“Apesar dos tratados, ou por causa dos tratados”

A criação de um novo tratado internacional passou de algo que acontecia talvez duas vezes por mês para algo que acontecia dia sim, dia não.

KEENE, 2012, p. 478

Quando ouvimos falar de multiplicação de tratados, geralmente lembramos do fenômeno mais recente do século XX, em que o aumento quantitativo das normas internacionais levou a grandes debates sobre a fragmentação do direito internacional e a “ansiedades pós-modernas” [1]. De fato, a incidência de tratados por ano cresceu cerca de seis vezes até o fim do século XX. O que é raramente levado em conta é que já no século anterior havia ocorrido um fenômeno semelhante. A incidência da produção de tratados aumentou quase sete vezes ao longo do século XIX. Este primeiro boom de tratados, ainda que tenha partido de uma base inicial inferior, pode ter representado uma verdadeira revolução nas relações internacionais. Segundo Edward Keene, essa revolução pode até ser comparável à ideia de “revolução militar” que serve ainda hoje como uma das principais lentes históricas para a análise da sociedade de Estados. [2]

O livro Apontamentos para o Direito Internacional, de Antonio Pereira Pinto (1819-1880), foi lançado em quatro volumes publicados entre 1864 e 1869. Bastante representativo de seu tempo, o livro coloca os tratados como protagonistas. As mais de duas mil páginas trazem a íntegra de dezenas de tratados negociados e assinados pelo Brasil desde 1808. Pereira Pinto comenta em seu prefácio ao primeiro volume que buscava montar um arquivo que superasse a falta de acesso aos documentos na época: 

Como a alguem talvez se affigure que no Archivo Publico do Imperio forão encontrados os materiaes que servirão á publicação deste livro, devemos asseverar que naquela repartição não existe autographo, ou cópia authentica de Tratado algum concluido entre o Brasil, e nações estranhas! Semelhante facto não deve causar estranheza sabendo-se que outros, e valiosissimos documentos relativos a importantes fastos de nossa história administrativa, judiciaria, e legislativa jazem encerrados nos impenetraveis escaninhos das secretarias de estado, sem darem o menor proveito, nem taes repartições, nem ao limitado numero de literatos que se occupão com as cousas do paiz

PINTO, 1864, tomo I, p. vii

Antonio Pereira Pinto era diretor do Arquivo Publico do Império e antigo membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Com apoio imperial (e suporte financeiro), foi um dos poucos a produzir algo próximo de um manual de direito internacional durante o Império brasileiro.  Apontamentos para o Direito Internacional ocupou um lugar importante ao lado de Elementos do Direito das Gentes (1851) de Pedro Autran da Matta Albuquerque (1805-1881), Preleções de Diplomacia (1867) e Preleções de Direito Internacional (1867) de Antônio Menezes Vasconcelos de Drummond (1794-1865), Lições de Direito das Gentes (1889) de João Silveira de Souza (1824-1906). [3]

Naquele século, ao mesmo tempo em que se multiplicavam os tratados, estava em curso a profissionalização do direito internacional, que se traduzia em ainda poucas revistas e manuais à maneira que temos hoje. Isso não quer dizer que não se falava sobre a regulação das relações internacionais, mas que as normatividades (da moral, da religião, do direito etc.), não eram analisadas ou mesmo compreendidas separadamente. Havia uma pluralidade de produções por teólogos, filósofos, burocratas, sob tendências naturalistas ou positivistas, que divergiam a respeito das próprias fontes do direito. [4] Era na diplomacia que o conhecimento prático se acumulava e dava vasão a saídas pragmáticas para regular as relações entre Estados, assim como era da diplomacia que emergiam os tratados que se multiplicavam.

No contexto nacional, em que manuais da disciplina ainda eram pouco produzidos, o livro de Antonio Pereira Pinto valorizava a prática diplomática brasileira. É verdade que hoje em dia provavelmente teríamos acesso por outras vias ao conjunto de tratados brasileiros reunidos na obra, especialmente após a digitalização de arquivos de tantos países e a disponibilização de bancos de tratados acessíveis online. Contudo, o conjunto de evidências reunidas pelo autor, somadas a seus comentários como homem da elite nacional da época, constroem um retrato que diz muito sobre a disciplina em formação no país. Também é um registro de percepções dos processos que definiam o espaço que o Brasil independente passava a ocupar na sociedade internacional, e da imagem de “civilização” que pretendia projetar internacionalmente. 

