A imprescribilidade do crime de escravidão e o Caso José Pereira – avanços na difusão e efetivação do DIDH no Sistema de Justiça brasileiro.

The prohibition of forced labour as a form of slavery is not to be taken lightly, keeping in mind the long time it has taken to eradicate it, and the fact that it still survives in our days.

Cançado Trindade, Caso Jurisdictional Immunities of the State (Alemanha v. Itália), Mérito, Opinião Dissidente, p.223.

Mesmo em 2022, 27 anos após o reconhecimento pela Presidência da República da persistência do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, os desafios no seu combate permanecem e se aprofundam. Ante tal quadro, é digna de nota a decisão proferida pela Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região no Recurso em Sentido Estrito nº 0005216-83.2015.4.01.3901/PA, publicada neste mês de agosto, que reconhece a imprescritibilidade da pretensão punitiva do crime de escravidão, no contexto do Caso José Pereira. Neste ensaio, são discutidos alguns de seus aspectos no contexto mais amplo da difusão e efetivação do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). Em especial, defende-se que o contraste entre as perspectivas adotadas na sentença e no acórdão deste caso indicam que, mais do que apenas referenciar os instrumentos internacionais, a difusão e efetivação do DIDH demandam uma leitura dentro de seu contexto hermenêutico, como realizado pelo Tribunal, com a participação dialógica dos diversos atores do Sistema de Justiça.

Na sequência, apresentamos:

  1. O quadro geral do combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil, o Caso José Pereira e os eventos processuais que desaguaram no acórdão;
  2. os pontos inovadores do acórdão e como a decisão, por sua abertura dialógica ao DIDH e às manifestações dos demais atores do Sistema de Justiça, é exemplo importante de vias possíveis na efetivação e difusão de direitos humanos;
  3. mais um caso, ainda pendente, em que essa abertura dialógica poderá ser relevante para os mesmos propósitos, também na esfera do combate à escravidão contemporânea, agora perante o STF.

Não obstante o esforço institucional das últimas décadas, os números do trabalho escravo no Brasil ainda são assustadores. No último mês de julho, foi realizada a maior operação brasileira de combate ao crime de redução à condição análoga a de escravo, com 337 pessoas libertadas. O quadro de efetividade da persecução penal é especialmente frágil – pesquisa da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG aponta que, entre 2008 e 2019, de 2.625 pessoas denunciadas com base no art. 149 do Código Penal, só 111 foram condenadas definitivamente (4,2% dos processados). Além disso, em razão das penas aplicadas, apenas 1% desse total poderia ser efetivamente recolhido à prisão.

Os fatos do Caso José Pereira, datados de 1989, são ilustrativos da violência envolvida no trabalho escravo contemporâneo e dos desafios em seu enfrentamento no Sistema de Justiça. José Pereira, à época com 17 anos, foi ferido, e um companheiro trabalhador (conhecido por “Paraná”) foi morto, ambos a tiros, quando tentavam escapar da Fazenda “Espírito Santo”, para onde foram atraídos com falsas promessas de trabalhos e eram mantidos reclusos, em condições degradantes, junto a cerca de outras 60 pessoas.

Em 2003 o Estado Brasileiro reconheceu, em Acordo perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a responsabilidade pelas violações cometidas e comprometeu-se a “continuar com os esforços para o cumprimento dos mandados judiciais de prisão contra os acusados pelos crimes cometidos contra José Pereira” (par. 7), o que deu ensejo a uma série de denúncias criminais, visando ao atendimento dos deveres de investigar e punir.

Todavia, iniciado o processo penal visando à punição dos acusados pelo ilícito perante a Justiça Federal em Marabá/PA, sobreveio, em 2019, sentença que, a despeito do acordo de solução amistosa, entendia pela prescrição dos crimes cometidos. A referida decisão negava a possibilidade do Direito Internacional estabelecer normas atinentes à prescrição. Acrescia que “qualquer manobra jurídica, no sentido de extrair a imprescritibilidade penal de outros atos internacionais, como documentos, resoluções ou precedentes jurisprudenciais do sistema interamericano de direitos humanos será absolutamente inócua na seara criminal, já que, no Brasil, a existência de lei formal no campo penal incriminador é garantia fundamental e constitucional” (p. 10).

