A sentença do Caso Sales Pimenta e a pergunta que não quer se calar: Afinal, onde estão as Eumênides no processo penal brasileiro, quando se fala de violações de direitos humanos?

Em 30 de junho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) publicou a 11ª condenação do Brasil em sua jurisdição contenciosa (caso Sales Pimenta vs. Brasil). Nessa sentença dois pontos chamam atenção: a reincidência de condenação internacional do Brasil por descumprimento de seu dever de investigar e punir responsáveis por violações de direitos humanos; e ocorrência da prescrição da pretensão punitiva como meio para a manutenção da impunidade.

Mesmo não sendo a primeira vez que o Brasil foi responsabilizado internacionalmente por tais violações, salta aos olhos o fato de a Corte IDH identificar uma “situação de impunidade estrutural” (§120) no país em face de delitos praticados contra parcela vulnerável da população. Ademais, como meio de reparação, o tribunal condenou o país a alterar sua legislação para que seja previsto instrumento de reabertura processual nos casos de responsabilização internacional (pela Corte IDH), independentemente da ocorrência da prescrição (§ 180).

A situação de impunidade no país, constatada pela Corte IDH tanto no caso Sales Pimenta vs. Brasil quanto em outros (Caso Herzog e outros vs. Brasil, Caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil e Caso Barbosa de Souza vs. Brasil foram citados expressamente pela Corte no § 179), aponta o descumprimento do Brasil de um papel basilar assumido pelo Estado há mais de quatro séculos antes de Cristo, ilustrado na Oréstia de Ésquilo.

Em 460 a.C., Ésquilo escreveu a tragédia Oréstia, apontada por François Ost (2007, p. 147) como a representação literária da “invenção da justiça”, e possivelmente do próprio Direito. A tragédia traz a mudança de um sistema de justiça privada para uma concepção moderna de justiça, com a criação do primeiro tribunal público.

No primeiro ato, Agamenon, tem-se a representação do sistema da autotutela. Agamenon, rei de Argos, antes de ir para a Guerra de Tróia sacrifica sua filha mais velha, Ifigênia, em busca de bons auspícios. Ao retornar da expedição, Clitemnestra, sua esposa, assassina Agamenon por nunca ter perdoado o sacrifício de sua primogênita.

Em seu triunfo Clitemnestra aplaca sua sede de vingança, porém passa a ocupar o lugar maldito (OST, 2007, p. 148). As Erínias, fúrias da vingança, reclamam justiça pelo sangue derramado, amaldiçoando Clitemnestra pela morte de seu marido.

O segundo ato da tragédia, Coéforas, trata-se da morte de Clitemnestra por seu filho Orestes. De um lado Orestes se vê como portador da justiça, ao vingar a morte de seu pai. Por outro, se encontra em uma crise de consciência por ter que matar a própria mãe. Ele acaba por “cumprir seu papel de defensor da honra” (OST, 2007, p. 148), porém ao fazê-lo as Erínias voltam-se a ele, clamando por justiça.

No ato final da Oréstia, Eumênides, tem-se o julgamento de Orestes. O paradoxo posto em julgamento é: Orestes deve ser punido por matar sua mãe ou absolvido por vingar seu pai?

O caso é levado a Atena que institui um tribunal público para julgar Orestes. As Erínias passam a ter a função de acusar o réu, já que são as fúrias da vingança. Orestes teve a oportunidade de se defender publicamente, justificando seu ato. A decisão, por sua vez, foi tomada por um júri composto por doze cidadãos atenienses. O tribunal foi presidido pela própria deusa. O julgamento, pautado no princípio do devido processo legal (NASCIMENTO, 2017, p. 49), acaba com um empate entre os jurados, cabendo o voto de desempate à Atena (voto de Minerva).

Ao final da peça as Erínias ainda clamam por justiça, baseadas na antiga Lei de Talião. Ameaçam voltar sua cólera à cidade de Atenas. Porém, a deusa lhe faz um convite de ingressar àquela sociedade (NEVES, 2015, p. 153). Elas, passam a ter uma nova alcunha, Eumênides. São transmutadas “de uma força da natureza para mantenedoras de uma ordem ditada pela razão humana” (NEVES, 2015, p. 143), renunciando ao direito de justiça em prol de sua nova função (NASCIMENTO, 2017, p. 54).

A busca de vingança pela prática de um crime não se esvai. Ela passa de um sistema de vingança privada para um sistema de justiça pública. As Erínias, acusadoras e julgadoras, sedentas por justiça do sangue derramado, passam, enquanto Eumênides, à função de acusadoras em um debate público, pautado pelo contraditório e pela ampla defesa. Para a punição, busca-se a formação de culpa, através da análise das circunstâncias concretas.

A vingança, portanto, ainda está presente no sistema penal moderno (OST, 2005, p. 121). A pena, nada mais é que retribuir, dar o troco, ao ato praticado. Como explica João Luiz Rocha do Nascimento, em sua função preventiva, a pena se volta para o futuro, tendo por finalidade impedir que novos delitos aconteçam. Em sua função reparadora, ela está voltada para o presente, tendo por objeto a vítima em si, buscando uma compensação para o dano sofrido (OST, 2005, p. 122). Já na função retributiva, a pena, no sentido de “dar o troco” tem uma função de justiça, atribuída em razão de um injusto praticado.

