30 anos velando o Mercosul vivo

Capítulo Uruguai 2021

Aos detratores do MERCOSUL, um aviso: este ensaio não contemplará suas expectativas. As críticas ao processo regional de integração são, contudo, sempre muito bem-vindas. Alterações de rota, reformulações e flexibilizações devem ser acolhidas quando necessárias e urgentes.

 

Ressalvado o grupo de professores e pesquisadores realmente comprometidos com o direito internacional – pouco numerosos e que cabem em uma Kombi, os internacionalistas brasileiros podem ser agrupados em dois núcleos principais: o dos negacionistas e o dos alarmistas.

 

Quando focados no MERCOSUL, os primeiros são capazes de celebrar os 30 anos do Tratado de Assunção como se a institucionalidade comum estivesse funcionando perfeitamente. Os arautos do pandemônio – alarmistas – repetem desde sempre, a seu turno, que o fim do MERCOSUL é fato consumado ou questão de tempo.

 

Essas duas posturas não servem em absoluto aos propósitos de nossa missão. Sim, trabalhar para aperfeiçoar as relações de poder entre soberanias e outros sujeitos de direito internacional é a missão do internacionalista. Talvez a mais nobre do mundo jurídico – considerando que o fracasso do direito internacional tem maior potencial de danos para a humanidade e sua existência. Mas isso seria tema de outro ensaio.

 

De tempos em tempos, os alarmistas são muito bem representados por declarações, notas e atos concretos dos governos dos membros do MERCOSUL: eventos que costumam receber ampla repercussão midiática alusiva ao estado terminal do projeto comum. O último episódio dessa natureza ocorreu entre o transpasso da presidência pro-tempore argentina para a brasileira em julho passado com a formalização por parteda República Oriental do Uruguai de sua intenção de negociar acordos com parceiros comerciais terceiros.

 

Não há como se negar as tensões e dificuldades atuais enfrentadas pelo MERCOSUL para avançar nas pautas comerciais e sociais. De fato, ignorar o antagonismo ideológicodos governos e a falta de prioridade da integração nas agendas locais não contribui à preservação das conquistas e da institucionalidade da organização internacional. As ameaças ao projeto existem e precisam ser compreendidas para serem combatidas. E precisam também ser contextualizadas.

 

O capítulo atual do “velório do MERCOSUL vivo” foi anunciado e repercutido como fato consumado que implicaria a violação por parte do Uruguai da regra fundamental do acordo que impede que um Estado negocie redução tarifária e facilitação comercial comterceiros isoladamente.

 

Movimento nesse sentido desvirtuaria, de fato, a lógica comercial sobre a qual o MERCOSUL – como estrutura que atualmente ultrapassa os limites econômicos – se assenta e representaria uma ruptura grave em um dos pilares centrais da integração regional. Mas as coisas não são tão simples assim.

 

Observadores mais experientes do processo regional são pacientes em seus diagnósticos. O MERCOSUL sobreviveu à crise cambial brasileira de 1999, ao colapso econômico argentino de 2001, à crise política de 2012 e pode, portanto, superar novamente o ambiente de discórdia atual e a postura emancipatória uruguaia. Contar com a força do tempo não é, nesse contexto, resignação, mas plena compreensão dos obstáculos que se impõem ao atual desejo oriental – obstáculos de natureza jurídica, comercial e política.

 

Politicamente, importante se faz diferenciar o contexto interno do internacional. Movimentos políticos internacionais levam, em regra, vários anos entre o anúncio e a concretização. Não é incomum a negociação de um tratado ser iniciada em um governo,a celebração desse tratado ser levada a cabo por outro chefe do executivo e o processo de internalização ser finalizado 10 anos depois.

 

Anúncio como esse realizado recentemente pelo atual governo uruguaio precisa ser analisado, ainda, também a partir de sua dimensão interna e não raramente pode ser compreendido como mera mensagem política para um eleitorado específico ou para público interno determinado. De fato, diversas foram as iniciativas promissoras ou devastadoras que envolviam o MERCOSUL e que não passaram de intenções ou de factoides nesses 30 anos. Existe, portanto, uma enorme diferença e também um longo caminho entre querer celebrar acordos comerciais autonomamente e finalmente existirem esses acordos em vigor entre a República Oriental do Uruguai e terceiros Estados.

 

A dimensão externa da política pode enfrentar, nesse longo caminho referido anteriormente, obstáculos também jurídicos que levem à provocação, por exemplo, do sistema de solução de controvérsias do MERCOSUL. Essas dúvidas que poderão ser levantadas sobre eventual aventura solo uruguaia podem, ainda, ultrapassar facilmente o marco normativo regional e repercutir na compatibilidade do MERCOSUL com a ALADIe com a OMC.

 

Um percurso longo, complexo e imprevisível tanto em seus aspectos políticos como jurídicos.

 

Exemplo recente e emblemático com enorme repercussão midiática e resultado nulo foio anuncio, em 2019, da conclusão das negociações do acordo comercial entre o MERCOSUL e a União Europeia. O direito internacional precisa ser lido sob a perspectivado tempo; com paciência e atenção aos contextos e detalhes. Uma abordagem que pode – e talvez deva – ser aplicada de forma cartesiana: para o bem e para o mal.

 

Nesse movimento atual que está sendo referido como “flexibilização do MERCOSUL” chama atenção e merece destaque a postura do governo brasileiro de aparente entusiasmo com a proposta. O apoio do Brasil à relativização dos mecanismos preferencias em vigor entre os membros do Tratado de Assunção parece decorrer de uma leitura equivocada da importância comercial do MERCOSUL para setores específicos da economia nacional e, principalmente – talvez mais gravemente – da percepção absolutamente deturpada da integração regional como um projeto brasileiromeramente econômico.

 

Mesmo no marco de uma zona de livre comércio inconclusa e de uma união aduaneira imperfeita – e apesar de entraves persistentes ao pleno fluxo comercial intrazona – o MERCOSUL responde pela maior parte das exportações brasileiras de bens não primários. Flexibilizar o MERCOSUL em busca de acordos comerciais poderá, por um lado, aprofundar o perfil brasileiro de exportador de matérias primas e, sob o ponto de vista dos ajustes de nossos pares com terceiros, liquidar o que resta de destino internacional de produtos manufaturados aqui.

 

Paralelamente, resta o problema cognitivo mais grave e infelizmente compartilhado por muitos internacionalistas: a redução do MERCOSUL a um simples acordo comercial. O MERCOSUL é a experiência geopolítica mais bem-sucedida do Brasil em toda a sua história. O mercado consumidor argentino, de 45 milhões de habitantes, do Paraguai, de 8 milhões de habitantes, e do Uruguai, de 3,5 milhões de habitantes, interessa sim a nossa indústria nacional, mas o MERCOSUL é, em sua essência, um projeto político parao Brasil.

 

O “grandote del barrio”, nas palavras de Pepe Mujica, possui dimensões populacionais, econômicas e territoriais que lhe conferem contornos hegemônicos naturais na região, mas o Brasil nunca conseguiu exercer esse poder político amplamente. O aperfeiçoamento do MERCOSUL possui, portanto, importante dimensão estratégica e isso não pode ser colocado em risco por diagnósticos pedestres do direito internacional.

Uma vez superada a pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2, o MERCOSUL precisará certamente ser repensado e reestruturado. No direito internacional, não apenas o MERCOSUL, mas também o MERCOSUL precisará ser repensado. A institucionalidade esvaziada precisará ser repensada, a paralisia do sistema de solução de controvérsias precisará ser repensada, o ingresso de novos membros precisará ser repensado e as aventuras juvenis autônomas precisarão ser repensadas.

 

A superação das discórdias ideológicas poderá facilitar essa reformulação, mas, independentemente do desafio que estiver em jogo, o Internacionalista precisará ter em mente o fortalecimento da experiência regional e jamais a irresponsabilidade de liquidar uma organização internacional. A Bolívia e o Chile serão interlocutores bem-vindos nesse processo e ao Uruguai deve ser dado tempo ao tempo de sua aventura e fantasia.

 

O MERCOSUL poderá, de fato, morrer um dia e seu réquiem poderá ser real. Por enquanto temos, contudo, o velório de uma organização internacional viva e sobrevivente de diversos episódios equivalentes ou ainda mais graves nos últimos 30 anos.

 

Para entrar na Kombi, o internacionalista tem que, antes de tudo, deixar seus preconceitos ideológicos na calçada e defender a institucionalidade do direito internacional como missão. Do contrário, vai ficar descolado da realidade como o negacionista ou gritando na praça como o alarmista sem nunca ter se tornado um internacionalista de verdade.

 

O MERCOSUL vive, sobrevive e sobreviverá a mais esse desafio.

  • Professor titular da UERJ, professor adjunto da UFRRJ, mestre e doutor pela USP e pela UERJ, advogado e consultor jurídico. Cumpriu o mandato brasileiro na Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão do MERCOSUL entre 2012 e 2015.

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