial não é afastado por se tratarem de discussões sobre como os argumentos seriam apresentados e os diálogos estruturados pelas partes. Em adição, constatou a CIJ que as negociações se tornaram inúteis, porque as posições dos dois lados não mudaram ao longo das trocas entre eles.

            A segunda objeção do requerido foi rechaçada com base na complementaridade entre o direito internacional humanitário e a CERD, cuja aplicação persiste em momentos de conflito, com destaque para o fato de que a proteção conferida pela Convenção não distigue entre combatentes e civis nesse contexto. Nesse sentido, em relação à prática de assassinatos, tortura e tratamento desumano, apesar de reconhecer que poderiam estar fora do escopo material da CERD caso explicações alternativas – não-raciais – para essas condutas fossem demonstradas, a Corte ressaltou o caráter preliminar do presente julgamento, em que bastava aferir se os atos alegados pela demandante seriam capazes de constituir violações da Convenção. Desse modo, constatou que caberia ao mérito a análise de se as provas apresentadas pela requerente realmente evidenciavam o caráter discriminatório das medidas do requerido. Na presente etapa do procedimento, porém, a mera observação de que havia uma atmosfera de discursos e sentimentos discriminatórios contra armênios étnicos no Azerbaijão bastava para demonstrar que os atos evocados pela demandante poderiam se adequar ratione materiae à Convenção. Assim, concluiu pela admissibilidade das alegações da Armênia e pela existência de jurisdição material sobre elas. Em seguida, aplicou o mesmo raciocínio à prática de detenções arbritárias e de desaparecimentos forçados, afastando também quanto a estes fatos a objeção preliminar suscitada.

            A constatação do cumprimento da pré-condição de negociação pareceu relativamente incontroversa entre os juízes da Corte, dada a votação quase unânime, com dezesseis votos a favor e apenas um contrário, do juiz ad hoc Koroma, e a ausência de discussão do tema nas opiniões adicionadas ao julgamento. Apesar disso, consideramos importante relembrar que, em seu primeiro julgamento de preliminares baseado na CERD, que opunha Geórgia e Rússia em 2011, a CIJ acolheu a preliminar da demandada com base na ausência da negociação enquanto requisito ao acionamento de sua jurisdição. Naquele caso, a Corte considerou que os diálogos estabelecidos entre as partes antes da instituição do procedimento não se referiam especificamente à temática da discriminação racial no âmbito da Convenção. Dessa forma, parece ter sido determinante para a decisão distinta tomada no presente caso o fato de que, nas negociações prévias entre Armênia e Azerbaijão, fez-se referência direta à CERD e às alegações de violações das obrigações nela contidas.

            A conclusão da Corte acerca da segunda objeção do requerido, por outro lado, apesar de ter recebido quinze votos favoráveis, foi objeto de consideração nas opiniões dissidentes do juiz Yusuf e do juiz ad hoc Koroma. O primeiro criticou a tendência observada na CIJ de se instituir casos cuja jurisdição se baseia em cláusulas compromissórias de tratados, mas que envolvem disputas que transcendem o escopo material desses documentos. Nesse sentido, o juiz, no julgamento presente, desaprovou a ausência de análise específica dos fatos alegados pela demandante para observar se eles se enquadram na jurisdição material da Corte com base na CERD. Segundo a opinião, em se tratando de alegações sob a égide da Convenção, seria necessário realizar uma análise comparativa a fim de verificar se os grupos protegidos tiveram seus direitos prejudicados em relação a outros grupos étnicos, sobretudo considerando que, no âmbito do conflito armado entre as partes, o impacto exacerbado sobre nacionais dos Estados envolvidos poderia advir não de discriminação racial, mas da composição nacional das duas forças armadas. Por sua vez, a opinião do juiz ad hoc Koroma, apesar de convergir com a do juiz Yusuf, foi mais ampla, sustentando, de forma geral, que a Corte não teria jurisdição sobre a matéria da controvérsia por esta não ter caráter racial.

Azerbaijão v. Armênia

            No caso iniciado pelo Azerbaijão, a demandada alegou que a Corte carecia de jurisdição ratione temporis em relação aos fatos ocorridos entre julho de 1993, quando a Armênia passou a fazer parte da CERD, e setembro de 1996, quando o Azerbaijão aderiu ao documento. Sustentou também que a CIJ não detinha jurisdição ratione materiae sobre as alegações referentes à implantação de minas terrestres e armadilhas ou à causação de dano ambiental.

            A primeira objeção da requerida foi aceita sob o fundamento de que, a menos que haja previsão em contrário, a não-retroatividade aplicável às cláusulas substantivas da Convenção se estende à cláusula compromissória, de forma que só se teria jurisdição sobre eventos ocorridos quando ambos os polos da disputa já eram partes da CERD. No mesmo sentido, concluiu a Corte que o caráter erga omnes partes das disposições da Convenção não lhe confere, por si só, jurisdição.

            Sobre a segunda objeção, relativa às minas terrestres e às armadilhas, constatou a CIJ que a menção a esses fatos não indicava uma violação autônoma, apenas servia de apoio argumentativo para sustentar a existência de uma campanha de discriminação. Dessa forma, não tinha objeto a objeção de ausência de jurisdição ratione materiae sobre essas alegações. Por outro lado, acerca dos danos ambientais, a CIJ sustentou que esses, por afetarem diversos grupos étnicos, não só azerbaijanis, e por terem motivações não discriminatórias, como as comerciais e econômicas, não constituíam discriminação racial, de modo a estarem fora do escopo material da CERD. Assim, a Corte acolheu a terceira objeção preliminar apresentada pela demandada.

