A crise do regime internacional de segurança e controle de armamentos nucleares

O atual panorama internacional de segurança e controle de armamentos mostra que o conjunto de normas e instituições multilaterais elaboradas desde os primeiros anos da Guerra Fria tornou-se inadequado para lidar com os graves desafios de segurança no mundo contemporâneo.  

Um breve resumo histórico revela até que ponto esse arcabouço normativo vem perdendo autoridade, credibilidade e eficácia.

Após o advento do armamento nuclear, em 1945, a primeira resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas estabeleceu uma Comissão encarregada de fazer propostas para “a eliminação do armamento atômico e de outras armas adaptáveis à destruição em massa”. No entanto, a hostilidade e desconfiança entre os Estados Unidos e União Soviética impediram qualquer progresso significativo.  A Comissão foi desfeita três anos depois e a comunidade internacional passou a buscar medidas de alcance parcial. 

Durante a Guerra Fria aquelas duas potências e suas respectivas alianças militares experimentaram sucesivos períodos de aproximação e de distanciamento. Conseguiram, porém, formalizar alguns entendimentos entre si visando reduzir as tensões, tornar mais previsíveis suas ações no campo estratégico e reforçar até onde possível a confiança mútua.   

Depois da crise dos mísseis de Cuba, em 1962, as conversações entre ambos sobre limitação de sistemas de lançamento de alcance intercontinental, conhecidas pela sigla SALT (Strategic Arms Limitation Talks) produziram dois resultados positivos: um acordo interino sobre Limitação de Armas Ofensivas Estratégicas, que congelou o número desses sistemas aos níveis existentes em 1972, e outro sobre sistemas antimísseis, conhecido pela sigla ABM. Ambos os instrumentos foram assinados em 26 de maio daquele ano. O ABM foi ratificado pelo Senado norte–americano em 3 de agosto, mas o Acordo Interino não teve o mesmo destino. Em 2002, os Estados Unidos denunciaram unilateralmente o acordo ABM.

As duas superpotências prosseguiram as conversações visando à negociação de um segundo acordo de limitação de armas ofensivas estratégicas, que ficou conhecido pela sigla SALT II. Em 1974, ambas chegaram a um texto de consenso, que somente foi levado ao Senado norte-americano em 1979. No entanto, a invasão do Afeganistão pela União Soviética impediu a ratificação do instrumento pelo Senado. Os dois países se comprometeram a honrar seus dispositivos apesar de acusações mútuas de violação.

Uma nova rodada de negociações entre ambos para a limitação de armamentos nucleares, conhecida pela sigla START (Strategic Arms Reduction Talks) iniciou-se em 1982. Após uma interrupção de dois anos, o diálogo resultou em limitações específicas, entre as quais um teto de 1.600 vetores nucleares estratégicos e 6.000 ogivas para cada lado. 

Em outubro de 1986 os presidentes Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev encontraram-se em Reykjavik, na Islândia. Nessa reunião ambos concordaram, em princípio, com a retirada dos sistemas de mísseis de alcance intermediário na Europa, atendendo a preocupações dos países da Europa Ocidental, onde houve diversas manifestações populares contra a presença de mísseis em solo europeu. O respectivo Tratado, conhecido pela sigla INF, foi assinado por ambos os países em 1987 e resultou na eliminação de todos os mísseis balísticos e de cruzeiro com alcance entre 500 e 5.500 km colocados na Europa. Em junho de 1991, data-limite para a implementação dos compromissos contidos no tratado INF, os Estados Unidos haviam destruído 846 vetores dessas armas e a União Soviética, 1.846. Esse foi um dos poucos exemplos de sucesso de instrumentos de desarmamento proopriamente dito.

Uma proposta de Gorbachev para a eliminação completa do armamento nuclear encontrou certa simpatia de parte de Reagan. No entanto, resistências da delegação norte–americana, que insistia na permanência dos sistemas antimísseis, apelidados “guerra nas estrelas”, fizeram fracassar a possibilidade de avanços concretos das duas partes para o desarmamento nuclear.

Na ocasião, os dois presidentes lograram publicar uma declaração conjunta no sentido de que “uma guerra nuclear não terá vencedores e jamais deve ocorrer”. Recentemente, em junho de 2021, os presidentes Putin e Biden reiteraram essa declaração em um encontro em Viena. 

Em um novo tratado assinado em Moscou em 2002 pelos presidentes George W. Bush e Vladimir Putin os Estados Unidos e a Federação Russa, sucessora da URSS, concordaram em reduzir o número de ogivas estratégicas operacionalmente instaladas para atingir um total entre 1.700 e 2.200, até 31 de dezembro de 2012. 

Esse último instrumento não chegou a ser integralmente implementado e foi substituído pelo Tratado Novo START, negociado entre Estados Unidos e Rússia após o encontro dos presidentes Barack Obama e Dmitri Medvedev em Londres, em abril de 2009. Foram acertados, para cada qual, os limites de 700 mísseis balísticos intercontinentais, 1.550 ogivas colocadas nos respectivos vetores e 800 sistemas lançadores de mísseis de terra, mar e ar.