O Ministério Público Federal, que já se manifestara perante o Juízo pela imprescritibilidade do ilícito, interpôs recurso, exatamente argumentando as violações às normas de Direito Internacional.

O acórdão de provimento do apelo é importante norte na concepção de um Judiciário pátrio mais ativo também como juiz também do Direito Internacional. A Quarta Turma do TRF-1ª Região, seguindo o voto do Relator, acolhe a argumentação do MPF e afirma expressamente a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade e a supralegalidade das normas oriundas de tratados internacionais de direitos humanos. Como fundamento, referencia amplamente as Convenções Internacionais sobre o tema e a jurisprudência da Corte Interamericana e da Corte Internacional de Justiça, bem como o tratado constitutivo do Tribunal Penal Internacional e outros precedentes de Cortes pátrias que seguem nessa linha.

A decisão colegiada é um exemplo de abertura dialógica ao Sistema Internacional, com a construção da interpretação aplicável ao caso albergando não só as leis brasileiras, mas a íntegra do ordenamento, inclusive as normas internacionais, sem desconsiderar a produção dos intérpretes internacionais dessas normas. Na prática, realiza controle de convencionalidade, examinando as normas pátrias à luz dos preceitos costumeiros e convencionais sobre a escravidão, bem como da jurisprudência da Corte Interamericana sobre a questão.

É de se salientar que as instituições do Sistema de Justiça estão sendo desafiadas a atuar tanto como difusoras do DIDH, disseminando suas normas, como na aplicação prática no desta no mister de distribuição da Justiça (sobre o tema, recomenda-se o trabalho de Karina Sesti), com diferentes resultados. Nesse sentido, o contraste entre sentença e acórdão mostra que, mais do que apenas referenciar os instrumentos internacionais, é necessária a devida consideração dos seus parâmetros interpretativos.

A sentença do caso, mesmo referenciando e até interpretando disposições da Convenção Americana de Direitos Humanos, o faz a partir de uma perspectiva exclusivamente nacional. Desconsidera, por exemplo, o fenômeno da formação das normas costumeiras de Direito Internacional. Na medida em que se dissocia dos parâmetros que o próprio campo estabelece para a construção do sentido das normas de DIDH, cristaliza posição desarmônica em relação ao Direito Internacional, com a continuidade acrítica dos mesmos entendimentos construídos com base nas normas nacionais, revestidos de roupagem supostamente internacionalizada.

Já o acórdão se mostra passo importante para que não só se alcance a efetivação dos compromissos assumidos pelo Brasil no contexto do acordo de solução amistosa do Caso José Pereira, como também de um precedente de relevo a respeito da efetividade do DIDH no Brasil, na medida em que usa e traduz, a partir da voz de um órgão de incontestável capacidade jurisdicional dentro do sistema interno, termos e conceitos do Direito Internacional, atribuindo-lhes autoridade e vinculatividade.

Acreditamos que essa adequada contextualização nas decisões do Judiciário depende também diretamente da atuação das demais instituições do Sistema de Justiça, como o Ministério Público – que também é custus do Direito Internacional da Humanidade –, mas também a advocacia e a própria sociedade civil organizada. As manifestações desses atores, também com referência contextual e adequada ao Direito Internacional, são essenciais para que a tradução de conceitos do Direito Internacional, conquanto sempre crítica, não seja simplesmente dissociada de sua própria gramática, sistemática e cenário.

Novo encontro marcado sobre o tema nos espera quando do exame da repercussão geral no Recurso Extraordinário 1.323.708 (Tema 1158). Nele, pretende-se agora a reversão de acórdão do TRF1 que, na linha da jurisprudência daquela Corte, entende que o contexto do trabalho do Norte do país viabilizaria critérios menos protetivos ao trabalhador para definir uma situação de trabalho como degradante. O Ministério Público Federal, que também era autor do recurso, aponta em seu parecer a inconstitucionalidade da diferenciação regional dos critérios de degradância, com expressa referência à sentença do Caso Fazenda Brasil Verde. A inconvencionalidade dessa discriminação regional agora será posta perante o STF, que, mais uma vez, será chamado a refletir sobre os impactos do DIDH na interpretação do Direito Penal.

