A Convenção sobre o Status de Refugiado: 70 anos em perspectiva

Em 28 de julho de 2021 a Convenção sobre o Status dos Refugiados  (Convenção de 51) completou 70 anos de vigência. Considerada o instrumento normativo fundador do Direito Internacional dos Refugiados em sua vertente contemporânea, patrocinada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), e com 148 Estados ratificantes; a Convenção de 51 é a base de proteção de mais de 30 milhões de pessoas (entre refugiados e solicitantes de refúgio) por dia. Trata-se, assim, de um documento-chave para a Proteção Internacional da Pessoa Humana, e cujo jubileu de platina enseja reflexões. Nesta perspectiva, é relevante analisar a construção da Convenção de 51 e seu legado, em face de desafios de proteção na atualidade. 

Sobre sua criação, é importante resgatar o fato de que a Convenção de 51 é um produto de seu tempo, objetivando a proteção de pessoas deslocadas na Europa pela Segunda Guerra Mundial (evidenciada pela reserva temporal, que limita o reconhecimento a acontecimentos “ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951”e pela reserva geográfica trazida pela expressão “na Europa”). É, desta forma, um tratado com foco específico, ainda que incorpore a proteção de pessoas já reconhecidas como refugiadas até então. Se por um lado, pode-se criticar tal fato por seu Eurocentrismo e por minimizar as estruturais coloniais, deixando de lado fluxos migratórios relevantes da época, como por exemplo na Ásia. Por outro lado, pode-se apontar o foco específico da Convenção de 51 como uma opção política de negociação de um tratado global que buscava a solução de um problema regional, podendo-se, inclusive, destacar a Convenção de 51 como percursora do relevante papel do regionalismo e das iniciativas regionais para a proteção; levando-se em conta dados, como, por exemplo, o de que 86% das pessoas refugiadas se encontram em países fronteiriços ou vizinhos aos seus países de origem ou residência habitual. 

Sobre seu legado, nota-se que o mesmo é múltiplo. Como ponto de partida, tem-se o fato de que a Convenção de 51 tem o papel histórico de efetivar o direito de asilo previsto no artigo 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos  e, assim, significa, juridicamente, as palavras refúgio e refugiado. 

A Convenção de 51 define como refugiado àquela pessoa que, temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade (ou residência habitual se não tem nacionalidade), e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção deste país. Neste sentido, em lugar de agrupar indivíduos por nacionalidade ou por suas características inerentes, tal como os tratados anteriores que visavam a proteção de grupos específicos, a Convenção de 51 apresenta um conceito individualizado. Tal conceito, em sua maior parte, tem critérios fechados e bem-definidos, contudo, o critério de pertencimento a grupo social é considerado aberto e engloba motivos não enumerados especificamente, e que hoje incluem, por exemplo, perseguição por gênero e/ou por orientação sexual, bem como de defensores de direitos humanos ou de determinados profissionais, sendo um legado protetivo positivo da Convenção de 51.

Um aspecto criticado da Convenção de 51 em relação ao conceito de refugiado é o fato de que o mesmo, e consequentemente a proteção determinada pelo tratado, não inclui todas as pessoas migrantes forçadas – 82,4 milhões no mundo em 2020 por perseguição, conflitos, violência e violações de direitos humanos; ou seja, sem contar ainda deslocados ambientais ou migrantes humanitários. Tal crítica é relevante para destacar a falta de regimes específicos de proteção a outras pessoas migrantes, mas, por vezes, perde de vista não apenas o fato de que a Convenção de 51 não foi negociada com vistas a apresentar uma solução para a proteção de todas as pessoas internacionalmente deslocadas para todo sempre, mas também a realidade da mobilidade humana nos últimos 70 anos, com suas alterações complexas e novas demandas.

Nesse contexto, é importante lembrar também que a Convenção de 1951 reconhece e determina a proteção de pessoas apátridas; aquelas que não são reconhecidas por qualquer Estado como seu nacional. A Convenção de 1951 protege não apenas os apátridas de fato (que em realidade são todos os refugiados pois não podem contar com a proteção de seu Estado de nacionalidade), como também os apátridas de jure que sejam pessoas refugiadas e não possam ou não queiram contar com proteção de seu Estado de residência habitual. Esse reconhecimento explícito da condição de apátrida de pessoas refugiadas, contribuiu e continua contribuindo para a sensibilização para as causas e consequências da apatridia de forma mais ampla, como, por exemplo pela elaboração de dois tratados específicos sobre o tema em 1954 e 1961