            No julgamento deste caso, a segunda objeção foi a menos controversa dentre os juízes, com dezesseis votos favoráveis a sua rejeição contra um contrário, do juiz ad hoc Koroma. A primeira objeção foi acolhida por quatorze votos contra três que a rejeitavam, enquanto a terceira foi acolhida por uma votação de doze a cinco.

            A decisão acerca da primeira objeção preliminar foi objeto de diversas opiniões dissidentes e separadas. Algumas, como as dos juízes Tomka e Charlesworth, consideram que a Corte tratou como relativa à jurisdição uma questão que se referia à admissibilidade e à legitimidade ativa. Apesar de concordarem com o acolhimento da objeção, ambos os juízes o fizeram por considerar que o Azerbaijão não tinha legitimidade para instaurar procedimento baseado em eventos que ocorreram antes de sua entrada na CERD, sobretudo porque, conforme sustentou a juíza Charlesworth, o demandante tentou fazê-lo em defesa de interesses próprios, não com base no caráter erga omnes partes das obrigações contidas na Convenção. Em adição, opiniões como as dos juízes Tomka, Charlesworth, Yusuf e Cleveland defendem que a objeção apresentada não tinha relação com o princípio da não-retroatividade de tratados, pois o escopo temporal da cláusula compromissória é ligado ao das disposições substantivas, que já vigoravam desde que a Armênia havia aderido à CERD. Ademais, sustentam as juízas Charlesworth e Cleveland que tampouco estava envolvido na questão o princípio da reciprocidade, aquela porque considera que a reciprocidade em questão era relativa à aceitação da jurisdição da Corte, que existia quando da instauração do processo, e essa em razão do caráter erga omnes partes das obrigações da Convenção. Apesar disso, houve também juízes que apoiaram o raciocínio da maioria, como o juízes Iwasawa e Tladi, que defendem a aplicação da regra da não-retroatividade às cláusulas compromissórias como o art. 22 da CERD.

Assim, constata-se que, de maneira geral, apesar da votação não muito acirrada, houve grande discordância dentre os juízes no que tange ao raciocínio jurídico conduzido pela CIJ, tanto acerca de qual seria a matéria verdadeiramente discutida na primeira objeção, se a jurisdição temporal ou a admissibilidade, quanto dos conceitos jurídicos envolvidos, como o caráter erga omnes partes das obrigações e os princípios da não-retroatividade e da reciprocidade. A despeito disso, a conclusão a que se chegou pode contribuir para a interpretação temporal de cláusulas semelhantes em futuros casos perante a CIJ.

            Acerca da segunda objeção, menos opiniões foram apresentadas, contudo destacamos a da juíza Charlesworth, que sustentou que a questão não era meramente preliminar e deveria ser analisada no estágio de mérito.

            Finalmente, em relação à terceira objeção, ressaltamos a opinião separada do juiz Iwasawa, que, com posição semelhante à da opinião que apresentou este juiz no caso paralelo, destacou que o fato de a análise da Corte no âmbito da jurisdição ratione materiae concentrar-se em verificar se as alegações formuladas seriam capazes de se adequar ao escopo material da Convenção não elimina a necessidade de uma conexão razoável entre as supostas violações e o tratado em cotejo. Por outro lado, a opinião conjunta dos juízes Nolte, Charlesworth, Cleveland e Tladi sustenta que a análise da jurisdição material baseada no dano ambiental deveria ter levado em consideração que a existência de efeitos de determinadas medidas sobre outros grupos além dos protegidos pela CERD é inerente ao conceito de discriminação indireta, como já observado pela Corte no caso entre Ucrânia e Rússia, decidido em janeiro de 2024, assim como que a constatação de outras motivações para as ações da demandada não afastam a possibilidade de que elas sejam discriminatórias. Esses juízes, portanto, concluem que a análise dos fatos envolvidos no dano ambiental caberia ao mérito.

Conclusão

            A partir da análise dos julgamentos proferidos nos dois casos e das opiniões dissidentes e separadas a eles adicionadas, constatamos, primeiramente, que as decisões de preliminares parecem ter contribuído para a delimitação da jurisdição material da Corte com base na CERD e, de um modo mais amplo, da jurisdição temporal baseada em cláusulas compromissórias de tratados contendo obrigações erga omnes partes, principalmente ao se analisar períodos em que esses pactos estavam em vigor para apenas uma das partes da disputa. Em adição, concluímos que a Corte parece ter dado mais um passo no sentido de estabilizar sua jurisprudência acerca do pré-requisito de negociação previsto no artigo 22 da CERD, ao constatar seu cumprimento quando os diálogos entre as partes fazem referência explícita ao documento. Finalmente, consideramos que a chegada de mais dois casos baseados na Convenção de Discriminação Racial à fase de mérito poderá ser de grande contribuição para o desenvolvimento do direito internacional no que se refere à interpretação e aplicação da CERD, exercício cuja importância é ressaltada pela aceitação quase universal dessa Convenção pela comunidade internacional.

  • Luísa Lobato Oliveira é mestranda em Direito Internacional na Universidade Federal de Minas Gerais. Pesquisadora do Stylus Curiarum - Grupo de Pesquisa em Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG.

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