A importância da HCCH para o Brasil

Na ocasião em que o Conselho de Assuntos Gerais e Política da Conferência d’A Haia de Direito Internacional Privado escolheu como Presidente pela primeira vez um lationamericano, compreender a iniciativa brasileira de participar ativamente em foros internacionais torna-se oportuno para todos os cidadãos, pois em seu nome se exerce essa política de relações exteriores.

De muito tempo o Brasil almeja uma inserção internacional, mostrar-se ao mundo como relevante, exercendo poder político de influenciar a tomada de decisão de outras nações. Não é da política brasileira, como está em sua Constituição (artigo 4º), exercer poder pelas armas na forma de conquista: a política sem violência é o campo que legitima a ação internacional brasileira. Muitas são as atividades e envolvimentos do Brasil em organizações internacionais, e vem buscando ocupar espaços constantemente. Na Organização das Nações Unidas é desde o início de 2022 um dos membros eventuais do Conselho de Segurança, a Organização Mundial do Comércio teve como Diretor-Geral um brasileiro até meados de 2021. Essa é a expressão do poder nacional buscada pela política externa brasileira.

Dentre as muitas organizações internacionais de que o Brasil participa está a Conferência d’A Haia de Direito Internacional Privado (a HCCH). O Brasil integrou-se a essa organização há relativamente pouco tempo, cerca de vinte anos, incorporando-se em momento de expansão e globalização do organismo. Nascida da tradição das conferências internacionais multilaterais do final do século XIX, a HCCH traça suas raízes na conferência de 1893 convocada pelo Reino da Holanda e sob direção de Tobias Asser. Reunindo representantes de diversos países, principalmente europeus, o tema do Direito Internacional Privado despertou o interesse de grandes juristas da época, inclusive membros do Instituto de Direito Internacional, de que Asser foi o primeiro Presidente e Mancini foi um dos fundadores.

O mandato da HCCH se declara logo no primeiro artigo do estatuto (Decreto 3.832/2001), para trabalhar para a unificação progressiva das regras de Direito Internacional Privado. A HCCH exerce seu mandato produzindo legislação sob a forma de tratados internacionais abertos à adesão de qualquer Estado, mas cuja peculiaridade é a de uniformizar normas de Direito Internacional Privado. Diferentemente da maior parte das outras organizações internacionais, a HCCH é uma das poucas que produz normas destinadas a comprometer os Estados que se envolvem nos tratados com a harmonização de normas de Direito Internacional Privado, interferindo diretamente na vida das pessoas privadas, naturais ou jurídicas.

A par de ser membro da HCCH desde o ano de 2001 (embora tenha participado entre os anos de 1972 e 1977), o Brasil aderiu a várias convenções propostas, inclusive antes da vinculação como membro:

ConvençãoDecreto de Internalização
Adoção Internacional3.087/1999
Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças (CH1980)3.413/2000
Acesso Internacional à Justiça de 19808.343/2014
Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros de 1961 (da “apostila”)8.660/2016
Obtenção de Provas no Estrangeiro em Matéria Civil ou Comercial de 19709.039/2017
Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família e o adicional Protocolo sobre a Lei Aplicável às Obrigações de Prestar Alimentos de 20079.176/2017
Citação, Intimação e Notificação no Estrangeiro de Documentos Judiciais e Extrajudiciais em Matéria Civil e Comercial de 19659.734/2019

Está visto que a integração brasileira à HCCH se dá pela forma da acessão às convenções, mas não está limitada a isso. Tem o Brasil participado ativamente das iniciativas da HCCH, notadamente os muito relevantes trabalhos “pós-convencionais”, pelos quais são avaliados os efeitos das convenções em vigor e compartilhadas experiências e boas práticas, além de apoiar os Estados na internalização dos tratados. Em muitos casos essa experiência resulta no aperfeiçoamento das convenções ou de seu funcionamento, inclusive cooperativo entre Estados-parte, destacando-se a iniciativa “iSupport” de facilitação da cobrança de alimentos no exterior, derivado da Convenção de Cobrança Internacional de Alimentos, para cuja elaboração delegados brasileiros contribuíram decisivamente, exercendo inclusive o papel de Presidente do grupo de trabalho específico. Dentre os trabalhos “pós-convencionais” também é relevante destacar, neste momento de crise de saúde pública com restrição a atividades em grupo, o Guia de Boas Práticas sobre a Utilização da Ligação de Vídeo ao abrigo da Convenção sobre Obtenção de Provas, conteúdo elaborado sob os auspícios da HCCH e que atualiza os conteúdos da Convenção sobre Obtenção de Provas no Estrangeiro de 1970 para o ambiente tecnológico-digital do momento da terceira década do século XXI.

