A emergência de uma Nova Ordem Econômica internacional e a posição do Brasil

A visita do Presidente Lula à China ocorrida entre 12 e 15 de abril de 2023 resultou em diversos acordos em áreas como energias renováveis, indústria automotiva, agronegócio, tecnologia da informação, saúde e infraestrutura. Trata-se de um importante passo no sentido da cooperação econômica e política entre Brasil e China, cujas relações não foram tão amistosas no governo anterior. Além disso, é uma oportunidade sem precedentes para reposicionar o Brasil como um artífice relevante na nova ordem econômica internacional que vem emergindo a partir da ascensão econômica chinesa e da crise das tradicionais instituições que compõem a ordem econômica liberal desde a década de 1990, como a Organização Mundial do Comércio (OMC).

Historicamente, o Brasil estabeleceu relações diplomáticas com a República Popular da China em 1974, durante o governo de Ernesto Geisel e sob liderança do chanceler Azeredo da Silveira. Em 1971, as relações comerciais já haviam sido retomadas com o envio de uma missão comercial à Feira de Cantão. Desde então, a relação bilateral intensificou-se muito, especialmente devido à vertiginosa ascensão chinesa no cenário econômico internacional, tendo a China se tornado o maior parceiro comercial do Brasil há mais de uma década. Em 2022, o volume de transações atingiu o recorde de US$150 bilhões, com superávit de US$ 29 bilhões para o Brasil. (Comex Stat (mdic.gov.br.)

Em menos de cinqüenta anos, a China tirou centenas de milhões de pessoas da pobreza, em uma mudança histórica em direção a uma economia de renda média. A ascensão acelerada iniciou-se com as reformas de Deng Xiaoping e a introdução do “socialismo com características chinesas” na década de 1970. Em 2001, a China passou por um marco crucial na sua ascensão econômica ao ingressar na OMC. Sua economia e integração no comércio internacional afetaram sensivelmente o crescimento da produção global. Para entrar na OMC, reduziu subsídios, conforme compromisso estabelecido no artigo 10 do Protocolo de Acessão à organização (China’s WTO Accession Protocol (worldtradelaw.net), e as tarifas de importação. Em 2014, tornou-se a maior economia do mundo em paridade de poder de compra, superando os EUA. Também assumiu, na década passada, a primeira posição das exportações mundiais e na produção manufatureira.

Entretanto, o desenvolvimento chinês não pode ser visto como resultado apenas de processos liderados pelo mercado, mas também como um empreendimento liderado pelo governo chinês. Nesse processo, destaca-se a importância da transferência de tecnologia estrangeira que ajudou o país a promover suas capacidades internas. O Estado chinês usou várias políticas para garantir que essa transferência ocorresse e que surgissem atores nacionais fortes. Atualmente, a transferência de tecnologia está no cerne da guerra comercial entre os EUA e a China, com os EUA alegando que a China está se apropriando indevidamente da propriedade intelectual americana. No entanto, a produção chinesa de patentes mostra que o país é hoje uma potência tecnológica por méritos próprios.

A guerra comercial entre EUA e China, iniciada em 2018, representa uma ruptura importante com o direito da OMC. Foram aplicadas tarifas de forma unilateral, preterindo a jurisdição obrigatória do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Com a paralisação do Órgão de Apelação, as regras do comércio internacional parecem estar em uma situação de indefinição e imprevisibilidade no âmbito multilateral, o que compromete sua legitimidade e funcionalidade. Importante ressaltar, nesse contexto, o caso DS543 United States- Tariff Measures on Certain Goods from China de setembro de 2020, em que o painel da OMC decidiu que as tarifas impostas pelos EUA contra produtos importados da China estavam em desacordo com o art.I:1 do GATT sobre tratamento de nação mais favorecida. Além disso, a justificativa americana de que as tarifas eram justificadas com base na exceção de moral pública do art. XX (a) do GATT não foi considerada válida, porque, segundo o painel, embora fosse legítimo considerar que as questões de desrespeito ao direito da propriedade intelectual fossem relacionados à moral pública, os EUA não teriam demonstrado relação genuína de meios e fins entre os produtos tarifados e a proteção da moral pública. Os EUA apelaram da decisão, o que não teve qualquer efeito, devido à paralisação do Órgão de Apelação. 

Essa situação mostra como o arcabouço jurídico do comércio internacional arquitetado no pós-guerra fria está em crise e como a OMC precisa de uma reforma estrutural. No entanto, os países ocidentais, responsáveis por arquitetar a ordem vigente, parecem ser os mais incomodados com o status quo. A atitude chinesa em relação à reforma da OMC é mais reativa. A China afirma que apoia a reforma, desde que os valores centrais do sistema multilateral de comércio como a não-discriminação e a abertura comercial permaneçam, salvaguardando também os interesses dos países em desenvolvimento e a tomada de decisões por consenso. Embora a maior parte dos membros da OMC concorde que uma reforma é necessária, há pouco consenso sobre a forma que essa reforma deve tomar. 