Percebe-se que as dificuldades de difusão e efetivação do DIDH assumem intensidade em temas em que o Direito exerce impulso contrafactual em face de desigualdades e violências que, de alguma forma, estiveram nas origens da própria formação do sistema moderno-colonial. [1] O combate às dimensões estruturais que implicam continuidade das violações representadas pelo trabalho escravo contemporâneo é especialmente delicado em termos de medidas de não repetição.

O tema é expressivo como exemplo das consequências da inserção do Terceiro Mundo dentro do modelo ocidental da modernidade-colonialidade. [2] Envolve uma crítica profunda sobre modelos produtivos que, de alguma forma, são diretamente dependentes, em suas cadeias produtivas, frequentemente internacionalizadas, da sobre-exploração do homem, naturalizada diante de práticas sociais desumanizadoras de certas raças, gêneros e origens sociais. [3]

Assim, não obstante a ampliação do conhecimento acerca do sistema interamericano e uma maior deferência à vinculatividade de suas decisões, ainda são verificadas em alguns pronunciamentos no Judiciário Federal posturas de evitação ou contestação direta da aplicação do DIDH. Tais posições, além de afetar os bens jurídicos protegidos, tem impacto negativo especial sobre grupos sociais hipervulneráveis. São estratégias de esvaziamento indireto que, em vez de adotar um diálogo, mesmo que crítico, com os órgãos internacionais, retiram na prática sua vinculatividade e conteúdo jurídico, tornando-o mero fator de beneplácito das interpretações já construídas com base nas normas legais brasileiras.

Diante de um contexto de contestação ao Direito Internacional, parece bem-vindo o avanço simbólico e prático que o acórdão do Recurso em Sentido Estrito nº 0005216-83.2015.4.01.3901/PA significa para o DIDH no Brasil. Este ainda é um país que, por meio das instituições de Estado e da sociedade, necessita lutar pela dignidade dos Josés, dos Abéis e das Purezas. De gente que procura emprego e encontra exploração.

Que o Direito Internacional possa ser uma ferramenta nesse sentido, e, como ensinava o Professor Cançado Trindade, cuja epígrafe abre esse texto, ter o ser humano em sua centralidade, como sujeito e fim últimos, sempre.

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[1] Sobre o tema, os clássicos: KOSKENNIEMI, Martti. The Gentle Civilizer of Nations. Cambridge: CUP, 2001; QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005; GONZALES, Lélia. A categoria político-cultural da amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, jan./jun., 1988, p. 69-82.

[2] Sobre as relações entre modernidade-colonialidade, discriminações sistêmicas e o Direito Internacional vide: SQUEFF, Tatiana. Le Décolonialisme Comme Matrice Théorique pour la Fondation des Droits de l’Homme. Latin American Human Rights Studies. v. 1, p. 1-26, 2021; FREITAS, Lucas Daniel Chaves de. Direito Internacional. Descolonização, Desenvolvimento: uma releitura da ideia de Estado a partir das TWAILs (Abordagens Terceiro-mundistas do Direito Internacional). Revista Videre (on line), v. 14, p. 68-94, 2022. Consultado em 7 ago 2022. Disponível em “https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/videre”.

[3] Sobre, vide: BRAGA, Mauro Augusto Ponce de Leão; SÁ, Emerson Victor Hugo Costa de; MONTEIRO, Juliano Ralo. Responsabilidade civil no âmbito das cadeias produtivas em situações de trabalho escravo contemporâneo. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.18, n.40, jan/abr 2021, p.79-111. Disponível em http://revista.domhelder.edu.br/index.php/veredas/article/view/1855; ALVES, Raíssa Roussenq. Entre o silêncio e a negação: trabalho escravo contemporâneo sob a ótica da população negra. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2019.

  • Doutorando em Direito, Estado e Constituição e Mestre em Desenvolvimento e Cooperação Internacional Universidade de Brasília. Procurador da República (MPF-Brasil). E-mail: lucaschavesfreitas@gmail.com.

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