As delegações brasileiras se fizeram presentes e foram muito ativas nas negociações que conduziram à Convenção de Cobrança Internacional de Alimentos de 2007, com contribuição técnica e negociadora para o resultado alcançado. A delegação interveio nas negociações de modo a transmitir os interesses brasileiros e influenciar o texto da convenção no sentido de incorporar os traços culturais-jurídicos nacionais e lationamericanos. Durante esses trabalhos organizou-se informalmente o Grupo dos Países Latinoamericanos e do Caribe (GRULAC), que se reuniu em torno de interesses comuns e exerceu influência conjunta na elaboração do texto.

Também na negociação da Convenção de 2019 sobre o Reconhecimento e Execução de Sentenças Estrangeiras em Matéria Civil ou Comercial a delegação brasileira esteve muito ativa, desde a etapa inicial de grupo de especialistas até a Conferência Diplomática que resultou na adoção da convenção. A par de intervir tecnicamente durante os trabalhos legislativos, a coordenação com o GRULAC mobilizou maior capacidade de influência em temas comuns. O signatário participou como Assessor Especialista, tendo presidido uma Sub-Comissão encarregada do estudo do tema das Cortes Comuns a mais de um Estado, de que são exemplos o Tribunal Andino e o Tribunal de Justiça do Benelux; a questão estava fortemente conectata com o tema do reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras em matéria de propriedade intelectual, que acabou excluída da convenção. Um dos membros da delegação participou da comissão de redação, pequeno grupo que produziu o texto final refinado e que foi consolidado em tratado. A participação brasileira foi determinante, também, para a limitação do reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras quanto a direitos reais sobre imóveis, matéria controversa e de relevantíssima importância para o Brasil (ver o inciso I do artigo 23 do Código de Processo Civil), resultando no texto do artigo 6 da Convenção.

É de se destacar, ainda, o desenvolvimento do Projeto de Consumidor Turista, proposto e promovido intensamente pelo Brasil. Embora não tenha resultado em uma convenção, a iniciativa consolidou a primeira proposta concreta de trabalho de iniciativa de um membro da HCCH que não fosse europeu ou os Estados Unidos da América. O Brasil defendeu a proposta, elaborada sob a liderança da Professora Doutora Claudia Lima Marques, oferecendo inclusive financiamento para estudos especializados.

A participação brasileira na HCCH se intensifica neste momento. Já contando com um membro do Secretariado Permanente, no início de março deste ano de 2022 o Conselho de Assuntos Gerais e Política, a principal instância executiva da HCCH, elegeu o signatário como Presidente. É a primeira vez que um latino-americano, um brasileiro, ocupa um cargo diretivo na HCCH, efeito que se obteve pela iniciativa do Governo Brasileiro de oferecer a candidatura e defendê-la diplomaticamente. O Brasil exerceu seu poder político, expressou-se em ambiente de negociações internacionais, alcançando mais uma vez seu intento.

A HCCH é uma organização internacional que toca nos interesses do cidadão comum, das empresas pequenas e grandes, das famílias. Sua atividade é percebida por quem entretém algum relacionamento transnacional, beneficiando-se da redução nas incertezas próprias dessas situações. Ao disseminar suas iniciativas através de tratados internacionais, a HCCH cria uma comunidade de confiança internacional, simplificando a vida das pessoas privadas em um ambiente de maior certeza e segurança jurídica derivadas da harmonização das normas de Direito Internacional Privado. A beleza do trabalho da HCCH é lidar com negociações entre Estados soberanos e encontrar nesse poder exclusivista caminhos de coordenação em favor dos súditos de todos eles. O Brasil está engajado nessa jornada.

  • Marcelo De Nardi é Juiz Federal em Porto Alegre, Professor de Direito Internacional do Comércio e de Direito Internacional Privado na UNISINOS, e Presidente do Conselho de Assuntos Gerais e Política da HCCH.

CONTEÚDOS RELACIONADOS / RELATED CONTENT:

Compartilhe / Share:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter