Direito de Acesso à Justiça e Imunidade de Organizações Internacionais no Comitê de Direitos Humanos da ONU: Lições para a Prática Interamericana

Introdução

Em 18 de setembro de 2024, o Comitê de Direitos Humanos da ONU (CDH) publicou decisão histórica com relação à imunidade do Banco de Desenvolvimento Asiático. Em M.L.D. contra as Filipinas, o CDH considerou a violação do direito de acesso à justiça da vítima relacionada com a inadequação dos meios internos de solução de conflitos de uma organização internacional sediada nas Filipinas. Embora o CDH não tenha encontrado violação do artigo 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), a decisão pode ser considerada um marco por expandir o entendimento regional de que o reconhecimento da imunidade de organizações internacionais depende da disponibilidade de meios de solução de controvérsias adequados. Essa determinação do CDH é baseada no caso Waite and Kennedy v. Alemanha da Corte Europeia de Direitos Humanos.

Esse post defende que o Comitê de Direitos Humanos poderia ter sido mais claro sobre as obrigações de direitos humanos de Estados frente à imunidades de organizações internacionais tanto enquanto membros de OIs, quanto em termos de atribuição e proteção diplomática. Os dois últimos pontos, apesar de suscitados pelas partes, não foram considerados diretamente na decisão. Adicionalmente, argumenta-se que o CDH perdeu a oportunidade de definir um standard mais objetivo e coerente para a garantia do direito de acesso à justiça no quadro de organizações internacionais. Os critérios definidos no caso Waite and Kennedy, reconhecidos também no âmbito interamericano, não foram adotados pelo CDH, que preferiu adotar um standard próprio, assim, deixando de contribuir para a sistematicidade do direito internacional.

Em relação à perspectiva regional, observa-se que o CDH não leva em consideração a prática interamericana para enunciar uma regra geral sobre o escopo da imunidade de organizações internacionais. Assim, a depender da adesão ao entendimento enunciado, é possível que haja uma definição mais clara de uma regra interamericana divergente da regra geral ou que a prática interamericana seja influenciada no sentido da regra geral. O segundo caso poderia constituir uma influência positiva para a garantia do direito de acesso à justiça na região americana em casos cobertos por imunidade. Na jurisprudência brasileira, por exemplo, o caso M. L. D. poderia servir como uma primeira referência global para introduzir a discussão sobre a violação desse direito frente à garantia de imunidade de organizações internacionais. Consideração notavelmente ausente no entendimento do Supremo Tribunal Federal.

Os fatos do caso

O caso diz respeito a uma ex-funcionária da organização que contestou, sem sucesso, a terminação do seu contrato e discriminação de gênero pelo seu supervisor no Tribunal Administrativo (TA) do Banco de Desenvolvimento Asiático (BDA). Após decisão desfavorável do TA, a requerente buscou o Departamento de Relações Exteriores das Filipinas, Estado sede da organização, para garantir o seu direito de acesso à justiça supostamente violado pelo BDA, devido à alegada falta de competência, independência e imparcialidade do Tribunal. Dada a falta de resposta do departamento estatal, a requerente ingressou com um procedimento no Comitê de Direitos Humanos contra o Estado das Filipinas por violação dos artigos 2, 3, 14(1), 17 e 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP).

Nesse contexto, a requerente alega que as Filipinas violaram seu direito de acesso à justiça e seu direito ao devido processo por não agir para remediar a violação dos seus direitos por entidade sob sua jurisdição (para. 3.3). Seja por não suspender a imunidade da organização em cortes nacionais ou por deixar de representar a autora em arbitragem contra a organização (proteção diplomática). De acordo com a requerente, o Tribunal Administrativo da organização não qualifica como um “meio adequado de solução de controvérsias” para fins de manter a imunidade do BDA. Como fundamento, a autora sublinha fatores como a nomeação dos juízes pelo presidente do Banco por mandatos curtos, contato pessoal entre a gerência da organização e os juízes do tribunal, negação de uma audiência oral no seu procedimento frente à controvérsia dos fatos do caso e falta de examinação de provas e queixas apresentadas no caso (para 2.2 e 3.2).

A decisão

Em relação à jurisdição das Filipinas sob o Banco de Desenvolvimento Asiático, O Comitê de Direitos Humanos reafirma sua jurisprudência de que ele é competente para analisar casos de violações do PIDCP mesmo se os atos do Estado parte foram tomados em implementação a obrigações vindas da participação em organizações internacionais (para. 8.4). Em seguida, em citação à jurisprudência da CEDH, o Comitê conclui que, embora organizações internacionais estejam intituladas a imunidades jurisdicionais, o Estado de sede poderá ter jurisdição sob a Carta de Direitos Civis e Políticos se a organização não providenciar um meio de disputas alternativo que seja “razoável” (para. 8.6). Dada essa possibilidade, o Comitê parece ter exercido sua competência com base na jurisdição territorial do Estado parte, visto que não engajou com o argumento de atribuição dos atos do BDA ao Estado.