Quando o primeiro tomo é publicado em 1864, jornais noticiam a publicação com entusiasmo. O correio mercantil celebrava o livro como “documento valioso da tendencia dos nossos homens de letras para os estudos sérios”. Os editores gostaram tanto da obra, que deixaram uma recomendação: “O bem elaborado trabalho do Sr. Dr. Pereira Pinto é digno de toda animação, e merece que o governo imperial o mande vulgarizar pelo mundo civilizado na língua franceza, geralmente aceita como própria para esse fim.” (tomo III, p. 6)

Antonio Pereira Pinto abre seu livro falando sobre a “jurisprudencia que se encaminha a estabelecer a confraternidade entre os povos do universo” cujo objetivo era “realizar a solução das desavenças entre as nações pelos meios da discussão ilustrada”. Passa então ao ressentimento da elite política brasileira diante da história recente do Brasil com os tratados:

[…] [S]e infelizmente essa jurisprudencia não tem atingido toda a perfeição de que é susceptível, […] se contra nosso próprio pais hão sido commettidas enormes vexações por um dos Estados mais poderosos da Europa, apezar dos tratados, ou por causa dos tratados, se em geral o Império não tem auferido grandes lucros com a celebração dos contratos internacionais, taes factos nem abalão a doutrina que deixamos expedida, nem por motivo deles devemos confiar menos em que uma reação se há de ir operando entre as nações cultas, ou para refrearem os ímpetos belicosos de seus governos, apontando-lhes a trilha da discussão diplomática como oportuno, e exclusivo recurso para terminar as dissidências que acaso appareção com estranhos países, ou para aconselhar-lhes que nos tratados com os Estados de ordem menos importante, guardem sempre a devida reciprocidade, não lhes impondo pactos leoninos, que trazem ordinariamente em si o germen de futuras contestações

PINTO, 1864, tomo I, “Introdução”, p. xii

Quando Antonio Pereira Pinto se refere ao passado das “vexações…apezar dos tratados, ou por causa dos tratados” está tratando especialmente da implementação do conjunto de convenções antitráfico (com Portugal e depois com o Brasil), que garantiu à Grã-Bretanha direitos de visita, busca e apreensão de navios brasileiros. O autor conta essa história a partir da pela carta régia de 1808, que abriu os portos do Brasil ao comércio estrangeiro, passando aos tratados de comércio e de abolição do tráfico entre Portugal e Grã-Bretanha, e chegando à Convenção antitráfico de novembro de 1826. 

Apesar de ter sido assinado pelo Brasil Império já independente, a Convenção anglo-brasileira prolongava uma herança das relações entre Portugal e Grã-Bretanha que se estreitaram (e criaram maior dependência por parte de Portugal) a partir do auxílio britânico para a mudança da família real portuguesa ao Brasil. À época, a Grã-Bretanha já agia internacionalmente para abolir o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas, uma mudança de política após centenas de anos de incentivos e lucros britânicos com o tráfico. Para sua nova empreitada, a Grã-Bretanha buscava trazer apar os tempos de paz (pós-Guerras Napoleônicas) os direitos de visita, busca e apreensão, que eram próprios da regulação de guerra. Para ter essas prerrogativas em tempos de paz, era preciso criar direito novo. Por anos os representantes britânicos buscariam emplacar essa inovação em tratados multilaterais, sem sucesso. Em paralelo, conseguiram estabelecer tratados bilaterais que cresceram em número ao longo da primeira metade do século.   

Como estado escravocrata, o Brasil resistiu por décadas às medidas antitráfico a que havia se comprometido por meio da convenção. Ao mesmo tempo, os representantes brasileiros se engajavam, sob força do tratado, em disputas argumentativas com os britânicos sobre limitações à interferência nas navegações. Também discutiam as decisões das comissões mistas  (órgãos que analisavam as apreensões) e clamavam por indenizações para proprietários cujas embarcações haviam sido apreendidas fora dos parâmetros do tratado. [5]

Entre as décadas de 1830 e 1850, a Grã-Bretanha muda suas políticas de policiamento marítimo. Em detrimento da convenção de 1826, passa a fazer apreensões de navios brasileiros sob regulações nacionais e a trazer os casos a julgamento por cortes de sua jurisdição. Esse é um dos processos históricos que geram recrudescimento das tensões diplomáticas entre Brasil e Grã-Bretanha (também marcante na Questão Christie) e culminam no ressentimento visível dos comentários de Antonio Pereira Pinto. 

