A décima conferência de exame do TNP: perspectivas, desafios e possibilidades

Coluna “Desarmamento e Desnuclearização”
por Embaixador Sérgio Duarte

Em 1965 a Resolução 2028 da Assembleia Geral encarregou o Comitê das Dezoito Nações para o Desarmamento (ENDC) de negociar um tratado de não proliferação de armas nucleares. O texto proposto pelos co-presidentes (os delegados dos Estados Unidos e da União Soviética) não obteve consenso no Comitê e tampouco na Assembleia Geral da ONU, onde foi adotado com 95 votos a favor, 4 negativos e 21 abstenções, em 1968. O grande número de abstenções mostra a hesitação de muitos países na ocasião. Aos poucos, porém, a esmagadora maioria dos membros da comunidade internacional acabou por aderir ao Tratado da Não Proliferação de Armas Nucleares, conhecido no Brasil pela sigla TNP. Passados 52 anos de sua entrada em vigor a percepção geral é a de que embora o Tratado tenha sido importante para limitar a proliferação, seus cinco membros reconhecidos como possuidores de armamento nuclear (China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia) aqui referidos como NWS – “nuclear weapon states” – não demonstram interesse em desfazer-se de seus arsenais como contrapartida da renúncia à opção nuclear bélica por parte dos não possuidores.

Segundo o artigo VIII.3 do Tratado, as Conferências de Exame devem ser realizadas a cada cinco anos. A Décima, prevista para 2020, foi adiada devido à pandemia da Covid 19 e está marcada para 2 a 28 de agosto próximo, em Nova York. Dentre as nove Conferências desse tipo já realizadas, cinco não lograram aprovar um documento consensual. As medidas acordadas em 2000, quando foram definidos os “13 passos” e em 2010, com um Plano de Ação de 64 pontos, não tiveram seguimento e permanecem sem significação prática.

Apesar desse histórico pouco animador o TNP continua a ser considerado a “pedra angular” do regime internacional de não proliferação e desarmamento. Ao longo das cinco décadas de sua existência, todos os membros da comunidade internacional, com exceção de Israel, Índia e Paquistão, se tornaram partes do instrumento. Até hoje, somente a República Popular e Democrática da Coreia (RPDC) abandonou o Tratado, em 2003.

As perspectivas de consenso na próxima Conferência, marcada para 2 a 26 de agosto próximo, parecem duvidosas. Nos últimos anos as relações entre as duas principais potências nucleares experimentaram sensível deterioração. A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro do ano corrente, resultou no reforço da união entre os membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para sustentar a resistência ucraniana. A Rússia alega que a expansão da aliança atlântica para o leste constitui uma grave ameaça a sua segurança. A guerra já dura há mais de três meses e não se vislumbra uma solução negociada.

O prosseguimento da guerra contra a Ucrânia é um fator altamente negativo que certamente envenenará o clima da Décima Conferência. Mesmo no atual estado crítico do relacionamento entre as potências envolvidas, o grande interesse dos NWS na permanência e fortalecimento do TNP poderá contribuir para desanuviar até certo ponto o ambiente dos debates.

Um dos principais motivos de insatisfação dos países não dotados dessas armas é justamente a ausência de mostras convincentes da intenção de adotar medidas eficazes que levem ao desarmamento. Com maior ou menor ênfase, os NWS afirmam considerar que tais medidas são “prematuras” e que a manutenção de seu armamento é fator de segurança e estabilidade. Ao mesmo tempo, não cessam de desenvolver armas cada vez mais velozes e letais, embora hajam acordado entre si algumas limitações.

Outros aspectos afetam também as perspectivas de entendimento na Décima Conferência:

  1. A partir de 2010 o debate sobre as consequências humanitárias do uso de armas nucleares ganhou força na comunidade internacional. Três conferências internacionais em 2013 e 2014 examinaram profundamente o assunto e concluíram que nenhum país ou grupo de países terá condições de enfrentar com êxito a emergência humanitária causada por uma detonação nuclear. Os graves danos ao meio ambiente poderão impossibilitar a agricultura e a vida social, com graves riscos para a existência da civilização humana no planeta.
  2. O Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN) entrou em vigor em 2021 e hoje conta com 86 signatários, dos quais 62 já o ratificaram. Os NWS reagiram com hostilidade, considerando-o “contraproducente” e afirmando conjuntamente sua intenção de não vir jamais a assiná-lo. Essa declaração teve o objetivo de evitar que o novo tratado venha a ser considerado fonte de direito internacional consuetudinário. Em junho último realizou-se a primeira reunião dos estados-parte do TPAN, que certamente desejarão incluir menções positivas a esse instrumento em um eventual documento final da Décima Conferência.
  3. Na última década diversos acordos sobre armas nucleares e convencionais foram sendo sucessivamente abandonados. Entre esses estão o Tratado sobre Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF), o Tratado sobre Armas Convencionais na Europa (CFE) e arranjo conhecido como “Céus Abertos” (Open Skies), além de várias medidas de fortalecimento da confiança mútua. Restou apenas o importante tratado Novo START, entre os Estados Unidos e a Rússia, cuja vigência foi prorrogada por cinco anos em 2012. No entanto, não parece haver clima para novas reduções de armamentos no futuro imediato.
  4. O risco de uso de armas nucleares cresceu significativamente nos últimos anos, não apenas devido à deterioração do relacionamento entre as principais potências e à retorica agressiva entre elas, mas também porque o surgimento de novas armas denominadas “táticas” tornou mais provável seu emprego em ações militares limitadas, o que poderia causar uma escalada incontrolável.
  5. A Conferência de Exame e Extensão do TNP em 1995 adotou uma resolução co-patrocinada pelos três Depositários do instrumento (Estados Unidos, Reino Unido e Rússia), a qual conclamou todos os estados do Oriente Médio a tomar medidas práticas orientadas a progredir no sentido do estabelecimento de uma zona livre de armas nucleares, químicas e biológicas na região. Essa resolução foi uma das contrapartidas que possibilitaram a concordância dos países não nucleares com a extensão indefinida do instrumento. A expectativa era a de que isso favorecesse um movimento conjunto daqueles três NWS em prol do estabelecimento da referida zona. A falta de consenso sobre esse tema foi a principal causa do insucesso da na Nona Conferência, em 2015.
  6. Os NWS membros do TNP publicaram uma declaração conjunta em janeiro último, reafirmando que “uma guerra nuclear não terá vencedores a jamais deve ser travada”. Reiteraram também seu comprometimento com o artigo VI do TNP e declararam que “evitar guerras entre países nucleares e reduzir riscos estratégicos” constituem suas “principais responsabilidades”. Embora bem recebida em geral, a declaração não contém indícios da intenção de avançar em direção ao desarmamento e tampouco menciona o TPAN.
  7. Austrália, Estados Unidos e Reino Unido anunciaram em setembro passado um acordo de segurança pelo qual a Austrália adquirirá submarinos a propulsão nuclear cujos reatores utilizarão urânio altamente enriquecido (HEU), isto é, com o mesmo teor necessário para a produção de explosivos nucleares. Esse pacto foi criticado por muitos países, especialmente na área do Pacífico, por envolver riscos de proliferação de armas atômicas na região. A China tem sido o crítico mais vocal. A questão é de interesse para o Brasil, que está construindo um submarino a propulsão nuclear, embora seu combustível seja de urânio levemente enriquecido (LEU). O Brasil, aliás, acaba de iniciar entendimentos com a ABACC e a AIEA para a aplicação de salvaguardas a esse combustível, a fim de impedir seu uso para finalidades não permitidas pelo TNP.
  8. Parece extremamente difícil reviver o acordo conhecido pela sigla JCPOA entre o Irã e um grupo de países ocidentais, mas um desfecho positivo das atuais negociações seria um elemento importante para o sucesso da Décima Conferência.
  9. Caso não haja mudanças na atitude dos NWS a possibilidade de denúncia individual ou coletiva do TNP por parte de países não nucleares, que sempre pareceu remota, poderá passar a ser considerada uma opção válida, acentuando a sensação de descrédito do tratado, ainda que não acarrete necessariamente o surgimento de novos países detentores de armas atômicas.

Em última análise, o êxito da Décima Conferência dependerá da capacidade negociadora de todos os estados-parte do TNP, que têm interesse em reforçar a autoridade do instrumento. Será importante desenvolver fórmulas construtivas em relação ao TPAN e às considerações humanitárias que ele incorpora, sem a hostilidade até aqui demonstrada pelos NWS, assim como levar adiante um debate objetivo sobre a complementaridade entre os dois tratados. Avanços no cumprimento dos propósitos do Artigo VI do TNP serão essenciais para frear e reverter a erosão da credibilidade da arquitetura internacional nesse campo. Sugeriu-se para esse fim a adoção de uma Declaração de Alto Nível que reafirmaria os compromissos assumidos por todos os membros do Tratado. Algo semelhante teria efeito declaratório significativo, mas é necessário que seja acompanhado por demonstrações concretas. Cinquenta e dois anos após a entrada em vigor do TNP, a simples repetição de expressões de fidelidade a seus objetivos será insuficiente para impedir o crescimento de frustrações e desconfianças.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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