Na decisão de mérito, o CDH reafirma o caráter funcional das imunidades concedidas a organizações internacionais e que seu propósito não pode ser negar acesso à justiça de seus funcionários (para. 9.5). Em seguida, referindo-se ao caso Waite and Kennedy, o Comitê assevera que o estabelecimento, a transferência de competências e a garantia de imunidades a organizações internacionais pode ter implicações para a proteção de direitos fundamentais. O Comitê afirma que seria incompatível com o objeto e o propósito da convenção se Estados fossem absolvidos de suas obrigações sob a convenção em relação à área de transferência de competências a organizações internacionais. Por fim, recorda que o CDH deve garantir não direitos teóricos ou ilusórios, mas direitos práticos e efetivos, o que se aplica também ao direito de acesso à justiça (para. 9.6). O Comitê conclui, então, que organizações internacionais estão incumbidas a oferecerem meios alternativos de solução de disputas que sejam “razoáveis” como em casos de disputas trabalhistas com seus funcionários (para. 9.7).

Essa passagem é curiosa porque o Comitê parte de uma argumentação sobre as obrigações dos Estados parte do PIDCP de garantir os direitos da convenção e termina por afirmar uma obrigação de organizações internacionais relativa ao direito de acesso à justiça. Quanto às obrigações estatais, é razoável assumir que não se trata de uma questão de atribuição ao Estado dos atos da organização, visto que a jurisprudência citada diz respeito aos atos próprios de Estados dentro de organizações internacionais. A questão de atribuição também foi suscitada como exceção preliminar no caso, mas o CDH não engajou com o argumento e preferiu asseverar a jurisdição territorial das Filipinas. Assim, seria mais coerente concluir que, para cumprir com suas obrigações sobre o PIDCP, Estados parte devem (1) buscar estabelecer meios adequados de solução de controvérsias nas OIs das quais participam e (2) suspender a imunidade de organizações internacionais ou exercer proteção diplomática sobre o indivíduo afetado na ausência de meios adequados de solução de controvérsias.

Quanto ao standard de direitos humanos aplicável, o Comitê de Direitos Humanos estabelece que os meios internos de solução de controvérsias de organizações internacionais devem levar em consideração os princípios de objetividade, necessidade e imparcialidade, de modo a não resultar em arbitrariedade ou negação de justiça (para. 9.7).  Em seguida, o Comitê afirma apenas que (1) a nomeação dos juízes do tribunal administrativo da organização foi feita de acordo com o Estatuto e em respeito aos princípios de independência e imparcialidade – sem maiores análises – e que (2) o tribunal considerou e decidiu, de forma fundamentada e com base nas evidências disponíveis, que não havia necessidade de uma audiência oral e que as causas da requerente não eram substanciadas. Em uma análise de somente duas frases, portanto, o CDH conclui que a requerente não comprovou que o Tribunal Administrativo do Banco agiu de maneira arbitrária ou que houve denegação de justiça que tornasse necessária a intervenção das Filipinas.

Nesse ponto, o Comitê foi criticado por não proteger suficientemente a independência judicial conforme sua própria jurisprudência. Alternativamente, o CDH poderia ter se fundamentado em Waite and Kennedy para justificar a adoção de um standard de devido processo mais adaptado à estrutura de mecanismos internos de organizações internacionais, sem perder de vista a proteção do direito de acesso à justiça. Em Waite and Kennedy, a Corte Europeia de Direitos Humanos afirma que o direito de acesso a cortes não é um direito absoluto e que qualquer limitação a esse direito (1) não deve afetar sua essência, (2) deve ter um propósito legítimo e deve (3) guardar uma relação de proporcionalidade entre os meios utilizados e o fim perseguido. Esses critérios são reconhecidos também no âmbito interamericano (Princípio 6 do Guia Prático de Imunidades de Organizações Internacionais, Comissão Jurídica Interamericana). Ou seja, a adoção desses critérios pelo CDH no âmbito global, teria maior respaldo na prática e contribuiria para a sistematização das normas aplicáveis à imunidade de organizações internacionais.

Prática Regional

No âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), a Comissão Jurídica Interamericana (CJI) – órgão responsável pela codificação e desenvolvimento progressivo do direito internacional na região – publicou um Guia Prático sobre Imunidade de Organizações Internacionais em 2018 refletindo a prática regional. Conforme mencionado anteriormente, o documento segue os critérios estabelecidos em Waite and Kennedy como standards aplicáveis aos mecanismos de solução de controvérsias de organizações internacionais. Em outras duas questões substanciais, contudo, a CJI parece se distanciar da prática europeia – o que não é levado em consideração pelo Comitê de Direitos Humanos em M.L.D.

