A “facada nas costas”, a não proliferação nuclear e o Brasil

O anúncio da formação de uma nova parceria estratégica entre os Estados Unidos, Reino Unido e Austrália voltada para a segurança na região do Indo-Pacífico gerou grave fricção entre Washington e Paris e veementes declarações por parte da China. Os franceses não esconderam sua decepção e acusam os norte-americanos – seus aliados desde as duas guerras mundiais – de uma “facada nas costas” devido ao cancelamento de um multibilionário acordo com a Austrália para construção de uma frota de submarinos convencionais, movidos a diesel, com tecnologia francesa. A Austrália construirá agora submarinos com propulsão nuclear usando assistência britânica e tecnologia norte-americana. Os submarinos movidos por reatores atômicos têm a vantagem de serem mais rápidos, mais silenciosos e de mais difícil detecção por potenciais adversários, podendo operar por longos períodos sem necessidade de reabastecimento de combustível.  O governo e a opinião pública da França reagiram com indignação e o governo chamou de volta seus embaixadores em Washington e Camberra, gesto que na linguagem diplomática indica profunda insatisfação e desagrado.

Embora o comunicado oficial da formação da aliança afirme simplesmente a intenção de “promover a segurança e a prosperidade” na região e não mencione nenhum país em particular, parece evidente que busca conter a crescente influência da China na região e está diretamente ligado ao aumento de seu poderio militar, especialmente na vertente naval. A Marinha chinesa já é a maior do mundo e recentemente incorporou submarinos e porta-aviões a propulsão nuclear, enquanto constrói bases em ilhas artificiais nos mares meridionais, sobre as quais reivindica soberania. Ao mesmo tempo, o orçamento militar chinês tem crescido, embora ainda distante dos níveis de seu rival norte-americano. 

O governo chinês reagiu ao anúncio afirmando que deriva de uma “mentalidade da Guerra Fria” e de “preconceito ideológico”, acrescentando que as nações não devem construir “blocos de exclusão”. O porta-voz da Chancelaria chinesa não deixou de notar a presença constante de unidades de forças navais norte-americanas em águas fronteiriças à China, acrescentando que seus navios de guerra não são vistos no Caribe ou nos mares adjacentes a Miami. Por outro lado, há algum tempo a Austrália, que depende em grande parte da China para suas exportações de carnes e minério de ferro, já vinha sofrendo sanções comerciais por parte de Pequim por conta das posições australianas em matéria de segurança e certamente as relações bilaterais tenderão a se deteriorar. Assim como outros países do Pacífico sul, a Austrália é parte do tratado que instituiu uma zona livre de armas nucleares na região, ao lado da zona semelhante que abarca o sudeste asiático. A vizinha Nova Zelândia, por sinal, proíbe a entrada de navios ou submarinos nucleares em suas águas territoriais e seus portos.

A formação da nova parceria estratégica reflete a orientação preconizada pelo ex-presidente Barack Obama e levada a extremos por seu sucessor Donald Trump, de executar um ”giro” em direção à Ásia-Pacífico, para consternação de seus aliados europeus. Os documentos norte-americanos sobre a postura estratégica do país não deixam dúvidas de que Washington considera a expansão chinesa no mundo como a principal ameaça a seus interesses globais.  Os entendimentos com o Reino Unido e a Austrália foram conduzidos em segredo e sem consulta prévia a qualquer dos aliados europeus dos Estados Unidos. As consequências imediatas poderão ser a redução da confiança europeia nos compromissos assumidos pela primeira potência mundial em relação à segurança da zona estratégica hoje coberta pela OTAN e o recrudescimento das propostas de estabelecimento de instituições exclusivamente europeias para esse fim. Vale recordar que o abandono pelo governo Trump do acordo nuclear firmado pelos EUA conjuntamente com cinco outros países e o Irã, conhecido pela sigla JCPOA, suscitou dúvidas em várias capitais sobre a firmeza e durabilidade dos pactos celebrados com aquele país. Vem à mente, inevitavelmente, a afirmação atribuída ao ex-secretário de Estado norte-americano John Foster Dulles, de que “não há países amigos, e sim interesses comuns”.

A decisão ora anunciada terá sem dúvida outras consequências ao longo do tempo. Por ocasião da eleição de Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos, acreditava-se na possibilidade de evitar uma nova Guerra Fria, desta vez entre esse país e a China e em vez disso promover uma atmosfera de competição pacífica entre ambos. Os prognósticos agora são mais sombrios. Será preciso também levar em consideração a posição a ser adotada pela Rússia, que ainda não se manifestou oficialmente e cujo esforço de desenvolvimento no setor militar, com aquisição de novas armas baseadas em tecnologias de ponta continua sendo objeto de preocupação norte-americana. Nos últimos tempos, Moscou vinha procurando, ainda que cautelosamente, reforçar seu relacionamento com Pequim.

Outro aspecto suscitado pelo anúncio dos três governos é o receio de que a nova parceria possa vir a facilitar a proliferação de armas nucleares por meio do possível compartilhamento de tecnologias sensíveis norte-americanas e britânicas com um país – a Austrália – que não faz parte dos cinco reconhecidos como possuidores dessas armas pelo tratado de Não Proliferação (TNP). Ambientalistas australianos, por sua vez, já se preparam para objetar ao desenvolvimento de atividades de mineração de urânio, altamente poluentes, e outras aplicações da tecnologia nuclear no país. 

Uma consideração importante do ponto de vista da regulamentação internacional a que a Austrália está sujeita é o tipo de combustível nuclear a ser empregado nos reatores a bordo dos submersíveis. Os reatores que utilizam urânio altamente enriquecido (HEU) apresentam maior rendimento e intervalos mais longos de reabastecimento, porém sua utilização pode dar ensejo a suspeitas de desvios do material físsil para finalidades não permitidas nos tratados sobre a matéria, especialmente o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP). Esse instrumento, porém, reconhece o direito de todos os seus signatários aos usos pacíficos da energia nuclear, inclusive para propulsão de embarcações militares. 

Os desdobramentos internacionais do acordo AUKUS são de grande interesse para o Brasil, que possui um programa autóctone de construção de um submarino a propulsão nuclear e tem possibilidades concretas de ampliar a geração de energia elétrica a partir de usinas atômicas, diante da ameaça de redução de seu potencial hídrico. Em um futuro próximo a Austrália e o Brasil serão os únicos países não possuidores de armas nucleares a dispor de submarinos movidos por reatores atômicos. Ambos não nutrem ambições nucleares bélicas e estão submetidos ao regime de não proliferação do TNP e outros tratados correlatos e às obrigações de salvaguardas de seus materiais nucleares previstas nos acordos com a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). Esses compromissos, no caso brasileiro, são reforçados pelo Tratado de Proibição de Armas Nucleares na América Latina (Tratado de Tlatelolco) e pela adesão ao sistema de verificação da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de materiais nucleares (ABACC). 

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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