A narrativa do que o autor chama de “injustiça que soffremos da poderosa Grã-Bretanha” age como uma releitura intencional do passado que o transforma em história de superação. Ainda no primeiro volume, seguem-se à convenção de 1826 as leis brasileiras para abolição do tráfico e da escravidão — implementadas com pouca eficácia e de forma extremamente lenta, como sabemos.  O autor buscava ali afirmar que as mudanças que aconteciam no Brasil eram mérito do Império, apesar das interferências britânicas. 

As referências ao passado com a Grã-Bretanha voltam nos volumes posteriores, seja para detalhar as crises diplomáticas pós-1826, seja para colocar outros acontecimentos em perspectiva. Tratados, documentos e comentários sobre as décadas seguintes registram as relações do Brasil com outros países europeus e exploram o espaço ocupado pelo Brasil nas questões americanas— que incluíram tratados, mas também uso da força. Antonio Pereira Pinto constrói uma narrativa de mudança para uma nova fase iluminada, em que alguns momentos são “eclipses” que fazem lembrar do passado com a Grã-Bretanha — como as ingerências dos Estados europeus no Rio da Prata. Na nova fase da história do Império, “a solução das questões internacionais desenha-se por uma physionomia nova, mais enérgica, e mais cultivada” (PINTO,1866, tomo III, p. viii).  

Em conjunto, os quatro tomos de tratados e documentos que foram reunidos e comentados por Antonio Pereira Pinto contam uma história de superação e celebração do Brasil Império. Se fundava ali, nas narrativas de Pereira Pinto, um país independente (da Grã-Bretanha) que havia aprendido a lição sobre o direito internacional: não se deixar restringir pelos tratados como no passado, mas usá-los tratados a favor de seus próprios projetos de progresso.

REFERÊNCIAS

[1] Cf. KOSKENNIEMI, Martti; LEINO, Päivi. Fragmentation of international law? Postmodern anxieties. Leiden Journal of International Law, v. 15, n. 3, p. 553-579, 2002.

[2] KEENE, Edward. The treaty-making revolution of the nineteenth century. The International History Review, v. 34, n. 3, p. 475-500, 2012, p. 476-477.

[3] RIBEIRO, Airton. Teaching International Law in the Nineteenth-Century Brazil: a history of appropriation and assimilation (1827-1914) [Ph. D Thesis Legal History–University of Florence], 2017, p. 126.

[4] VEC, Miloš (2017), Sources of international law in the nineteenth century european tradition: the myth of positivism, in: Besson, Samantha, Jean d’Aspremont (eds.), The Oxford Handbook of the Sources of International Law, Oxford: Oxford University Press, 122-145

[5] Cf. BETHELL, Leslie. The mixed commissions for the suppression of the transatlantic slave trade in the nineteenth century. The Journal of African History, v. 7, n. 1, p. 79-93, 1966; BRITO, Adriane Sanctis de. O que torna um navio suspeito? Estratégias jurídicas para ampliar o apresamento no regime anglo-brasileiro de abolição do tráfico de escravos (1827-1945). In: X Congresso do Instituto Brasileiro de História do Direito – Os Tempos do Direito, 2018. Anais do X Congresso Brasileiro de História do Direito, 2018; BRITO, Adriane Sanctis de. Da propriedade, a Liberdade? Facetas do regime jurídico internacional antitráfico. In: Coutinho, D. R., Prol, F. M., Ungaretti, D., Miola, I. Z., & Ferrano, T. Propriedades em Transformação 2: expandindo a agenda de pesquisa. Blucher, 2021; Seeking capture, resisting seizure: an international legal history of the Anglo-Brazilian treaty for the suppression of the slave trade. Frankfurt am Main: Max-Planck-Institut für Rechtsgeschichte und Rechtstheorie, (no prelo).

  • Adriane Sanctis de Brito é diretora e pesquisadora pós-doutoral do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT). É Sylff Fellow da Tokyo Foundation for Policy Research e já atuou como professora contratada do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. Foi pesquisadora bolsista no Instituto Erik Castrén da Universidade de Helsinque, no Instituto Max Planck de Luxemburgo e no Programa Laureate de Direito Internacional na Universidade de Melbourne. É graduada, mestre em direito internacional e doutora em teoria do direito pela Universidade de São Paulo - USP.

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