No princípio 4, o Guia Prático estabelece que a imunidade de organizações internacionais não se estende a atos em que a organização age como um ator privado no mercado desde que não seja essencial ao cumprimento do seu objetivo e propósito. Isso inclui a contratação de empregados locais. Ou seja, no contexto interamericano, a contratação de empregados por organizações internacionais, em regra, está excluída da proteção da imunidade. Outro ponto de divergência é a condicionalidade da imunidade de organizações internacionais à oferta de meios alternativos de solução de disputas. Embora o Guia Prático estabeleça que organizações internacionais devem oferecer tais mecanismos para casos cobertos por imunidade, ele reforça que a submissão à jurisdição nacional requer o consentimento de organizações internacionais (Princípio 5).

Aplicados ao caso M.L.D., essas diretrizes levariam a uma solução oposta àquela alcançada pelo CDH. Primeiramente, a disputa com a autora seria considerada sujeita à jurisdição das cortes Filipinas – desde que não isso não violasse a autonomia da organização ou dispositivo convencional em contrário. Em segundo lugar, se a disputa fosse considerada como protegida por imunidade, a suspensão dessa imunidade dependeria do consentimento da organização. Nessas duas questões, contudo, o Comitê de Direitos Humanos adota o entendimento europeu de (1) imunidade funcional que inclui disputas entre a organização e seus funcionários e (2) possibilidade de exercício de jurisdição sobre organizações internacionais  na ausência de meio alternativo e adequado de solução da disputa. No caso, essas normas são aplicadas a um Estado não europeu, isso sugere que – no entendimento do CDH – são normas que refletem o direito costumeiro internacional. Por essa razão, a decisão pode ser criticada por não levar em consideração a prática Estatal de outras regiões, para enunciar uma norma global. Afinal, o costume internacional deve refletir uma prática geral aceita como direito e não apenas a prática de Estados e instituições europeias.

Caso o entendimento em M.L.D. seja adotado por Estados em diferentes regiões, a prática americana poderia eventualmente constituir uma norma costumeira regional que se distancia da regra geral. Por outro lado, é possível que a decisão do Comitê de Direitos Humanos em M. L. D. exerça certa influência também sobre a prática de Estados interamericanos no sentido de uma abordagem mais protetiva do direito de acesso à justiça. A jurisprudência brasileira, por exemplo, poderia se beneficiar de um aprofundamento da discussão sobre imunidades de organizações quanto ao dever do Estado de proteger direitos humanos.

Desde 2017, o entendimento vinculante do Supremo Tribunal Federal é de que: “o organismo internacional que tenha garantida a imunidade de jurisdição em tratado firmado pelo Brasil e internalizado na ordem jurídica brasileira não pode ser demandado em juízo, salvo em caso de renúncia expressa a essa imunidade.” O voto relator em nenhum momento leva em consideração o direito de acesso à justiça para a definição do escopo da imunidade do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Isso é curioso visto que a garantia de direitos humanos tem um papel central na relativização da imunidade de Estados na jurisprudência do STF. Nesse contexto, a decisão do Comitê de Direitos Humanos em M.L.D. poderia servir como uma primeira referência global para a adoção de tese mais sensível à proteção do direito de acesso à justiça pelo STF em se tratando de imunidade de organizações internacionais.

Conclusão

A globalização, no caso M.L.D., do entendimento de que a imunidade de organizações internacionais depende do oferecimentos de meios adequados de solução de controvérsia é uma notável contribuição do Comitê de Direitos Humanos ao direito das imunidades de organizações internacionais. Embora seja um entendimento predominantemente baseado na prática europeia, é possível que ele exerça uma influência positiva sobre a prática interamericana no sentido de levar mais em consideração o direito de acesso à justiça na definição do escopo da imunidade de organizações internacionais. No Brasil, especialmente, que excepciona imunidades de organizações internacionais apenas em caso de renúncia, considerações sobre a proteção do direito de acesso à justiça seriam uma valiosa adição à atual tese adotada pelo Supremo Tribunal Federal.

Por outro lado, o Comitê de Direitos Humanos perdeu duas oportunidades de desenvolvimento do direito da imunidade de organizações internacionais. Primeiramente, o CDH poderia ter esclarecido as obrigações de Estados sob a Carta de Direitos Civis e Políticos enquanto Estados parte e sede de organizações internacionais para a garantia do direito de acesso à justiça. Em vez disso, o Comitê decidiu não engajar com as considerações das partes sobre atribuição dos atos da organização ao Estados e exercício de proteção diplomática da autora frente à organização. Em segundo lugar, quanto à “adequação” dos sistemas internos de justiça de organizações internacionais, o Comitê preferiu adotar um standard próprio ao invés de uma abordagemmais sistêmica e fundamentada na prática europeia e interamericana. Resta ver se os princípios de objetividade, necessidade e imparcialidade adotados pelo CDH contribuirão de forma mais ampla para a proteção do direito de acesso à justiça se aplicado de forma qualitativa por tribunais nacionais.

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