A China defende seu direito de se autodeclarar como um país em desenvolvimento na OMC, o que desagrada alguns de seus parceiros comerciais e aos EUA, que consideram que a China deveria renunciar a esse status, que confere tratamento especial e diferenciado ao país. Além disso, os chineses defendem sua estratégia de desenvolvimento de continuar a prover subsídios estatais para suas indústrias, especialmente a partir de governos locais e provinciais. Os países ocidentais são particularmente críticos da falta de transparência ao conferir tais subsídios. Os EUA, em especial, consideram que a China não se enquadra na categoria de “economia de mercado” e, portanto, a OMC não estaria preparada para lidar com a China. Nesse cenário, os americanos pensam que as regras da OMC devem ser revistas para lidar com as distorções de mercado criadas pelos chineses, notadamente, o que chamam de “sobrecapacidade crônica” das empresas estatais chinesas e sua influência no mercado mundial.

Nesse contexto, a China posiciona-se como uma concorrente estratégica aos EUA, construindo internacionalmente uma ordem paralela à americana. Seu objetivo é aumentar a autonomia estratégica do país e reduzir sua dependência de estruturas controladas pelo Ocidente. Como exemplos dessas estruturas paralelas, é possível citar: a Iniciativa Belt and Road (BRI) na área de infraestrutura, o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) liderado pelos BRICS e o Sistema Chinês de pagamento internacional (CIPS).

A iniciativa BRI faz parte da agenda econômica e geopolítica chinesa com o objetivo de vincular as economias da Eurásia à China por meio de programas de infraestrutura como ferrovias, estradas, portos, sistemas de energia e redes de telecomunicações. O projeto foi lançado por Xi Jinping em 2013 e compreende um “Cinturão Econômico da Rota da Seda” terrestre e a “Rota Marítima da Seda do Século XXI” como as principais vias pelas quais a China pretende construir uma rede de influência. Com o projeto, a China pretende estimular o crescimento interno por meio da abertura de novos mercados para seus produtos e serviços.

Já o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), com sede em Xangai, está no contexto institucional dos BRICS, que reúne China, Rússia, Brasil, Índia e África do Sul. O Banco começou com um investimento inicial de US $50 bilhões e todos os cinco componentes têm ações com direito a voto igual. Seu principal objetivo é solidificar o relacionamento entre os bancos centrais nacionais, os bancos nacionais de desenvolvimento e os ministérios das finanças dos países participantes. A atual presidente é a ex-mandatária brasileira Dilma Rousseff, empossada durante a viagem de Lula. Para muitos estudiosos, a criação do NDB representa um movimento das economias emergentes para romper com a dependência de empréstimos ocidentais e pode ser o primeiro passo para a formação de uma instituição paralela ao Banco Mundial como fonte de crédito. 

Desde 2009, a China também tem promovido a internacionalização do renminbi e a criação do Sistema de Pagamentos Internacional da China (CIPS) como um elemento crucial deste plano. A China busca acabar com a hegemonia do dólar americano no sistema financeiro e pretende gradualmente gerar uma multipolarização de moedas no sistema internacional. O renminbi chinês foi inserido pela primeira vez na lista de moedas que o FMI usa para determinar o valor dos Direitos Especiais de Saque (DES) em 2015. Já o CIPS tem a função de processar transações internacionais realizadas na moeda chinesa e abre caminho para bancos e empresas realizarem transações financeiras independentemente do dólar estadunidense. Durante a viagem, o presidente Lula defendeu o uso de uma moeda alternativa ao dólar no comércio internacional entre os países do BRICS. Além disso, China e Brasil anunciaram a criação de uma “Clearing House” para fechar negócios e conceder empréstimos sem o uso do dólar. 

Em suma, o posicionamento do Brasil nessa nova ordem econômica internacional nascente oferece uma oportunidade ímpar para o país aumentar sua influência no contexto geoeconômico internacional. Uma consequência interessante do declínio da ordem liberal americana pode ser a ascensão de um novo concerto de países (como os BRICS) para estabelecer as regras da economia política internacional. Esses países podem, nesse contexto, ter uma influência amplificada ao conferir legitimidade a uma ordem econômica mais democrática e plural, e auxiliar em sua formação e manutenção. No entanto, a natureza gradual dessas mudanças tectônicas da ordem internacional exige que o país se equilibre entre as grandes potências da melhor forma possível, sem virar as costas aos tradicionais centros do capitalismo ocidental e ao dólar americano. 

  • Bacharel em direito e relações internacionais e Mestre em direito internacional pela USP. Advogado e pesquisador do Centro de Comércio Global e Investimento (CCGI), vinculado à Escola de Economia da FGV.

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