O julgamento de Orestes ilustra não apenas o fim da vingança privada e o surgimento da justiça pública. Ele representa também a passagem do poder punitivo dos particulares, pela autotutela, para o Estado. As Erínias, transformam-se em Eumênides para que façam parte do processo de punição. Não se fala mais em ira da vingança, mas em um processo racional composto por acusação, terceiro imparcial e defesa. Sai-se de um sistema vindicativo e passa-se a um sistema vindicatório.

Para François Ost (2005, p. 125) um sistema vindicatório parte do princípio que uma ofensa exige um dever de reparação que é imperativo. Porém há o surgimento de regras que irão “civilizar” o dever de vingança dando-lhe uma sanção proporcional e reconciliadora. Ela se socializa e deixa de ser apenas regressiva e mortífera, passando a ter uma perspectiva de reconciliação futura renomeada como exigência de justiça (OST, 2005, p. 130).

É nesse ponto que nos cabe retornar às condenações do Brasil junto à Corte IDH. Em pelo menos 10, das 11 condenações, o tribunal menciona o direito das vítimas e de seus familiares de verem os responsáveis pelas violações de direitos humanos punidos por seus crimes. 

No caso Sales Pimenta vs. Brasil, a Corte IDH vai além, destacando que não apenas as vítimas e seus familiares têm o direito que o Estado realize todas as ações possíveis para esclarecer os fatos relacionados à violação dos direitos humanos (direito à verdade) como também a satisfação desse direito tem como interessada toda a sociedade, pois cumpre a função preventiva de eventual violação análoga no futuro (§ 116).

No mesmo julgado, a Corte IDH aponta uma situação de impunidade estrutural relacionada aos crimes praticados contra defensores de direitos humanos dos trabalhadores rurais no Brasil (§ 120). Tal conclusão decorre da análise de dados previstos no processo de que entre 1985 e março de 2001, 1.207 trabalhadores rurais foram vítimas de homicídios, sendo que em 95% dos casos, não houve nenhuma resposta estatal (§51). Ademais, apenas no município de Marabá/PA, entre 1975 a 2005 a taxa de impunidade foi de 100% (§51).

Das dez sentenças em que o Brasil foi condenado por seu dever de investigar as violações aos direitos humanos e punir os responsáveis, em cinco, agentes estatais no exercício de suas funções, estavam envolvidos diretamente nos atos que ensejaram a condenação. No caso Ximenes Lopes vs. Brasil, a Casa de Repouso Guararapes, local onde Damiao Ximenes Lopes sofreu maus tratos e foi morto, era conveniada ao Sistema Único de Saúde. Já no Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, o autor do delito exercia o cargo de deputado estadual e não foi devidamente punido em razão da atuação direta da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba em não autorizar o início da persecução penal. Logo, o envolvimento de agentes estatais lato sensu, como agentes das violações de direitos humanos, abrange pelo menos sete dos dez casos.

Desses dados conclui-se que a situação de impunidade estrutural não se resume, infelizmente, aos crimes contra defensores de direitos humanos. Ela abrange situações que agentes estatais estejam, direta ou indiretamente, ligados às violações de direitos humanos. O Brasil, portanto, se afasta das Eumênides, nos casos de envolvimento de seus agentes.

A inércia estatal em seu dever de investigar e punir se mantém até que ocorra a prescrição da pretensão punitiva. Não por outro motivo, a Corte IDH no Caso Sales Pimenta condenou o Brasil a alterar sua legislação interna para instituir instrumentos de reabertura de investigações ou processos judiciais, incluindo-se os atingidos pela prescrição, quando a Corte IDH determinar a responsabilização internacional do Estado, pelo descumprimento de seu dever de investigar e punir violações aos direitos humanos (§ 180).

Assim sendo, antes que se reacenda a discussão sobre a teoria da quarta instância, em virtude desse ponto específico da condenação, nos resta dar um passo atrás e questionar: As funções da pena são, de fato, alcançadas, nessa situação de impunidade estrutural, ligada aos agentes de Estado no Brasil? Até quando o Estado brasileiro, deixará impune, de forma seletiva, seus agentes, por violações de direitos humanos, por meio de instrumentos como o da prescrição? Não seria a eventual reabertura das investigações em caso de condenação internacional, um instrumento capaz de aplacar ou minimizar o desejo de vingança das Erínias, agora Eumênides, no processo penal brasileiro?

Essas são questões ainda estão em aberto, assim como se o Brasil irá cumprir essa parte da sentença. Porém, almeja-se que elas sirvam de ponto de partida para rediscussão do papel do Estado brasileiro na investigação e punição de responsáveis por violações dos direitos humanos, principalmente quando se tratar de agentes estatais. Bem como um ponto de reflexão para a (re)análise do instituto da prescrição, quando agentes públicos estiverem envolvidos na prática de crimes.

REFERÊNCIAS: 

NASCIMENTO. João Luiz Rocha do. Das Erínias às Eumênides: Como as cadelas vingadoras ainda ladram um passado que não passa. in ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, v. 3, n. 1, 2017, pp. 39-72.

NEVES, José Roberto de Castro. A invenção do Direito. As lições de Ésquilo, Sóflocles, Eurípedes e Aristófanes. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2015.

OST, François. L’invention du tiers: Eschyle et Kafka. in: Esprit. nº 337. v. 8, 2007, pp. 147-165.

OST, François. O tempo do direito. Bauru/SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2005. 

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