Ainda em termos conceituais, outra crítica frequente é a de que a Convenção de 51 não apresenta uma definição de perseguição, conceito chave do refúgio, e consequentemente do Direito Internacional dos Refugiados. Se tal lacuna pode dificultar a aplicação da proteção, pode também ser inferida do fato de que os horrores ocorridos na Europa poucos anos antes ainda ressoavam fortemente junto aos negociadores, e assim existia uma percepção compartilhada do conceito

Legado significativo da Convenção de 51 refere-se à sua estrutura dual fundada em status e direitos. O status se refere ao conceito acima mencionado, ou seja, à condição de refugiado, e, portanto, ao estabelecimento do refugiado como uma categoria jurídica de pessoa protegida internacionalmente. Já no aspecto de direitos, a Convenção de 51 lista direitos civis e políticos e direitos econômicos, sociais e culturais com padrões de garantia a serem respeitados pelos Estados em face das pessoas refugiadas. Nesse sentido, a Convenção de 51 tanto reforça o vínculo entre proteção e direitos humanos, quanto pode ser vista como percursora da ideia de proteção integral (aquela que integra direitos específicos de status migratório com direitos humanos). Apesar deste avanço, a Convenção de 51 não traz instrumentos efetivos de implementação e não menciona as soluções duráveis ou duradouras (integração local, reassentamento e repatriação) como direitos das pessoas refugiadas.

Ainda no aspecto de direitos, a Convenção de 1951 sedimenta o conceito de non-refoulement, ou seja, a proibição de devolução da pessoa solicitante de refúgio ou refugiada para local onde sua vida e/ou segurança estejam em risco. O non-refoulement já existia anteriormente à 1951, mas é a Convenção que o torna indissociável do status de refugiado.

A Convenção permanece sendo a principal e única fonte normativa de hard law do Direito Internacional dos Refugiados em âmbito global, e tão somente nisso já se verifica sua relevância. A conceituação de refugiado e a dimensão da proteção contida na Convenção 51 pela perspectiva dos direitos humanos são seus principais legados. E, ainda que verifiquem-se na prática manifestas violações de suas normas, por exemplo, durante a pandemia de COVID-19 , se tenha dependência do engajamento dos Estados, e seja necessário ampliar a cooperação internacional, a Convenção de 51 segue sendo o pilar de proteção para pessoas deslocada forçosamente em função de perseguição, garantindo nas palavras do ACNUR “life-saving protection”. 

Com a crise humanitária prolongada e consequentes deslocamentos causados pelo conflito armado na Síria , a continuidade dos fluxos de deslocamentos forçados da Venezuela e da América Central, a intensificação recente da necessidade de proteção de pessoas provenientes do Afeganistão, a persistência da necessidade de proteção dos Rohingyas, a manutenção da crise humanitária no Iêmen, a constância de crises no continente africano impactando a mobilidade (como na região do Sahel, no Sudão do Sul, no Mali, na Somália, na Nigéria, na República Centro-Africana, na República Democrática do Congo e no Burundi), entre outras situações de violação de direitos humanos e/ou de catástrofe humanitária que impulsionam o deslocamento forçado de milhões de pessoas, verifica-se, em perspectiva, que a Convenção de 51 celebra 70 anos continuando a ser extremamente necessária. Assim, recordar seus pilares e diagnosticar os desafios à sua implementação a fim de auxiliar no aprimoramento da proteção que ela determina e consagra se torna ainda mais essencial.

  • Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Santos, instituição em que coordena o Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos e Vulnerabilidades” e a Cátedra Sérgio Vieira de Mello, em parceria com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR); Mestre e Doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP); LL.M. em International Legal Studies pela NYU School of Law; Foi Visiting Scholar na Columbia Law School e Visiting Fellow na Refugee Law Initiative – University of London; Fez cursos de verão na Universidade de Harvard e na Universidade de Oxford. No âmbito da Organização Internacional para Migrações (OIM) é membro do Migration Research Leaders Syndicate e é Migration Research and Publishing High-Level Adviser; Membro da Global Academic Interdisciplinary Network (GAIN), do Pacto Global sobre Refugiados, coordenada pelo ACNUR, e do Academic Council on the Global Compact for Migration.

  • Pós-Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR; Doutora em Direitos Humanos e Pluralismo Jurídico pela McGill University (Canadá); Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR); Advogada, pesquisadora e consultora nas áreas de Direitos Humanos, Direito Internacional dos Refugiados e Direito Internacional Humanitário; Membro da Global Research Academic Network (G.A.I.N.) do Pacto Global sobre Refugiados; Membro do Grupo de Pesquisa Direitos Humanos e Vulnerabilidades da Universidade Católica de Santos e do Grupo de Pesquisa Direito, Biotecnologia e Sociedade da UFPR.

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