Até recentemente o Novo START vinha sendo observado por ambas as partes, mediante inspeções recíprocas. Era o único instrumento bilateral de redução e controle de armas nucleares ainda vigente entre os dois países. Em 28 de fevereiro último, porém, o governo russo decidiu suspender indefinidamente sua aplicação. Não existe, portanto, no momento, nenhum acordo sobre armamento nuclear em vigor entre as duas potências mais armadas do mundo. Tampouco exite normatização semelhante no que respeita aos demais estados possuidores de armas nucleares.

Finalmente, quanto ao armamento convencional, um tratado cohecido pela sigla CFE, concluído em 1990 e derivado da Ata Final da Conferência de Helsinki regulou as forças dessa categoria na Europa (CFE). A Rússia retirou-se desse instrumento em 2007.

Verifica-se, portanto, que todos os instrumentos bilaterais e alguns regionais de controle de armamentos entre Rússia e Estados Unidos ou de âmbito europeu acima mencionados foram sendo superados, denunciados ou abandonados. O único ainda ativo, embora suspenso, é o Novo START, cuja vigência vai até 2026.

Na esfera multilateral, os principais tratados e convenções no campo do controle de armamentos foram sendo negociados e adotados a partir da metade do século XX e se encontram ativos, com exceção do CTBT, que ainda não está em vigor. Entre esses estão o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP), de 1970; a Convenção de Proibição de Armas Bacteriológicas, (Biológicas) (BWC), de 1972; a Convenção de Proibição de Armas Químicas (CWC), de 1997; o Tratado Abrangente de Proibição de Ensaios Nucleares (CTBT), de 1996; e o Tratado de Proibição de Armas Nucleares (TPAN), de 2017.  Somente as duas Convenções sobre armas químicas e sobre armas bacteriológicas podem ser considerados acordos de “desarmamento” propriamente dito, pois obrigam seus membros a destruir os estoques dessas armas em seu poder.

No âmbito regional, tratados específicos estabeleceram zonas livres de armas nucleares na Antártica no espaço exterior e nos leitos e subsolos dos oceanos e também na América Latina e Caribe, Sudoeste asiático, África, Sudeste do Pacífico e Ásia Central. Esses tratados proibiram armas nucleares onde elas não existiam.

Ao longo do tempo, porém, a prática da aplicação de todos esses acordos, arranjos e normas vêm sendo cada vez mais objeto de dissensão entre os Estados. Senão, vejamos.

As Conferências quinquenais de Exame do TNP revelam graves divergências entre as Partes, que resultaram na impossibilidade de adoção de documentos substantivos em seis dentre as dez dessas Conferências até hoje realizadas. Questões relativas à atribuição de responsabilidade pelo uso alegado de armas químicas têm dividido as Partes da CWC. O CTBT até hoje não entrou em vigor devido à falta de assinatura ou ratificação vontade política de alguns países. O TPAN, que oferece um caminho para a eliminação dos arsenais e contém dispositivos específicos sobre as maneiras de fazê-lo, sofre intensa campanha de oposição e descrédito movida pelos países nucleares e alguns de seus aliados. No que toca às zonaslivres de armas nucleares, os possuidores dessas armas mantêm reservas e interpretações que na prática comprometem, e em certos casos invalidam o caráter não nuclear das regiões interessadas. 

Em 1979 a Primeira Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre Desarmamento (SSOD I) estabeleceu o chamado “mecanismo” multilateral de deliberação e controle composto pela Primeira Comissão e pela Comissão de Desarmamento, ambas órgaos plenários da Assembleia Geral, além da Conferência do Desarmamento, atualmente com 65 membros. Instituiu também uma Junta Consultiva de 15 membros para debater e sugerir ao Secretário Geral da ONU iniciativas no campo do desarmamento.

Todos esses mecanismos de deliberação e negociação encontram-se hoje inoperantes ou paralisados há vários anos. Por sua vez, o Conselho de Segurança, principal órgão da ONU responsaável pela manutenção da paz e seurança mundiais mostra-se incapaz de agir decisivamente em questões de interesse direto de um dos cinco países que dispõem do direito de veto nesse órgão.  

Ao mesmo tempo, as relações entre as principais potências atingiram neste ano de 2023 o ponto mais baixo no período posterior à Segunda Guerra Mundial. Pela primeira vez, desde a crise dos mísseis de e Cuba, em 1962, a humanidade se vê diante de uma guerra na Europa envolvendo possuidores de armas nucleares, com o consequente risco de uma catástrofe nuclear capaz de extinguir a civilização como a conhecemos.   Por isso, é urgentemente necessário encontrar caminhos que conduzam a novos e mais eficazes entendimentos e decisões que reflitam as preocupações e anseios de paz e estabilidade da comunidade internacional como um todo.  Países como o Brasil, que possuem longo histórico de participação ativa nos esforços multilaterais, regionais e bilaterais de desarmamento, controle de armamentos e não proliferação de armas de destruição em massa têm responsabilidades especiais nessa tarefa.

  • Embaixador, ex-Alto Representante das Nações Unidas para Assuntos de Desarmamento. Presidente das Conferências Pugwash sobre Ciência e Assuntos Mundiais. Colunista do IntLawAgendas.

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